segunda-feira, 30 de junho de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (A tristeza da lâmpada queimada)


EM UM CANTO esquecido da sala enorme, jogada dentro de uma caixa de papelão cheia de bugigangas, a pobre e indefesa lâmpada queimada se flagra derreada, totalmente entristecida, o coração repleto de lembranças imorredouras. Até pouco tempo, coisa de um mês, pendurada no bocal no meio da sala gigantesca, a belezura iluminava o ambiente deixando-o totalmente claro, onde uma agulha, se caísse no chão, seria achada com a maior facilidade. Hoje, queimada, à mercê das garras do abandono e a sanha do “salve-se quem puder,” espera pelo fatídico de uma partida sem adeus, sem as alacridades dos aplausos dos seres humanos que nunca, em nenhum momento, deixou ficassem nas edacidades (voracidades) das trevas do menosprezo. 

A lâmpada (ou melhor, a fluorescência que dela restou) relembra com tristeza as histórias de quando a sua robustez se fazia viril, não permitindo que nenhum canto da peça tivesse um tantinho assim que fosse, de obumbração (sombras). Ela foi, por muito tempo, o sol de um universo doméstico, iluminando histórias e aquecendo corações. Foi testemunha de amores que vingaram, de corações apaixonados que se entrelaçaram, bem ainda partícipe de brigas acirradas, de xingamentos descomedidos e lágrimas derramadas em vão pelo amor de um parente doente que partiu. Cada filamento de seu corpo, tinha seu destino traçado e o dela, fora feito para brilhar, fulgurar, reluzir sobressair, chamejar, raiar, ascuar (chamejar), até o fim. 

De repente, do nada, com um estalo sutil, num último lampejo de vida, ela se reduziu à obscuridade de um apagão inexorável, interminável, vitimada por uma pancada quase imperceptível como se a companhia de luz lhe apunhalasse, sem motivos aparentes, a caixa de barramento de todo o prédio. Sua chama se fez extinta, suprimida, eliminada, apagada, como se o dedo de uma mão invisível apertasse o interruptor de forma irrefletida e impulsiva. Desde esse instante, a pobre lâmpada não mais se viu altaneira, com a sua fonte de luz plena e percuciente (penetrante), apenas um lembrete (ainda assim muito vago) de que a mais brilhante estrela poderia, num piscar de olhos, desvanecer. Agora, a coitadinha jazia numa casca de vidro repletas de memórias. 

A repetidoria disturbiada (perturbada) de um ontem não totalmente fora de foco, ainda se faz prisioneira na imensidão da sua dor. Um grito tênue e abafado, retido e sentido, a todo momento insiste em desanimá-la e deixa-la para baixo, não permitindo que descanse em paz. Assim que foi esquecida e atirada dentro daquela caixa de papelão até o pescoço de escumalhas (escória) sem valor, a sua alma se empobreceu. Ela sabe que foi empurrada escadas abaixo para o mais infame das misérias, ou seja, aquele patamar inglório que Marx rotulou de lumpesinato (marginalizado). A espera do fim, sem forças para voltar a ser o que outrora a colocou no auge, a pobre lâmpada se vê martirizada às calamidades de uma camada social sem forças de ocupar o seu antigo estado de destaque e postura. 

Com seus botões, pensa se tivesse forças, possivelmente se quebraria, fosse se atirando de cabeça no piso daquele ambiente que tantas alegrias lhe propiciou, ou se esmagaria até se ver em pequenos estilhaços em face de um daqueles objetos que lhe serviam de companhia à espera, possivelmente, de um saco de lixo a ser atirado de qualquer jeito num desses caminhões recolhedores de entulhos. Se pararmos para avaliar o que o presente texto tenta focar, chegaremos à conclusão que assim somos nós. Sem tirar, nem por, nós, humanos, nos assemelhamos a uma lâmpada colocada num bocal em meio a um teto da sala ou de uma cozinha. Não importa. Enquanto alimentamos com a luz que vem de dentro de nossa alma, todos nos querem por perto. 

Ao perdermos o viço, a vida, ou seja, ao nos pegarmos queimada, seremos arremessados aos rebotalhos (refugos) do desuso.  Não podemos nos esquecer, jamais, que viramos, em questão de segundos, em algo obsoleto e sem valor. Somos também, sem tirar nem pôr, como essas lâmpadas em postes espalhadas pelas ruas da cidade. Até o dia em que qualquer coisa não prevista, o nosso corpo se deteriorará e apagaremos. E ao nos tornarmos ultrapassados, superados, antiquados, nos postaremos à mercê de um simpático latão de lixo que nos levará para algum lugar desconhecido, um futuro negro que nos espera. A nossa luz é como a vida humana. Passageira, embora a esperança seja eterna e não desfaleça. 

O que acontece, dia após dia, é que vem um engraçadinho com uma lâmpada nova em folha e nos deixa, por conta, jogado num canto, “e agora?!”, enquanto uma outra ofuscação incandescente tomará nosso lugar e fará com que o bocal que se entrelaçava mavioso, se torne um objeto ainda mais cobiçado e, pior, de rara beleza e esplendor.  A tristeza de uma lâmpada queimada talvez esteja em sua incapacidade de fazer aquilo para o qual nasceu, isto é, iluminar, tornar tudo às claras. Mas a lâmpada queima porque cumpriu a sua função, ainda que brilhara enquanto pôde. E assim somos nós, inquestionavelmente, na nossa jornada cotidiana. 

Se a grosso modo pensarmos em nossas vidas como lâmpadas, talvez o importante não seja evitar o momento em que deixemos de clarificar ou engalanar, mas sim aproveitar ao máximo o tempo em que a nossa luz brilhou. Cada um de nós, humanos, como seres viventes, deixamos nosso brilho de forma única, impactando os espaços ao redor. E, quando queimamos, nada mais justo que sejamos trocados. Lembrem que até os defuntos enterrados, são nos cemitérios substituídos por novos, de cinco em cinco anos. Nesses momentos meio que trágicos, poderemos até servir de inspiração para novas ideias — assim como a nossa essência e legado podem continuar subsistindo, mesmo quando não estivermos mais aqui.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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