sexta-feira, 13 de junho de 2025

Asas da Poesia * 37 *

 


Poema de
SAMMIS REACHERS
São Gonçalo/RJ

Lantejoula

A menina, ainda em seus quatorze anos, 
anotava o nome dos que não a notavam. 

Nem era ninguém, mocinha ainda,
e já tecia galáxias em seu coração de fiandeira.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

A grandeza imaginária
que todo vaidoso tem,
é uma estrela solitária
brilhando sobre... ninguém... 
= = = = = =

Soneto de
ANTERO DE QUENTAL
Ponta Delgada/Portugal, 1842 – 1891

Uma Amiga

Aqueles que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo...
Estendo os braços e nas trevas beijo
Visões que a noite evoca o sentimento...

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos... que eu invejo...
Passam por mim... mas como que tem pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Não resta uma flor só, uma só rosa...
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu só foste fiel - tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes...
Para ver o meu mal... e escarnece-o!
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Trova de
NEIDE ROCHA PORTUGAL
Bandeirantes/PR

Tua cantiga de amor
adormece em tempos idos,
mas o vento, a meu favor,
vem soprá-la em meus ouvidos!
= = = = = = 

Poema de
MYRTHES MAZZA MASIERO
São José dos Campos/SP

Duelo íntimo

Esta noite
Fora do meu costume,
Eu me nego a me deitar nessa cama vazia
Enrolada nos restos de tua ausência
Prolongada
E sempre impune...

Esta noite
Prefiro dormir sozinha e encurralada
Neste abandono
Sob a coberta pesada
De minhas emoções extenuadas,
No chão frio do meu sono...

Prefiro qualquer coisa
Que ficar nesta noite sem fim,
A esperar que tua ausência
Tão presente e contínua,
Estenda sobre mim,
Neste corpo sem dono,
Os restos mortais de um amor
Desgastado, esfarrapado
E em ruína!
= = = = = = 

Trova de
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG
São Fidélis/RJ

Procura longa e constante,
num sempre querer achar…
Um sonho louco e distante,
impossível de alcançar…
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Soneto de
EUCLIDES DA CUNHA
Cantagalo/RJ, 1866 – 1909, Rio de Janeiro/RJ

Dedicatória

Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;

Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - deste grupo bem no meio -

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A poesia se engalana,
mas só se torna completa,
quando se faz soberana
na voz do próprio poeta!
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964

Herança

Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Alegrias coleciono
neste meu tardio amor.
É na colheita do outono
que os frutos têm mais sabor.
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Poema de 
GUILHERME DE ALMEIDA 
Campinas/SP, 1890-1969, São Paulo/SP

Nós, I

O pequenino livro, em que me atrevo
a mudar numa trêmula cantiga
todo o nosso romance, ó minha amiga,
será, mais tarde, nosso eterno enlevo.

Tudo o que fui, tudo o que foste eu devo
dizer-te: e tu consentirás que o diga,
que te relembre a nossa vida antiga,
nos dolorosos versos que te escrevo.

Quando, velhos e tristes, na memória
rebuscarmos a triste e velha história
dos nossos pobres corações defuntos,

que estes versos, nas horas de saudade,
prolonguem numa doce eternidade
os poucos meses que vivemos juntos.
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Das estações, a mais triste,
a que mais me causa dor,
é a primavera que existe
num coração já sem flor!
= = = = = = 

Hino de
TUPÃSSI/ PR

Na planície verdejante e ondulada
Na paisagem mais linda que há
Tu nasceste Tupãssi adorada
Filha altiva do gigante Paraná
Na clareira da floresta então aberta
Na marcha rumo à civilização
Implantaram esta cívica oferta
Que será eterna em nosso coração.

Quanto amor na ideal trajetória
Da lavoura eclodindo no chão
A mostrar que o labor traz a vitória
Dos que lutam com fé e união
Terra da mãe de Deus, Tupãssi.
Minha vida e meu bem querer
Outra igual juro que nunca vi
Sou teu filho e por ti vou viver.

