texto da Profª Drª Márcia Hitomi Namekata*
PARTICULARIDADES DOS MUKASHI BANASHI JAPONESES
A despeito de minha ascendência japonesa, desde cedo as diferenças entre os enredos dos mukashi banashi japoneses e dos contos maravilhosos ocidentais chamaram-me a atenção. O que, primeiramente, saltava-me aos olhos, era a extensão da história: eu gostava muito daquelas que apresentavam uma narrativa longa e descrições detalhadas, e os contos japoneses, em sua maioria, são bastante concisos e faltam detalhes acerca dos cenários e das personagens.
Outra questão diz respeito ao desfecho da história, quase sempre feliz no caso dos contos do Ocidente, ao contrário dos japoneses. Além disso, percebemos nestes traços de violência – por exemplo, os maus-tratos aplicados a um animal que, para uma criança, normalmente consiste em algo inaceitável; temos, também, contos onde uma personagem inocente morre no meio da história. No caso dos contos ocidentais, a morte é algo que ocorre normalmente ao antagonista (vilão). É interessante notar que, nos mukashi banashi e nas histórias japonesas de modo geral, dificilmente o vilão é morto no desfecho da narrativa; o mais comum é que seja afugentado. Podemos a isso relacionar o pensamento japonês de que a preferência por afugentar, ao invés de matar, baseia-se na ideia de que é melhor podermos escapar ao mal, uma vez que não podemos erradicá-lo. Isso porque o Mal, enquanto entidade, nunca será abolido. Mesmo porque, sem a existência do Mal, o Bem não teria sua razão de ser. Na realidade, este não é um pensamento característico apenas dos japoneses, mas do povo oriental como um todo, conforme veremos mais à frente.
Há ainda o maniqueísmo das personagens. Nos contos de fadas ocidentais, normalmente elas aparecem divididas entre “heróis” e “vilões”; nos mukashi banashi japoneses, em especial aqueles mais antigos, os limites entre “Bem” e “Mal” não ficam claramente delineados.
Relaciono aqui um exemplo conhecido entre os descendentes de japoneses: a versão infantil do mukashi banashi Urashima Tarô (“Urashima Tarô”), cujo protagonista, um pescador, salva uma tartaruga que estava sendo maltratada por um grupo de crianças. Dias depois, enquanto pescava, Tarô escuta uma voz lhe chamando: era a mesma tartaruga, que o convidava para um passeio ao reino do fundo do mar, como recompensa pela sua boa ação. Chegando ao local, Tarô é recebido pela princesa do Palácio do Dragão, e lá permanece por vários dias, sendo tratado com todas as honrarias. No entanto, certo dia Tarô diz à princesa que desejava voltar à sua terra, pois estava preocupado com seus pais. Ela lamenta, mas concorda com o visitante, oferecendo-lhe como presente uma caixa que, no entanto, não poderia ser aberta. Tarô retorna à sua aldeia, mas nota que tudo está diferente, desde as casas até as pessoas e suas vestimentas. Decide então perguntar por sua família, e um ancião lhe diz que seu avô lhe contara a história de um pescador de nome Urashima Tarô, que havia saído para pescar e nunca mais voltara, e que o fato acontecera trezentos anos antes. Conscientizando-se da diferença de dimensão temporal entre o reino do fundo do mar e sua realidade, ele toma conhecimento da morte de seus pais e, desolado, esquece-se da recomendação da princesa do Palácio do Dragão e abre a caixa: no mesmo instante, de dentro dela, uma fumaça branca se levanta e Tarô transforma-se em um velho.
De modo geral, em todas as lembranças de descendentes de japoneses que conhecem a história, ela suscita certa indignação: por que um homem de “sentimentos nobres” como Tarô, que salva um animal – sendo por isso recompensado – é, ao final, “castigado” dessa forma? A princesa acaba, para muitos, assumindo o papel de “vilã”, na medida em que oferece um presente que não poderia ser aberto; há quem diga que ela, revoltada com o desejo de Tarô de retornar à sua terra, manipula sua curiosidade (proibição de abrir a caixa) através do presente que lhe oferece.
Na classificação de Yanagita Kunio, Urashima Tarô aparece como um densetsu (lenda). No entanto, considerando-se suas versões mais antigas, há um detalhe significativo que foi alterado no decorrer do tempo: nas versões do conto que surgem até o século XV, a princesa do Palácio do Dragão e a tartaruga que Urashima salvara eram o mesmo ser, e o pescador se casa com ela. Dessa forma, é passível de ser classificado também segundo a subcategoria 2.2. (narrativas sobre casamentos) – com o acréscimo de ser uma narrativa sobre casamentos entre seres diferentes (irui kon’in no mukashi banashi).
UM FINAL INFELIZ?
