0 cargueiro holandês Alkmaar voltava de Java, carregado de especiarias e outros materiais preciosos.
Fez escala em Southampton e os marinheiros tiveram permissão para descer à terra.
Um deles, Hendrijk Wersteeg, levava um macaco no ombro direito, um papagaio no ombro esquerdo e, a tiracolo, um pacote de tecidos indianos que tinha a intenção de vender na cidade, assim como seus animais.
Era o começo de primavera e a noite ainda caía cedo. Hendrijk Wersteeg caminhava a passos largos pelas ruas um tanto enevoadas que os lampiões a gás quase não iluminavam.
Na Above Bar Street, um senhor muito bem vestido o abordou perguntando se ele procurava um comprador para seu papagaio:
- Este pássaro - disse ele - resolveria meu problema. Eu vivo sozinho e preciso que falem comigo sem que eu tenha que responder.
Como a maioria dos marujos holandeses, Hendrijk Wersteeg falava inglês. Deu seu preço, que o desconhecido achou conveniente.
- Siga-me - disse este último. - Moro bastante longe. O senhor mesmo colocará o papagaio numa gaiola que tenho em casa. Desembrulhará seus tecidos e talvez eles me agradem.
Todo feliz com sua boa sorte, Hendrijk Wersteeg se foi com o cavalheiro, a quem, na esperança de fazer outra venda, elogiou durante o caminho seu macaco, que era, dizia ele, de uma raça um tanto rara, uma daquelas cujos exemplares resistem melhor ao clima da Inglaterra e que mais se afeiçoam a seu dono.
Mas logo Hendrijk Wersteeg parou de falar. Gastava suas palavras inteiramente à toa, pois o desconhecido não lhe respondia e nem mesmo parecia escutá-lo.
Continuaram seu caminho em silêncio, um ao lado do outro. Solitários, saudosos de suas florestas natais nos trópicos, o macaco assustado na névoa dava às vezes um gritinho parecido com o choro de uma criança recém-nascida, e o papagaio batia as asas.
No fim de uma hora de caminhada, o desconhecido disse bruscamente:
- Estamos chegando à minha casa.
Haviam saído da cidade. A estrada era ladeada por grandes parques, fechados por grades. De vez em quando, as árvores, as janelas iluminadas de uma casa de campo, e ouvia-se, a intervalos, o grito sinistro de uma sirene ao mar.
O desconhecido parou diante de uma grade, tirou do bolso um molho de chaves e abriu a porta que voltou a fechar depois que Hendrijk atravessou.
O marujo estava impressionado. Apenas entrevia, no fundo de um jardim, uma pequena mansão de aparência bastante boa, mas cujas persianas fechadas não deixavam passar luz alguma.
O desconhecido silencioso, a casa sem vida, tudo aquilo era bastante lúgubre. Mas Hendrijk lembrou-se de que o desconhecido vivia só.
"É um excêntrico", pensou, e, como um marujo holandês não é suficientemente rico para que alguém o atraia com a intenção de roubá-lo, teve vergonha de seu momento de ansiedade.
- Se tem fósforos, ilumine aqui para mim - disse o desconhecido introduzindo uma chave na fechadura que fechava a porta da casa de campo.
O marujo obedeceu e, assim que se encontraram no interior da casa, o desconhecido trouxe um lampião que logo iluminou um salão mobiliado com gosto.
Hendrijk Wersteeg sentia-se completamente tranquilo. Já alimentava a esperança de que seu estranho companheiro lhe compraria uma boa parte de seus tecidos.
O desconhecido, que saíra do salão, voltou com uma gaiola.
- Coloque aqui seu papagaio - disse ele. - Só o colocarei num poleiro quando ele estiver domesticado e souber disser o que quero que ele diga.
Então, depois de ter fechado a gaiola, com a qual o pássaro estava pasmo, pediu ao marujo que apanhasse o lampião e passasse para o cômodo vizinho onde havia, dizia ele, uma mesa confortável para estender as fazendas. Hendrijk Wersteeg obedeceu e entrou no quarto que lhe foi indicado. Imediatamente, ouviu a porta se fechar atrás dele, a chave girou. Ele estava preso.
Perplexo, colocou o lampião sobre a mesa e quis atirar-se contra a porta para derrubá-la.
- Um passo e está morto, marujo!
Erguendo a cabeça, Hendrijk viu, por uma fresta na qual ainda não havia reparado, o cano de um revólver apontado para ele. Aterrorizado, parou.
Não tinha como lutar, sua faca não lhe poderia servir naquelas circunstâncias, mesmo um revólver teria sido inútil. O desconhecido que o tinha nas mãos abrigava-se atrás da parede, ao lado da fresta por onde observava o marujo e por onde passava apenas a mão que empunhava o revólver.
