Na praça central da cidade, dois rabugentos, Arlindo e Eulália, se encontravam todos os dias no mesmo banco, discutindo sobre tudo e sobre nada.
— Olha só, Arlindo! — começou Eulália, ajeitando os óculos. — Você viu o que estão fazendo com as festas de São João? Agora têm até DJ! DJ! No meu tempo, a gente tinha sanfona e fogueira, e era assim que dançava!
Arlindo bufou, cruzando os braços. — DJ? Bah! Isso é coisa de jovem que não sabe o que é música de verdade! Antigamente, a gente dançava forró de verdade, e não essa barulheira eletrônica!
— Barulheira? — Eulália riu, sarcástica. — E você acha que o seu forró de antigamente era suave como um sussurro? Eu me lembro das suas tentativas de dançar! Mais parecia um pato desengonçado!
Arlindo arregalou os olhos. — Pato? Eu era um verdadeiro galã! As meninas se derretiam ao me ver dançar! E você, com seu vestido de chita, parecia um buquê de flores murchas!
— Ao menos eu não precisava de um milagre para fazer os outros dançarem! — Eulália respondeu, dando uma risadinha. — As moças se divertiam, ao contrário de você, que ficava parado, esperando a música acabar!
Arlindo fez uma expressão de indignação. — Parado? Você se esqueceu do meu famoso “passo do relógio”? Era um sucesso! Todo mundo imitava!
— Sucesso? Só se foi sucesso para as formigas que você pisoteou! — Eulália gargalhou. — Lembro que uma vez, você quase derrubou a mesa de comes e bebes!
Arlindo apontou o dedo para ela. — E você, com seu jeito de crítica de arte, que só sabia reclamar da comida! “Não tem sabor!”, “não tem tempero!” Ah, Eulália, você era a rainha da reclamação!
— E você, o rei da nostalgia! — replicou Eulália, com um sorriso malicioso. — Fica falando do passado como se fosse um conto de fadas, mas eu lembro bem! O que você chamava de “aventuras” eram na verdade escapadas com a sua bicicleta quebrada!
— Era uma bicicleta clássica! — Arlindo defendeu, balançando a cabeça. — E quem mais teria coragem de descer aquela ladeira sem freios? Aquilo, minha cara, era emoção!
— Emoção? Ou seria imprudência? — Eulália riu, se divertindo com a lembrança. — Eu me lembro do dia em que você quase se atirou no lago! Quase foi um “peixe fora d’água”!
Arlindo ficou pensativo. — É, mas pelo menos eu fiz história! E agora? O que você tem feito? Apenas ficar aqui reclamando da vida?
— Olha, se a vida atual é isso que a gente vê por aí, eu prefiro o passado! A internet? Uma invenção do diabo! Olha a juventude, todos com as cabeças enfiadas em telas!
— E o que você propõe? Que voltemos a escrever cartas? — Arlindo disse, levantando as sobrancelhas. — A última vez que você escreveu uma carta foi para reclamar do seu sofá!
— E que sofá! — Eulália exclamou. — Você se lembra? Aquele sofá tinha mais buracos que um queijo suíço! E você dizia que era “vintage”!
— Vintage é uma palavra moderna! — Arlindo gritou, gesticulando. — Na minha época, a gente chamava de “velho”! E não precisava de palavras chiques para isso!
— E se eu chamasse você de “vintage”? — Eulália perguntou, com um sorriso travesso. — Porque se você não parar de reclamar, vou ter que te colocar em uma vitrine!
— Ah, não se preocupe! Eu não sou tão fácil de ser colocado em uma vitrine! — Arlindo respondeu, piscando. — A última vez que tentei entrar em uma, quase me machuquei!
Eulália se virou para ele, segurando o riso. — Eu só espero que, se um dia você for para uma vitrine, não coloque uma placa dizendo “não toque”! Porque as pessoas podem acabar acreditando!
Arlindo bufou novamente. — Sabe de uma coisa, Eulália? Apesar de tudo, você me faz rir. Mesmo que eu tenha que aguentar suas histórias do passado.
— E você, Arlindo, me faz lembrar que o presente é só uma forma de eu me divertir com os seus devaneios! — Eulália respondeu, piscando.
Os dois velhos rabugentos continuaram a discutir, mas a verdade é que, no fundo, eles sabiam que a amizade que construíram ao longo dos anos era mais forte que qualquer angústia do presente ou nostalgia do passado. E, assim, entre risadas e provocações, o dia passava na praça, onde o passado e o presente se encontravam numa dança cômica e eterna.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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