Os verdes campos de riquezas colossais
Nos garantem um futuro alvissareiro
Com ajuda de braços leais,
Nós seremos um grande celeiro
Um amanhã radiante este é o tema
Desta terra de paz e esplendor
Pois unidos venceremos, eis o lema.
De um povo capaz e lutador.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Tiro a máscara e ouço aflita,
de um mar de farsas sem fim,
meu outro eu que ainda grita
por vida dentro de mim.
= = = = = = 

Poema de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

O que se Escuta numa Velha Caixa de Música

Nunca roubei um beijo. O beijo dá-se,
ou permuta-se, mas naturalmente.
Em seu sabor seria diferente
se, em vez de ser trocado, se furtasse.

Todo beijo de amor, longo ou fugace,
deve ser u prazer que a ambos contente.
Quando, encantado, o coração consente,
beija-se a boca, não se beija a face.

Não toquemos na flor maravilhosa,
seja qual for a sedução do ensejo,
vendo-a ofertar-se, fácil e formosa.

Como os árabes, loucos de desejo,
amemos a roseira, olhando a rosa,
roubemos a mulher e não o beijo.
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Trova de
ADOLFO MACEDO
Magé/RJ

Condeno toda arbitragem
que muda as regras da história...
- Vencer no grito é vantagem,
mas sem gosto de vitória.
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Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Rosa de sangue

Dom sublime, a Poesia furta ao solo
as almas simples que Deus prestigia.
E transforma um pigmeu num louro Apolo,
glorificado à luz que não pedia!

Poesia é mãe que o filho abraça e ao colo
recolhe a dor que o peito lhe crucia.
Terno traço de união de polo a polo,
é sol na treva... é luar, em pleno dia!

Poesia é amar a própria angústia! É erguer
a taça da amargura e, sem morrer,
sorve-la, gota a gota, em noite incalma!

É estigma? É carisma? Glória ou cruz?
Poesia é estranha rosa, que seduz:
- Rosa de Sangue... com perfume de Alma!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Lá no céu caiu um cravo
de tão grande desfolhou.
Quem não amou neste mundo
no outro não se salvou.
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Soneto de
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

Soneto da desesperança

De não poder viver sua esperança
Transformou-a em estátua e deu-lhe um nicho
Secreto, onde ao sabor do seu capricho
Fugisse a vê-la como uma criança.

Tão cauteloso fez-se em seus cuidados
De não mostrá-la ao mundo, que a queria
Que por zelo demais, ficaram um dia
Irremediavelmente separados.

Mas eram tais os seus ciúmes dela
Tão grande a dor de não poder vivê-la,
Que em desespero, resolveu-se: - Mato-a!

E foi assim que triste como um bicho
Uma noite subiu até o nicho
E abriu o coração diante da estátua.
= = = = = = = = =  

Trova de
HENRIETTE EFFENBERGER
Bragança Paulista/SP

A paz nem sempre é perfeita,
esconde-se em descaminhos,
entre dores, fica à espreita,
como rosa entre os espinhos.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Bárbara

Erguendo o cálix que o Xerez perfuma.
Loura a trança alastrando-lhe os joelhos,
Dentes níveos em lábios tão vermelhos,
Como boiando em purpurina escuma;

Um dorso de Valquíria... alvo de bruma,
Pequenos pés sob infantis artelhos,
Olhos vivos, tão vivos, como espelhos,
Mas como eles também sem chama alguma;

Garganta de um palor alabastrino,
Que harmonias e músicas respira...
No lábio - um beijo... no beijar - um hino;

Harpa eólia a esperar que o vento a fira,
- Um pedaço de mármore divino...
- É o retrato de Bárbara - a Hetaira. 
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Trova de
JESSÉ NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

À mesa, família unida;
passou o tempo e, afinal,
cada um no lar, na vida,
vive em mundo digital...
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

As folhagens agitadas
sentem o frescor
do crepúsculo
que vai de encontro
ao horizonte, enquanto
gaivotas repousam
no pôr do sol.
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Trova de
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora/MG

Ajuda os de mãos vazias,
porque colheita não temos
igual à das alegrias
que vêm do bem que fazemos!…
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Não me esqueço…

Não me esqueço dos versos comoventes
que escrevi com perene inspiração,
quando vivi nos chapadões florentes
da minha terra em meio do Sertão.