- Ouça bem - disse o desconhecido - e obedeça. O serviço forçado que vai me prestar será recompensado. Mas não tem escolha. É preciso me obedecer sem hesitar, senão eu o matarei como a um cão. Abra a gaveta da mesa... Há nela um revólver de seis tiros, carregado com cinco balas. .. Pegue-o.
O marujo holandês obedecia quase inconscientemente. O macaco, em seu ombro, dava gritos de terror e tremia. O desconhecido continuou:
- Há uma cortina no fundo do quarto. Abra-a.
Aberta a cortina, Hendrijk viu uma alcova, na qual, sobre uma cama, pés e mãos atados, amordaçada, uma mulher o olhava com olhos cheios de desespero.
- Solte as mãos e os pés desta mulher - disse o desconhecido -, e tire-lhe a mordaça.
Executada a ordem, a mulher, muito jovem e de uma beleza admirável, atirou-se de joelhos na direção da fenda, exclamando:
- Harry, esta é uma armadilha infame! Você me atraiu a esta mansão para me assassinar. Você dizia tê-la alugado para que passássemos aqui os primeiros tempos de nossa reconciliação. Eu acreditava tê-lo convencido. Pensava que você finalmente tivesse a certeza de que nunca fui culpada!... Harry ! Pensava que você finalmente tinha a certeza de que nunca fui culpada!. .. Harry! Harry! Eu sou inocente!
- Não acredito - disse secamente o desconhecido.
- Harry ! Eu sou inocente! - repetiu a jovem senhora com voz embargada.
- Estas são suas últimas palavras. Eu as registro com cuidado. Serão repetidas durante toda a minha vida.
E a voz do desconhecido tremeu um pouco, mas voltou imediatamente a ser firme.
- Pois eu ainda a amo - acrescentou ele. Se a amasse menos, eu mesmo a mataria. Mas isto me é impossível, pois eu a amo. .. Agora, marujo, se, antes que eu tenha contado até dez, você não tiver posto uma bala na cabeça desta mulher, vai cair morto aos pés dela. Um, dois, três. ..
E antes que o desconhecido tivesse o tempo de contar até quatro, Hendrijk, desvairado, atirou na mulher, que, sempre de joelhos, o olhava fixamente. Ela caiu com o rosto contra o chão. A bala a havia atingido na testa. Imediatamente, um tiro partiu da fenda. Veio atingir o marujo na têmpora direita. Ele caiu de encontro à mesa enquanto o macaco, dando gritos agudos de terror, escondia-se em sua japona.
No dia seguinte, transeuntes que ouviram gritos estranhos vindos de uma casa de campo no subúrbio de Southampton avisaram a polícia que logo chegou para arrombar as portas.
Encontraram os cadáveres da jovem senhora e do marujo.
O macaco, saindo bruscamente da japona de seu dono, saltou no nariz de um dos policiais. Os policiais se assustaram a tal ponto que, dando alguns passos para trás, eles o abateram a tiros antes de ousarem se aproximar novamente.
A justiça informou. Pareceu claro que o marujo havia matado a senhora e se suicidara depois. As circunstâncias do drama, entretanto, pareciam misteriosas. Os dois cadáveres foram identificados sem dificuldade e a pergunta era como Lady Finngal, mulher de um lorde da Inglaterra, se encontrava sozinha numa casa de campo isolada, com um marujo que chegara na véspera a Southampton.
O proprietário da mansão não soube dar qualquer informação adequada para esclarecer a justiça. A casa de campo fora alugada, oito dias antes do drama, a um assim chamado Collins, de Manchester, que, aliás, nunca foi encontrado. Esse Collins usava óculos e tinha uma longa barba ruiva que poderia muito bem ser falsa.
O lorde chegou de Londres a toda pressa. Adorava sua mulher e sua dor dava pena. Como todos, nada compreendia daquele caso.
Após estes acontecimentos, ele se retirou do mundo. Vive na casa de Kensington, sem outra companhia além de um empregado e um papagaio que repete sem parar:
- Harry, eu sou inocente!
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GUILLAUME APOLLINAIRE (Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary de Wąż-Kostrowicki), Roma, 1880 – 1918, Paris, foi um escritor e crítico de arte francês, possivelmente o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX, conhecido particularmente por sua poesia sem pontuação e gráfica, e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, além de ser o criador da palavra Surrealismo. Chegou a ser preso, por uma semana, pelo roubo da Mona Lisa e de arte egípcia em um caso rumoroso. Enfraquecido por ferimentos que teve durante a Primeira Guerra Mundial, morreu precocemente ao contrair a gripe espanhola.
Fontes:
Guillaume Apollinaire. Os maridos das flores. Publicado originalmente em 1915.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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