quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Hans Christian Andersen (O Velho do Sono) Parte 1


Não há ninguém no mundo que saiba tantas histórias como o Velho-do-Sono. E são histórias tão lindas, as que ele conta!

De noite, quando as crianças estão ainda à mesa, muito quietinhas, ou sentadinhas em seus bancos, ele tira os sapatos e sobe a escada, muito devagar, abre a porta sem fazer barulho e sopra pó nos olhos delas. Vai então, sempre no maior silêncio, para trás das crianças e sopra-lhes na nuca, muito suavemente, para que elas não sintam. E imediatamente as crianças sentem a cabeça pesada! Mas isso não é para lhes fazer mal: o Velho-do-Sono só quer que fiquem bem quietinhas e que vão para a cama. Se não ficarem bem quietinhas ele não poderá contar as suas histórias.

Quando elas dormem ele se senta aos pés da cama. Tem umas roupas muito alegres, mas ninguém pode dizer de que cor são: a seda dos seu casaco ora é verde, ora vermelha, ora parece azul - é conforme bate nela a luz. Leva uma sombrinha debaixo de cada braço: uma é toda pintada e ele a abre sobre as crianças boas, para que tenham sonhos agradáveis a noite inteira; a outra não tem pintura nenhuma - é que ele abre por cima das crianças más, e essas dormem um sono pesado, e acordam de manhã sem ter sonhado nada, nada.

Agora vou contar as histórias que o Velho-do-Sono contou a um menino chamado Hialmar; o velho visitou-o durante uma semana, todas as noites, e cada noite contou um conto diferente: são portanto sete casos.

SEGUNDA-FEIRA

- Escuta! - disse o Velho-do-Sono, assim que Hialmar se viu bem acomodado na sua cama. - Agora vou enfeitar todo o teu quarto.

E enquanto ele estava falando as flores dos vasos foram ficando árvores enormes, e os galhos se estendiam pelas paredes, e subiam até o teto, de modo que o quarto parecia um lindo caramanchão. Os galhos estavam cheios de flores, mais lindas que as próprias rosas, e se a gente provava uma delas, achava-a mais doce que confeitos. Frutas brilhantes que nem ouro pendiam das árvores, e pudinzinhos, cheios de passas. Nunca se vira coisa semelhante! Mas, no meio de tudo aquilo, ouvia-se uma lamentação, que saía da gaveta da mesa onde Hialmar guardava os livros da escola.
 
- Que será isto? - disse o Velho-do-Sono, indo abrir a gaveta.

Era a ardósia a causa daquela balbúrdia. Havia um algarismo errado na soma, e a pedra parecia querer desconjuntar-se toda, enquanto isso, o lápis dava pulos e estirava o barbante que o prendia à ardósia, como um cachorrinho para ver se corrigia a soma, e não o conseguia. Mais adiante estava o caderno, de onde saíam também lamentos e queixas doloridas: no começo de cada linha havia uma letra maiúscula e outra minúscula, para serem copiadas. Adiante delas viam-se outras letras que pretendiam imitar aquelas. Tinham sido escritas por Hialmar; mas pareciam ter caído deitadas sobre as linhas, em vez de se manterem de pé, como as do modelo.

- Olhem para nós! - diziam as do modelo - É assim que devem manter-se: um pouco inclinada... assim... e com uma voltinha.

- Bem o quiséramos - diziam as letras de Hialmar - mas não  podemos; estamos muito malfeitas.

- É que vocês estão precisando do pó das crianças - disse o Velho-do-Sono.

- Não, não! - gritaram as letras, erguendo-se  e ficando direitas que dava gosto.

- Bem, por hoje não posso mais contar histórias - disse o Velho-do-Sono. - Tenho de ensinar estas letras - direita, esquerda! direita, esquerda!

E ele exercitou as letras, até que ficaram tão direitas, tão perfeitas, como só se veem nos modelos de caligrafia.

Mas, depois que ele foi embora... Oh! No dia seguinte, quando Hialmar olhou para elas... que horríveis! Estavam tão malfeitas como antes.

TERÇA-FEIRA

Assim que Hialmar foi para cama, o Velho-do-Sono tocou com a sua varinha de condão todas as peças da mobília do quarto, imediatamente elas começaram a falar. Falavam todos de si próprios, menos a cuspideira, que ficou calada, e muito escandalizada da vaidade dos que só se ocupavam de si, sem pensar nela, que ali estava, tão modesta, em um cantinho, e até suportava que lhe cuspissem em cima!  Sobre a cômoda estava pendurado um quadro de moldura dourada, era uma paisagem onde se viam grandes árvores, relva matizada de flores, e um rio que atravessava o mato e passava em frente de um velho castelo antes de se ir lançar no mar.

O Velho-do-Sono tocou o quadro com sua varinha mágica e imediatamente os passarinhos começaram a cantar, os galhos das árvores moveram-se, balançando à brisa, e as nuvens flutuavam no céu, projetando sombra sobre a paisagem.

