Minha mãe guardava as cinzas, e as retirava quando frias, seguidamente, conforme a necessidade. Levava-as para fora e as peneirava. As cinzas miúdas eram guardadas em uma lata com tampa, e serviriam de matéria-prima para sabões de soda; enquanto as cinzas mais espessas ficavam sob o fogão, junto à lenha, e serviam de lastro à nova queima.
Era, no bem dizer, um reaproveitamento das suas últimas faíscas, a dar vida às novas. E a vida seguia.
No tacho cobreado em fogão improvisado no quintal, ela misturava água, cinza, sebo/gordura com osso, esse buscado por mim no matadouro, adicionava uma porção de soda e punha tudo a ferver sob fogo alto e, depois de horas nessa lida, com os olhos avermelhados pela fumaça e o corpo cheirando a tudo, menos à flagrância do corpo feminino, ela deixava o tacho em descanso e corria para seu banho e troca de roupa.
Tudo automático, instintivo, às pressas e sem reclamação, da maneira como aprendera com sua mãe que aprendera com a dela na sequência natural das gerações. As mães sempre foram, com seus exemplos, as ótimas professoras dos filhos. Os pais cuidavam da manutenção e as mães, de todo o resto de tarefas, querendo ou não.
Claro que estando sempre ao seu redor e, mesmo sendo crianças, a observávamos nos movimentos e detalhes. Sua luta era corrida diária entre tanque, fogão, ferro, vassoura e arrumação de camas, filhos, marido, compras, pagamentos. Isso é, verdadeira equilibrista em fio de arame bambo à força da ventania, e o fazia como consequência natural da vida sem se aperceber que as tarefas superavam em muito a de todos os demais, se as juntassem num só feixe para comparar.
O sabão? Depois de alguns dias em descanso ainda no tacho, ela o retirava e, com uso de uma pequena tábua de madeira a lhe servir de medida, cortava-o em longos pedaços, separava-os e os emprateleirava no interior da privada. Lá os deixava para secarem, sendo retirados de um em um, conforme a necessidade.
O sabão de cinza, na medida de seu tacho, duravam trinta, quarenta dias e até mais, enquanto mais cinzas iam sendo juntadas fora e dentro de casa.
Nessa pequena lembrança, que faz parte, eu acho, do grupo das lembranças que escorregam para o presente sem que a forcemos, vem-me à garganta uma espécie de nó a fazer do gorgomilo uma fonte de emoção. Sim, dessas que nascem sem que queiramos, e que segue na trajetória dos olhos a espinhar.
Talvez sejam as fumaças daquele velho fogão a lenha erguido com tijolos e alisado com vermelhão sobre a calda de cimento, que inventam de inventar coisas para que liguem esse hoje moderno e vazio, às coisas que nossas mães, com suas sutilezas emocionais, nem percebiam. Fumaças do ontem…
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs: Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing.
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