sexta-feira, 13 de junho de 2025

Olavo Bilac (Uma vida…)


No alto do morro, que demorava a cavaleiro da fazenda, ficava a casinha do velho preto, do velho e meigo pai João, tão velho que já não podia andar, e que já todos os seus dentes tinham caído.

A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio da verdura das folhagens abrigavam carinhosamente aquele centenário, a quem a morte parecia haver esquecido no lindo recanto da terra brasileira. Pai João, como o chamavam todos, envelhecera no trabalho. Por muitos e muitos anos a fio, os seus braços empunhavam a enxada, beneficiando a terra. Tinha visto, pouco a pouco, transformarem-se os lugares de incultos em produtivos, e conhecera toda a gente que por ali passara: já era homem feito quando os velhos de agora ainda eram meninos, correndo às soltas pelos campos; vira nascer e morrer muita gente, e vira a fazenda passar de senhores a senhores... Agora, havia muito tempo que não trabalhava: mas a gratidão dos donos da terra lhe havia reservado aquele calmo retiro, último abrigo de toda uma vida de labor e dedicação.

Logo ao clarear da madrugada, pai João saía, arrastando-se, da sua cabana, e vinha sentar-se à porta, no rústico banco de pau. Já o encontrava ali os primeiros raios de sol, que lhe vinham beijar a cabeça emaranhada em duros cabelos carapinhados, alvos como a neve. Em torno, a paisagem esplendia. A encosta da colina, atapetada de uma relva macia, descia docemente para o vale, onde assentavam as casas da fazenda. Lá estavam, longe, as casas dos colonos, os paióis, as grandes casas das máquinas, a capela pequenina e branca, e, cercando tudo, de um lado as plantações ricas, e do outro o campo vasto, em que o galo pastava, numeroso e nédio. O velho preto, magro e trêmulo, sentava-se, cruzava no colo as mãos descarnadas, e começava a acompanhar com amor a agitação de todo aquele trabalho, que já não era para o seu corpo sem forças. Dali, via ele a partida matinal para o campo, — o bando alegre dos lavradores fortes, enchendo com a vozeria das suas cantigas a amplidão do céu. Dali, ouvia ele os toques da sineta, transmitindo ordens, marcando as horas das refeições e do descanso.

Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João, comendo, ia com a voz fraca dizendo histórias ingênuas, que os pequenos escutavam com delícia. Depois, dormia, à sombra, enquanto a viração embalava docemente as árvores e as borboletas revoavam sobre as flores silvestres. Parecia o gênio tutelar da fazenda, aquele bom velho, que a vira nascer, crescer e prosperar...

Ao anoitecer, recolhia-se. Mas, não raro, por noites claras, quando a lua brilhava no céu, vinha a gente de baixo conversar com ele, e dos seus lábios ouvir a história viva daqueles sítios; e muitos colonos brancos, vindos de longes países, gostavam de receber lições e os conselhos do antigo escravo.

Foi numa noite dessas que eu conversei com ele, no alto do morro, ouvindo lá embaixo, nas casas dos colonos, a música das sanfonas e das violas.

— Você, em toda essa vida tão comprida, deve ter sofrido muito, hein, pai João? — perguntei com interesse.

Ele levantou para mim os olhos quase apagados, e teve um sorriso. Depois, começou a falar, como um pobre preto ignorante que era, na sua linguagem rude; não guardei memória de suas palavras, mas guardei o sentido do que elas queriam dizer:

— “Toda a gente sofre neste mundo, moço! Mas eu não tenho muita razão de queixa... é verdade que, nos primeiros tempos, tive de chorar bastante, com a saudade da minha terra; e depois, o cativeiro (no tempo em que havia cativos!) era uma grande maldade!... Mas, se houve senhores maus, que castigavam barbaramente os escravos, também houve senhores bons, que não gostavam de ver o sofrimento deles. Eu fui um dos primeiros homens que trabalharam aqui. Quando vim, tudo isso era mato. Aqui gastei toda minha mocidade. Logo depois, porém, fiquei livre, e fui um amigo daquele de quem havia sido um escravo. Era eu o seu homem de confiança. Só no meu trabalho é que o senhor tinha fé. Tive filhos: quando houve guerra do Paraguai, dois de meus filhos, já livres, foram brigar com a gente do Lopes; um ficou por lá, varado de balas; mas o outro voltou e veio morrer muito depois, nos meus braços, deixando-me cheio de netos... Esses netos andam por aí ganhando a sua vida, como os brancos, sustentando as suas famílias, trabalhando para si e para os seus. E eu hoje só conheço esta terra, onde me fiz homem, esta terra que eu lavrei enquanto tive forças, e que ainda hoje, para me pagar o bem que eu lhe fiz, me dá a sombra das suas árvores, e a comida que me sustenta. 

“Toda a gente sofre nesta vida, moço: mas outros sofreram mais do que eu... É por isso que eu não me queixo! Deus nosso senhor não quis que eu acabasse os meus dias na miséria, sozinho, sem ter quem me desse um pedaço de pão, e quem me fechasse os olhos na hora da morte. Que é que eu posso querer mais? Toda a gente aqui é minha amiga; toda gente sabe que o coitado do pai João nunca fez mal a ninguém. Também, todo o povo vem sempre saber como vai o velho... Ah! Eu só tenho medo da morte, porque ela me há de tirar deste cantinho que amo tanto! Não sofri muito, não, moço, porque sempre fui trabalhador, e o trabalho sempre faz a gente feliz!...”

Assim falava pai João... eu, ouvindo-o, pensava em todo o seu passado. Ali estava um homem que dera tudo à terra querida: dera-lhe o suor de seu rosto, o melhor da sua vida, toda a força do seu corpo e todo amor da sua alma, — e ainda o sangue de seus filhos... e, agora, já quase morto, ainda amava como nos primeiros dias; e a sua mão, cansada e trêmula, estendida sobre os campos, parecia abençoar, num gesto derradeiro de proteção e carinho.
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Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro — Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing

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