quarta-feira, 18 de junho de 2025

Coelho Neto (O Mentiroso)


Podia jurar! Riam-se dele. Mentia tanto, que ninguém dava crédito ao que dizia. Às vezes queixava-se de moléstias: e, longe de o tratarem carinhosamente, repreendiam-no, ameaçavam-no, quando não lhe dobravam os exercícios de escrita; e, pobrezinho! Muitas e muitas noites, ardendo em febre, debruçado à carteira, copiava compridas descrições, — e tudo porque mentia. Os mesmos companheiros repeliam-no quando ele aparecia contando um fato:

— Ora, sai daqui, mentiroso! Pensas, então, que somo tolos?

Uma manhã desceu ao rio em companhia de outro. Chovera abundantemente dias antes, e o rio assoberbado, transbordara.

Os dois meninos hesitaram algum tempo antes de tirar as roupas; o mais velho, porém, nadador intrépido, acoroçoou André, o mentiroso:

— Vamos, a correnteza é insignificante e não precisamos ir para o meio do rio. Vamos!

Animado, André atirou-se ao rio; a correnteza, porém, começou a arrastá-lo, de sorte que, quando ele quis tomar pé, a água cobriu-lhe a cabeça. O outro boiava cantarolando.

De repente ouviu um grito angustiado: — Ai! — Voltou-se, e, não vendo André, teve um sobressalto; logo, porém, considerando, sorriu: 

— Pois sim! Pensas que me enganas! 

E continuou a nadar tranquilamente. Mas André não aparecia: o menino ganhou a margem, lançou os olhos para os cantos, desconfiando de que o companheiro se houvesse escondido em alguma moita para assustá-lo; vendo, porém, que não aparecia, correu aterrorizado para o colégio, levando a tristíssima notícia. 

Desceram criados, e, atirando-se ao rio, procuraram o pequeno que as águas haviam arrebatado. 

E o companheiro, em pranto, repetia com sentimento:

— Eu bem ouvi o seu grito, bem ouvi, mas ele mentia tanto...

Dias depois, apareceu coberto de ervas e horrivelmente deformado o cadáver do pequeno André; e o companheiro, vendo-o, soluçou ainda: 

— Coitado! Mas foi por culpa dele. Mentia tanto!

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HENRIQUE MAXIMIANO COELHO NETO nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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