Depois, parti... Sofri dores pungentes
numa luta sem fim de solidão.
Desolado, vivi dias ingentes
e se caí, jamais fiquei no chão.

Vejo, porém, que os meus cabelos brancos
são apenas troféu para consolo
de quem viveu aos trancos e barrancos...

Desafiei a vida, estou cansado,
só resta agora um pensamento tolo;
sou poeta, sou livre e aposentado.
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Trova de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

– Depressa!… A bolsa ou a vida.
– Mas, que sufoco, senhor!…
Diz a livreira polida.
– Não sabe o nome do autor?
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

No silêncio de um olhar

É na distância de um primeiro olhar
que se dá o primeiro beijo,
tímido, 
desajeitado,
por vezes estranho
e outras delicado,
deixando um arrepio na pele,
sem que os lábios 
se tenham verdadeiramente tocado.

Palavras ditas no silêncio,
gestos sentidos sem tocar,
um misto de sentimentos
sentidos num simples olhar. 

Sem fronteiras,
outras barreiras,
sem obstáculos a transpor.
Apenas um coração aberto,
tão cheio de amor.

Por mais breve que seja um olhar
poderá prender, 
cativar,
poderá ser, 
estar,
querer,
sonhar.

Olha-me com atenção
e, no pleno silêncio das nossas vozes,
ouve o meu coração.
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Trova de
SUELY BRAGA
Osório/RS

Muitas rosas só não falam.
      Não nos ferem com espinhos.
      Um doce perfume exalam
      e nos cobrem de carinhos.
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Poema de
SILMAR BOHRER
Caçador/SC

Oh sorte!

As rimas andam ausentes
nestas primícias de agosto,
estarão - será - descontentes
ou mesmo com algum desgosto ?

Não consigo os mais saborosos
dos meus versos companheiros,
por isso andam desgostosos
aqueles versinhos brejeiros.

Um versejador de pés-quebrados
não pode querer assim tantos
mais do que uns mal rimados,

Mas oh sorte, a Poesia tem benevolência
me borrifando com seus encantos
algum bálsamo pura essência.
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

E agora, vovô?
– Agora,
nas mãos dos netos,
sou que nem ioiô. 
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Coração errante
 
Reinado de infinitas amarguras
És tu, meu coração débil, sofrido.
Demais amaste e, não correspondido
Como antes não sorris, não mais fulguras.
 
Lamentas tuas tristes desventuras
No lúgubre jardim já ressequido,
Em vão buscas o aroma outrora haurido,
Nas barras da saudade te enclausuras.
 
Fizeste das lembranças o universo
Repleto de plangência, enfim, perverso
Onde há daquela luz rasto pequeno.
 
Entendo que vagueies sem consolo,
Seria assaz injusto se por tolo
Tivesse quem está de amor tão pleno.
= = = = = = = = =  

Poetrix de
GOULART GOMES
Salvador/BA

Pessoix

um terço de mim delira
um terço de mim pondera
outro terço: ah! quem dera!
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Quem me alimenta

Quando alguém se esvai de  mim, há  alguém que  entra, 
mas minha alma se transforma em gratidão.
Nunca esqueço quem deu, ao meu, coração,
a afeição por cada irmão que nele  adentra.

Quem se alimenta do que eu amo, me alimenta, 
não  violenta meu amor com desesperos; 
o que é  sensível  não carece dos esmeros 
de quem se enfeita com a mais fútil vestimenta.

Coloquial,  o meu amor sempre evita 
erudições, porque a vil demagogia 
é  prima-irmã de qualquer vã diplomacia 

que faz do amor, a indiferença que o  habita
e o transforma num  relógio  emperrado
sobre o silêncio de um balcão... abandonado.
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Trova de
ANDRÉ RICARDO ROGÉRIO
Arapongas/PR

Quando, então, do céu descer
um brilho no seu olhar,
é porque no entardecer 
meus sonhos vão te buscar.
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Poema de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

A luz

Ela veio...( E a minha alma tinha a porta
aberta, e ela entrou...Casa vazia
e estranha, esta que em plena luz do dia
lembrava a tumba de uma noite morta...)

Que ela havia chegado, eu nem sabia...
Mas, pouco a pouco, e a data não importa,
minha alma, por encanto, se conforta,
e há risos pela casa...E há alegria...

Quem abrira as janelas? Quem levara
o fantasma da dor sempre ao meu lado?
Os antigos retratos, quem rasgara?

E acabei por fazer a descoberta:
- ela espantara as sombras do passado
e a luz entrara pela porta aberta!
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Trova de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

O homem sofre ante os impulsos
das religiões e das ciências
pois pior que algemar pulsos,
é agrilhoar consciências!...
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Poema de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

A cor dos olhos dela

O matiz dos olhos dela é uma pintura,
Mais parece um manso lago transparente;
Onde o azul das águas traça a formosura,
Misturado ao verde do meio ambiente.
       
Em seus olhos, vejo um lago cristalino,
Sem perder o verde, réplica do céu...
Quando chove, lembra o choro repentino
Da saudade que ela tem de mim, ao léu.
            
Traz, a cor dos olhos dela, tal beleza,
Um requinte de magia sem igual;
Predomina o verde tom da Natureza,
Com o anil do céu a dar toque final.
             
Este lago azul, matiz verde ao redor,
Normalmente calmo, sofre oscilação.
Vem com seus revoltos que já sei de cor,
Presos aos ditames de seu coração.
              
Foi, a cor dos olhos dela, o atrativo
Que me pôs sob os grilhões de seu fascínio...
Que em meu peito fez lugar mais que exclusivo;
Coração meu, à mercê de seu domínio! 
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Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

A casinha é sem riqueza,
mas nela a paixão é tanta,
que não floresce a tristeza.
Solidão… a gente espanta!
= = = = = = = = =  

Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Além mar

Há mesmo quem diga que o mar tem mistérios
jamais desvendados por seus navegantes; 
que a Terra, no centro dos seus hemisférios,
além de quaisquer profundezas distantes,

conserva um lugar, o maior dos impérios,
sob a proteção das carrancas gigantes,
que impedem de entrar os krakens deletérios, 
e acolhe em seu seio os marujos errantes...

O certo é que as ondas que espraiam, pacatas, 
irmãs das tormentas que afundam fragatas, 
não trazem notícias do abismo profundo...

E enquanto as procelas sacodem navios
que ainda navegam nos mares bravios
os náufragos dormem no fundo do mundo.
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Olavo Bilac (Uma vida…)


No alto do morro, que demorava a cavaleiro da fazenda, ficava a casinha do velho preto, do velho e meigo pai João, tão velho que já não podia andar, e que já todos os seus dentes tinham caído.

A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio da verdura das folhagens abrigavam carinhosamente aquele centenário, a quem a morte parecia haver esquecido no lindo recanto da terra brasileira. Pai João, como o chamavam todos, envelhecera no trabalho. Por muitos e muitos anos a fio, os seus braços empunhavam a enxada, beneficiando a terra. Tinha visto, pouco a pouco, transformarem-se os lugares de incultos em produtivos, e conhecera toda a gente que por ali passara: já era homem feito quando os velhos de agora ainda eram meninos, correndo às soltas pelos campos; vira nascer e morrer muita gente, e vira a fazenda passar de senhores a senhores... Agora, havia muito tempo que não trabalhava: mas a gratidão dos donos da terra lhe havia reservado aquele calmo retiro, último abrigo de toda uma vida de labor e dedicação.

Logo ao clarear da madrugada, pai João saía, arrastando-se, da sua cabana, e vinha sentar-se à porta, no rústico banco de pau. Já o encontrava ali os primeiros raios de sol, que lhe vinham beijar a cabeça emaranhada em duros cabelos carapinhados, alvos como a neve. Em torno, a paisagem esplendia. A encosta da colina, atapetada de uma relva macia, descia docemente para o vale, onde assentavam as casas da fazenda. Lá estavam, longe, as casas dos colonos, os paióis, as grandes casas das máquinas, a capela pequenina e branca, e, cercando tudo, de um lado as plantações ricas, e do outro o campo vasto, em que o galo pastava, numeroso e nédio. O velho preto, magro e trêmulo, sentava-se, cruzava no colo as mãos descarnadas, e começava a acompanhar com amor a agitação de todo aquele trabalho, que já não era para o seu corpo sem forças. Dali, via ele a partida matinal para o campo, — o bando alegre dos lavradores fortes, enchendo com a vozeria das suas cantigas a amplidão do céu. Dali, ouvia ele os toques da sineta, transmitindo ordens, marcando as horas das refeições e do descanso.

Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João, comendo, ia com a voz fraca dizendo histórias ingênuas, que os pequenos escutavam com delícia. Depois, dormia, à sombra, enquanto a viração embalava docemente as árvores e as borboletas revoavam sobre as flores silvestres. Parecia o gênio tutelar da fazenda, aquele bom velho, que a vira nascer, crescer e prosperar...

Ao anoitecer, recolhia-se. Mas, não raro, por noites claras, quando a lua brilhava no céu, vinha a gente de baixo conversar com ele, e dos seus lábios ouvir a história viva daqueles sítios; e muitos colonos brancos, vindos de longes países, gostavam de receber lições e os conselhos do antigo escravo.

Foi numa noite dessas que eu conversei com ele, no alto do morro, ouvindo lá embaixo, nas casas dos colonos, a música das sanfonas e das violas.

— Você, em toda essa vida tão comprida, deve ter sofrido muito, hein, pai João? — perguntei com interesse.

Ele levantou para mim os olhos quase apagados, e teve um sorriso. Depois, começou a falar, como um pobre preto ignorante que era, na sua linguagem rude; não guardei memória de suas palavras, mas guardei o sentido do que elas queriam dizer:

— “Toda a gente sofre neste mundo, moço! Mas eu não tenho muita razão de queixa... é verdade que, nos primeiros tempos, tive de chorar bastante, com a saudade da minha terra; e depois, o cativeiro (no tempo em que havia cativos!) era uma grande maldade!... Mas, se houve senhores maus, que castigavam barbaramente os escravos, também houve senhores bons, que não gostavam de ver o sofrimento deles. Eu fui um dos primeiros homens que trabalharam aqui. Quando vim, tudo isso era mato. Aqui gastei toda minha mocidade. Logo depois, porém, fiquei livre, e fui um amigo daquele de quem havia sido um escravo. Era eu o seu homem de confiança. Só no meu trabalho é que o senhor tinha fé. Tive filhos: quando houve guerra do Paraguai, dois de meus filhos, já livres, foram brigar com a gente do Lopes; um ficou por lá, varado de balas; mas o outro voltou e veio morrer muito depois, nos meus braços, deixando-me cheio de netos... Esses netos andam por aí ganhando a sua vida, como os brancos, sustentando as suas famílias, trabalhando para si e para os seus. E eu hoje só conheço esta terra, onde me fiz homem, esta terra que eu lavrei enquanto tive forças, e que ainda hoje, para me pagar o bem que eu lhe fiz, me dá a sombra das suas árvores, e a comida que me sustenta. 

“Toda a gente sofre nesta vida, moço: mas outros sofreram mais do que eu... É por isso que eu não me queixo! Deus nosso senhor não quis que eu acabasse os meus dias na miséria, sozinho, sem ter quem me desse um pedaço de pão, e quem me fechasse os olhos na hora da morte. Que é que eu posso querer mais? Toda a gente aqui é minha amiga; toda gente sabe que o coitado do pai João nunca fez mal a ninguém. Também, todo o povo vem sempre saber como vai o velho... Ah! Eu só tenho medo da morte, porque ela me há de tirar deste cantinho que amo tanto! Não sofri muito, não, moço, porque sempre fui trabalhador, e o trabalho sempre faz a gente feliz!...”

Assim falava pai João... eu, ouvindo-o, pensava em todo o seu passado. Ali estava um homem que dera tudo à terra querida: dera-lhe o suor de seu rosto, o melhor da sua vida, toda a força do seu corpo e todo amor da sua alma, — e ainda o sangue de seus filhos... e, agora, já quase morto, ainda amava como nos primeiros dias; e a sua mão, cansada e trêmula, estendida sobre os campos, parecia abençoar, num gesto derradeiro de proteção e carinho.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro — Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
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