Então o Velho-do-Sono pegou em Hialmar e colocou-o na beira da moldura; o menino sentou-se nela, com as pernas para dentro do quadro, depois se pôs a correr na grama. O sol inundava tudo de luz, através da folhagem.

O menino foi até a beira do rio e entrou em um barco pintado de vermelho e branco, com velas prateadas, seis cisnes, de colar de ouro, passando junto de um verde bosque, cujas árvores estavam contando casos de ladrões e de feiticeiras, enquanto as flores narravam histórias de lindas fadas pequeninas, e coisas que as borboletas lhes contavam.

Iam nadando atrás do bote peixes lindíssimos, de escamas de ouro e de prata, de vez em quando um deles dava um  salto na água, que esborrifava a cabeça de Hialmar.

Pássaros vermelhos e azuis, grande e pequenos, voavam acompanhando o bote, em duas longas filas, os mosquitos dançavam formando pequenas nuvens, e os moscões zumbiam. Queriam todos seguir Hialmar, e todos tinham coisa para lhe contar.

Era um passeio encantador! O bosque ora parecia denso e sombrio, ora se mostrava florido e iluminado pelo sol. Por ente as árvores erguiam-se grandes palácios de cristal ou de mármore, em cujos balcões se debruçavam princesas, todas elas conhecidas de Hialmar, pois eram crianças com quem tinha brincado muitas vezes. Estendiam-lhe as  mãos, oferecendo-lhe figurinhas de açúcar, como a gente vê nas confeitarias. E eram lindas! Hialmar pegou na ponta de um  daqueles doces quando ia passando, mas a princesa ficou sempre segurando na outra ponta, e como ele ia navegando, o doce se partiu, ficando um pedaço na mão da princesa, outro - o maior na mão dele.

Em todos os castelos erguidos meninas montando guarda, com as espadas erguidas atiravam-lhe passas e soldadinhos de chumbo. Eram princesas de verdade! Hialmar navegava ora pelo meio dos bosques, ora por dentro de grandes salões, ora pelas ruas de uma cidade.

E foi assim que atravessou a cidade onde vivia sua amada, aquela que o trouxera nos braços durante tanto tempo, e que muito o amava.

Ao vê-lo passar, ela abanou-lhe a mãos, fez muitos cumprimentos, e cantou os lindos versos que lhe mandara, e que ela mesmo tinha composto:

" Em ti pensando, Hialmar, passo as horas
Recordo quando eras pequenino,
E eu me curvava para o teu bercinho,
Beijando-te nas faces, meu menino!

Meus foram teus primeiros balbucios;
Hoje te envio este saudoso adeus,
Pedindo que o Senhor sempre te guarde
Para que alcances teu lugar nos céus!"

E todos os passarinhos cantavam com ela, as flores dançavam nas hastes e as velhas árvores sacudiam a fronde, porque o Velho-do-Sono contava suas histórias para eles também.

QUARTA-FEIRA

Como chovia!

Hialmar ouvia o barulho da chuva mesmo dormindo, e quando o Velho-do-Sono abriu a janela, a água já estava tocando o peitoril: havia um verdadeiro lago em frente à casa, e nele se via um lindo barco.

- Queres embarcar comigo, pequeno Hialmar? - perguntou o Velho-do-Sono. - Visitaremos esta noite terras estrangeiras, e amanhã cedo estaremos de volta.

E no mesmo instante Hialmar, trajando sua roupa domingueira, estava a bordo do navio.

Já tinha cessado a chuva, e o tempo agora era claro. Navegavam rua abaixo, passaram pela igreja, e já estavam flutuando sobre o mar imenso. Não tardou que perdessem de vista a cidade e a terra; só avistavam um bando de cegonhas que vinham do país de Hialmar, e iam em busca de outra terra mais quente. Voavam uma atrás da outra, em fila, e já tinham deixado a terra muito para trás. Uma delas, porém, estava tão fraca, que as asas mal podiam sustê-la; vinha no fim da fila, e distanciava-se pouco a pouco das outras. Por fim foi baixando o voo, de asas distendidas, ainda tentou continuar a movê-las, mas em vão: elas tocaram a cordoagem do navio, a ave foi deslizando pela vela, e zaz! caiu no convés.

Apanhou-a então o grumete e levou-a para o galinheiro, onde viviam misturados, além de galinhas, patos e perus, tudo na maior confusão.

- Mas olhem, que sujeito esquisito! - disseram todas as galinhas.

O peru inchou até onde pode, e depois perguntou-lhe quem era, enquanto os patos iam recuando, empurrando-se uns aos outros, e dizendo somente:

- Quá, quá, quá! como quem dizia; Idiota, idiota, idiota!

Contou-lhes então a cegonha o que sabia. Falou-lhes na sua África, tão  quente, nas pirâmides, e da avestruz que corre no deserto, como um cavalo selvagem. Mas os patos não entenderam nada do que ela contou, e só o que faziam era empurrar-se uns aos outros, dizendo:

- Pois já se viu ave mais estúpida?

Continua: quinta-feira, …


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