No que se refere ao final da narrativa, frustrante para muitos, é importante considerar que estamos aqui diante de uma questão cultural. Isso se refere também à questão do maniqueísmo das personagens. Já nos referimos anteriormente à impossibilidade de se erradicar o Mal; no pensamento oriental, essa ideia está relacionada à filosofia do Yin-Yang:
(…) Yin e Yang são dois opostos que, juntos, formam uma unidade. Um depende do outro e são realidade somente em união com seu polo oposto. O símbolo que conhecemos de Yin e Yang representa a lei universal da eterna transformação. Significa que um deles, quando chega ao seu apogeu, transforma-se no outro.(…) Isso sugere, portanto, que não há nada que seja apenas Yin ou Yang, negro ou branco, feminino ou masculino, magnético ou elétrico, passivo ou ativo, bom ou mau, escuro ou claro. Significa que as mulheres também têm características masculinas e os homens, qualidades femininas, que uma maldade pode ter algo de bom e um ato de bondade pode transformar-se em seu oposto.(…)
A cultura ocidental tende, ao contrário, a pensar em conceitos absolutos. Nossa educação nos ensina a diferenciar claramente entre o bem e o mal.(…) O símbolo de Yin e Yang descreve outra visão da realidade: nem Yin nem Yang podem ser considerados maus ou bons.(…) Expressa que os opostos se atraem, que se condicionam mutuamente, e que cada coisa e cada processo se converte cedo ou tarde em seu contrário.” (in ECKERT, Achim. O Tao da Cura, p.16-17)
Do ponto de vista ocidental, Urashima Tarô tem um final considerado infeliz – o fato de Tarô se transformar em um velho e não poder mais encontrar seus pais. Mas, se pensarmos a partir de um viés oriental, talvez o fato se coloque da seguinte maneira: se Tarô não abrisse a caixa, permaneceria eternamente jovem; ou seja, não conheceria a morte e, consequentemente, não passaria a outro patamar espiritual de existência (no caso, o além-morte ou, ainda, uma “outra vida”). Isso talvez explique os tão “polêmicos” – do ponto de vista ocidental – finais de obras literárias japoneses, e mesmo novelas e animes que, muitas vezes, ou não têm um final definido, ou apresentam um desfecho que contraria a preferência ocidental do “felizes para sempre”.
Cabe afirmar que, em alguns mukashi banashi, esses finais “abertos” não ocorrem, visto que em narrativas como Issunbôshi o protagonista segue uma trajetória muito próxima à dos heróis dos contos ocidentais, desde as suas primeiras versões (a primeira versão deste mukashi banashi encontra-se no Otogizôshi, “Coletânea de Contos Maravilhosos”, datada do século XVI).
Independentemente de suas características, mesmo na contemporaneidade os mukashi banashi mantêm o seu encanto, assim como os contos de fadas ocidentais. Seja em forma de livros ilustrados, animações e em outras formas de transmissão, principalmente aquelas direcionadas às crianças.
Uma modalidade de contação de histórias que tem conquistado espaço nos últimos anos é o kamishibai que, literalmente, pode ser traduzida por “teatro de papel”. Trata-se de histórias que são narradas através de lâminas ilustradas, acomodadas em uma espécie de caixa-palco. Pode-se dizer que praticamente qualquer tipo de narrativa pode ser adaptada ao kamishibai; no entanto, os mukashi banashi são bastante adequados para isso, na medida em que, por não apresentarem uma extensão demasiadamente longa, cabem na quantidade média de lâminas propostas para o gênero, que é de doze.
Considerando-se os países onde a cultura japonesa se consolidou através dos imigrantes, diversos mukashi banashi tornaram-se conhecidos entre os descendentes de japoneses que, fossem crianças ou idosos, muitas vezes travaram contato com essas histórias através da transmissão oral, contadas por seus pais ou avós em sua infância – muito embora, na modernidade, esse traço de disseminação cultural tenda a se tornar mais raro. Por outro lado, em diversos países da Europa e nos Estados Unidos, onde a presença de imigrantes japoneses não é relevante, o kamishibai tem se difundido principalmente nas escolas de educação infantil, como meio de se desenvolver habilidades orais e escritas.
Podemos dizer, então, que a difusão desta modalidade narrativa se apresenta, na atualidade, como uma forma de se manter viva a tradição através destas histórias, que não só retratam o universo japonês através do tempo mas, também, que trazem em sua essência o modo de pensar de seu povo.
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* Márcia Hitomi Namekata nasceu em São Paulo/SP e mora em Curitiba/PR, possui graduação em Letras (Língua, Literatura e Cultura Japonesa) pela Universidade de São Paulo (USP) (1993), mestrado em Letras na USP (1999), doutorado em Letras na USP (2011) e pós-doutorado em Letras (Língua, Literatura e Cultura Japonesa) na USP (2019). Tem experiência nas áreas de Literatura e Cultura Japonesas, e Teoria Literária e Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: mukashi banashi (contos antigos japoneses); folclore; literatura japonesa clássica e moderna; literatura japonesa contemporânea, com ênfase em Haruki Murakami; aspectos míticos da literatura japonesa. Atualmente é professora doutora na área de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e professora colaboradora na pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP).
Fontes:
Currículo Lattes = https://www.escavador.com/sobre/592814/marcia-hitomi-namekata
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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