sábado, 21 de junho de 2025

Renato Benvindo Frata (Um quintal, um mundo)


Quando se é criança, a dimensão das coisas como as vemos se agigantam aos nossos olhos, em relação ao nosso próprio tamanho. Tudo é grande, alto, comprido, gordo, balofo.

Minha mãe era alta, espadaúda, ligeira e silente. Pisava manso enquanto cantava com os cochichos a si própria, hinos sacros à Santa Maria. Ligava-se o rádio em casa apenas para notícias e novelas.

Ela assoprava o ferro a brasa com as músicas saídas de seu íntimo e eu a olhava sem a distrair. Admirava-a e permanecia ao redor de seus pés.

Na sala e, envolto com búricas e papéis, assistia aos movimentos de braços, e aos chiados do ferro quente sobre o pano respingado de água, que se sobrepunha à peça de roupa sendo passada.

Quando me ponho a lembrar, ainda o escuto e, se bem apurar o olfato, saberia distinguir o cheiro peculiar do tecido ao ser secado à força pelo ferro quente, até que a fumaça fosse bambeada pra aqui e pra li pelo vento da janela.

Nosso quintal de esquina era enorme e tomado por pés de chuchu, bucha, horta, galinheiro, araticum, santa bárbara frondosa e um enorme forno a lenha, onde ela assava os pães. Embaixo dele, achas de lenhas, gravetos e até ninho de galinha.

Nesse quintal eu era o Zorro. Eu era o Tarzan. Eu era o Randoph Scott, o mais rápido no gatilho, e vivia meu mundo de moleque magrelo e barrigudo, a cavalgar um cabo de vassoura com rédeas de trapo, cuja montaria tanto poderia ser o ‘Stardust’ do Randolph, ou o ‘Silver’ do Zorro. E tudo era tiros, gritos de “mãos ao alto” e relhadas sob estalos imaginados.

Os caroços de Santa Bárbara enchiam-me os bolsos a fazerem do meu estilingue o revolver o mais certeiro, e o quintal se transformava nas pradarias replicadas do Grand Canyon, das matinés dos domingos, tendo o mocinho a dominar índios e bandidos. E eu gritava.

Lá pelas tantas, minha mãe chegava e, sem muito falar, tomava-me pela mão para o banho. A passada de bucha nos encardidos doía, o mercúrio cromo nas machucaduras amenizava, para terminar com um beijo na testa roupa limpa e uma tapinha na bunda.

Não sei se cresci ou se meus olhos perderam aquela extensão que avolumava as coisas, mas minha mãe envelheceu e ficou menor, arcada, lenta e calada. 

Seus braços, antes fortes, já não aguentavam o ferro agora elétrico, pequeno, leve e nem tanto quente, e de sua boca não saíam mais os cânticos religiosos, mas sim pedidos também em forma de assoprares.

Sopros entrecortados pelo esforço de seus olhos em me reconhecendo, se comunicarem pedindo: - eu quero minha casa, a minha casa…
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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