Uma fruta de apelo universal estava entre as mais cobiçadas pelos pequenos corsários de água doce da Beira Rio: A banana.
A fruta, oriunda do sudeste asiático e que árabes, portugueses e espanhóis ajudaram a espalhar pelo mundo, dava com alguma abundância ao longo das margens do rio, compondo partes da mata ciliar. O problema era que ela crescia nos fundos das casas e barracos que margeavam o Alcântara – ou seja, possuíam “dono”. Dura palavra!
E agora, como roubar uma fruta que era de difícil e o pior, barulhenta colheita? Sim, pois além das pencas estarem situadas a considerável altura, se conseguíssemos cortar todo o cacho – subindo numa árvore paralela à bananeira ou mesmo utilizando uma providencial escada – não tínhamos, crianças que éramos, força nos braços para segurar ou aparar aquela imensidão de bananas. E se cortássemos o cacho, ou mesmo a bananeira inteira, e deixássemos a carga simplesmente desabar no chão, o barulho da queda daqueles reservatórios de potássio
sempre despertava os donos.
Desgraça pouca, reza o clichê, é sempre bobagem. Tínhamos alguns agravantes. A casa cujos fundos eram mais ricos em bananas – um verdadeiro bananal – certa altura foi ocupada por moradores novos, desconhecidos. Um casal sem filhos. O valete, viemos a saber depois, era marinheiro.
A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa, dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo, claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou vadiando à esmo.
Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas – fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos oitenta!
Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar a molecada.
Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu (aprendido nos filmes da franquia American Ninja que lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o máximo de silêncio possível.
Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”? Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em nossa favelinha, quem iria nos impedir.
Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma solução foi encontrada.
A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e, sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do tronco, de preferência apenas um terço de sua circunferência.
Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho, aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre com grande estrondo.
O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres. O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira tombara sozinha, o que não era assim muito impossível.
A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos. Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo aquele butim e, segurando um de cada lado daquele pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos daquele campo minado.
Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O Pedágio de Dona Maria.
Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro de perceberem o que transportávamos. E, por cima, colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas. Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim dividíamos o fruto da rapina.
Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno, sempre que eu era repreendido pelos palavrões que vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”, me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não posso xingar?”
Além de brava e amedrontadora, dona Maria costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor, fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho, esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o lado dela...
Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos, nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa:
“Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar um saco de lata...”
Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava mole pra ninguém!
Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário