sábado, 21 de agosto de 2010

Arnoldo Pimentel e Silviah Carvalho (Amor e Amizade)


A brisa toca a noite com seu silêncio
Pareço sentir o aroma leve do vento a tocar em ti
Que me leva a quimeras de momentos
Recordações criadas por mim

*Se eu contasse quantos castelos de areia desfiz
E quantos que com minhas próprias mãos construí
Desfaria amizades, inutilizaria lembranças,
Mataria esperanças das muitas promessas que ouvi

Imagino seu sorriso, seus cabelos soltos ao ar
Seus olhos a me fitar. Sinto-me feliz só em pensar
Vivo tardes de lembranças que me nutrem de esperança
De talvez um dia... Quem sabe um dia te encontrar

*Esperança, palavra por mim desconhecida
Quase perdi a vida tentando a encontrar
Porem, não me dou por vencida e prefiro esperar
Esse amor tão falado, do qual vivo a me esquivar

Você me perguntou o que eu faria se gostasse de alguém
Respondi que ficaria sempre perto dela, a tratando bem
Com amor, amizade, carinho, lhe suprindo as vontades
Para que nada desejasse d mais ninguém

Sei, não posso pôr sentimento em seu coração
Mas posso ser seu amigo, mais ainda que um irmão
... Quem sabe assim ela me notasse
Quem sabe assim você me amasse...

*O amor necessita de alimento
Torna-se um tormento se não se saciar
Vem o sofrer, a carência, a saudade
A amizade já é um amor... Com outras finalidades.

Fonte:
Silviah Carvalho. Um coração que ama.

Fernando Sabino (O Enviado de Deus)



FAZIA um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma. O meu fusca deslizava dócil no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizera a barba e, metido além do mais num terno novo, saíra para enfrentar com otimismo a única perspectiva sombria naquela manhã de cristal: a da hora marcada no dentista.

Mas eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humilde se aproxima de meu carro.

— Moço, me dá uma carona até a cidade?

O que mais me impressionou foi a espontaneidade com que respondi:

— Eu não vou até a cidade, meu filho.

Havia no meu tom algo de paternal e compassivo, mas que suficiência na minha voz! Que segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal se abria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.

Logo uma voz que não era a minha saltou dentro de mim:

— Por que você mentiu?

Tentei vagamente justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto...

— Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja ridículo.

Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu não admitia impertinência. E nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera muito bem, por que diabo ele não podia tomar um ônibus? Que fosse pedir a outro, certamente seria atendido.

Mas a voz insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás de mim, também havia recusado, despachando-o com um gesto displicente. Nem ao menos dera uma desculpa qualquer, como eu. Não contaria com ninguém, o pobre diabo. Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele não dispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.

E eu no meu carro, de corpo e alma lavada, todo feliz no meu terninho novo. Comecei a aborrecer o terno, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do túnel a voz agora ganhara o eco da própria voz de Deus:

— Não custava nada levá-lo.

Não, Deus não podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma simples carona?

Ah, sim? Pois então eu ficasse sabendo que aquele era simplesmente o teste, o Grande Teste da minha existência de homem. Se eu pensava que Deus iria me esperar numa esquina da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minha oportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meu destino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova definitiva. Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora só para disfarçar — Deus é muito disfarçado.

Agora o terno novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente para as profundas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um anjo abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.

— Não tem dúvida: aquele cara me estragou o dia — resmunguei, aborrecido, acelerando mais o carro a caminho da cidade.

Quando dei por mim, já em Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda, sem saber por quê, de volta em direção ao túnel.

Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder o dentista — o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego agora me obrigaria a refazer todo o percurso.

Como explicar-lhe, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara para buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.

Estava. Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, ainda postulando condução. Detive o carro a seu lado. Justificando meu regresso, gaguejei uma desculpa qualquer, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe oferecia: sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu ter voltado para buscá-lo.

Era mesmo alguém que pedia condução simplesmente porque não tinha dinheiro para o ônibus. Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir — o que já é outra história.

Só não me pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, ainda por cima, Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.

Fonte:
SABINO, Fernando. Deixa o Alfredo Falar! Rio de Janeiro: Record, 1985.

Fábio Lucas (A Leitura do Crítico)


O poema não se concretiza como um silêncio perante um crítico . No mínimo deseja emocioná-lo, quando não entra em diálogo com ele, seu leitor mais equipado. Anseia por que ele fale após a leitura. Torna-se um apelo.

Cada ficção traz consigo uma rede de eventos, cuja conexão precisa ser decifrada. Repousa por detrás da trama um argumento, talvez o relato do mundo real. Constitui uma provocação ao comentário, exige uma resposta as inumeráveis questões ali adormecidas.

A obra necessita de uma fala, de um eco que a julgue e consagre. O despertar de qualquer peça literária reside na sua leitura. O leitor passivo acorda os apelos mais elementares, se satisfaz com o senso comum mais vulgar, pelo qual se conhecem as pessoas de fácil manobra. Já o leitor ativo não se contenta com os argumentos e as imagens retraçadas pelo autor, ou pelo agente de uma intencionalidade direta, refratária às sutilezas verbais. A cadeia de palavras organizada no texto despertam nele, leitor, as reminiscências de outras informações, captadas de leituras passadas e observações colhidas no comércio com a comunidade em estado de comunicação. Ativa memória da convivência coletiva.

O texto que se apresenta ao leitor ativo de consciência crítica, está mergulhado no grande universo da Cultura, na herança histórica, que compreende gerações e gerações de expectativas colhidas na rede literária.

O crítico é o leitor qualificado que tenta levar aos seus próprios leitores a experiência da leitura armada. Sua escrita se reveste de juízos de valores, numa perspectiva de maior objetividade possível. Reconhece a dificuldade de pesar a emoção despertada mediante a leitura, assim como a aquisição argumentada.

Ademais, durante a leitura, o crítico é levado a suspender temporariamente a noção que tem da realidade. Ou a pactuar com a forma e o sentido que o autor imprimiu à obra, dando a este cabal credibilidade. Quem já leu Invenção de Orfeu de Jorge de Lima e Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa sabe do ajuste mental do leitor ao linguajar do escritor.

Ninguém desconhece que o poeta é capaz de transmitir experiência cujo refinamento e precisão não chegam a ser usuais aos outros meios de comunicação. Isso quer dizer que o poeta emprega uma técnica verbal que exprime intensamente um modo exclusivo e pessoal de sentir. É que ele se mostra tanto interessado nos sentimentos, quanto nas palavras. Emoções, palavras e conceitos são inseparáveis do poeta na construção do seu texto.

Pela glosa ou comentário crítico transformamos o texto em sentido, asseveram os adeptos da hermenêutica literária. A interpretação seria o substrato da experiência da leitura, concedemos ao texto uma interpretação crítica, arte de conferir sentido aos signos identificados na serie literária.
Há, na duração histórica, duas respostas básicas ao estatuto da obra no conjunto literário. A primeira canoniza-a e a torna unidade singular entre os paradigmas representativos que estruturam o paço social.

A obra “clássica” destina-se a realizar a mediação entre ó passado e o presente, na medida em que é portadora de validade nas diferentes épocas em que é lida. Permanece singular na sucessão das expectativas, pois estabelece uma situação dialógica com o publico de cada época. Interessa, portanto, na continuidade movente da experiência literária, mantendo-se intacta diante dos horizontes que não param de mudar.

Se ultrapassa os tempos é porque submeteu-se ao julgamento estéticos de épocas diferentes, desde a inicial até a presente, numa cadeia de recepções que lhe atribuem determinado escalão na hierarquia literária. Sobreviveu desde o efeito inicial até o atual sem decair de significação.

O leitor de hoje seguramente não consegue reviver o efeito da recepção inicial da obra. Teria que transportar para hoje os leitores da edição inicial, conhecer-lhes as motivações da leitura. É desta que se da o verdadeiro nascimento da obra, como ato cognitivo, somente se opera na data da leitura, ou seja, quando a obra se dá à luz do entendimento.

Estamos ainda na resposta canonizadora da obra, aquele que atravessa o tempo da cristalização do efeito das leituras através das gerações. Há, na fase contemporânea, o falso efeito canonizador; o efeito do consumo, sob o jugo do mercado e da publicidade. A moda, no caso, leva à instrumentação da consciência contábil, que aprisiona a consciência ingênua.

O efeito de consumo se compraz em seduzir a demanda desarmada, aquela que vive ao arrepio das solicitações primarias dos espíritos.

Já o efeito seletivo é diferente: une ao conhecimento da obra duas forças: a primeira vem a ser a passagem pela prova do tempo, o que significa guardar a aura que ela carregou nas várias fases de indagações de variadas épocas; a segunda demonstra o reconhecimento da transcendência da obra ao horizonte da vulgaridade. A leitura o leitor aparelhado adiciona a comparação com outras leituras, formado na consciência do seu leitor uma instância de escrutinação valorativa.
Daí decorre a leitura transtextual, já que a obra comumente se remete a outra, cita, alude, parodia, glosa ou, em suma, se intertextualiza.

Passemos, agora, à segunda resposta à leitura crítica: a que investiga a obra como transgressora do paradigma, na sua busca de originalidade expressiva. Como em tudo o que eu constitui promessas de ciência e objetividade no âmbito das Humanidades, temos que determinar a natureza do desvio da norma ou da ruptura com o sistema vigente de valores.

Ora, analisar uma obra intrinsecamente, desgarrada de seu contexto, torna-se impossível sem a remissão às demais obras de que ela se tornou desvio ou exceção. Somente após consulta a um amplo espectro de analogias e de contrastes é que se encontrará o rosto da originalidade, dissonância e excepcionalidade da obra. Somente na ação comparativa é que se determinam os prógonos e os epígonos.

O estilo da época vira uma constante narrativa supra-histórica. O Clássico é, ao mesmo tempo, uma realidade histórica e supra-histórica. O critério de valor (norma) confere à obra sua legitimação histórica e supra-histórica, ou seja, estilística. Algo lhe garante a presença intemporal: contemporânea de qualquer tempo presente. De certa forma, uma das modalidades do ser histórico.

O prógono é o cume de um estilo, possui antecedentes e conseqüentes, precursores e sucessores. Tem a força de propagação e sobrevive às ruínas do tempo. É clássica uma obra porque deve a si mesma a sua significação. Depende ela da negatividade introduzida no seu tempo: ser exceção nos paramos da arte expressividade.

A força estética da obra repousa em três aspectos; unidade, complexidade e intensidade. A obra artística, não raro, apresenta-se como uma peça da totalidade, como o arco de um círculo. A obra pode sugerir ao leitor a sua aliança com uma totalidade aparentemente ausente. Ao mesmo tempo, ela é uma totalidade intensiva, como a concebeu G. Lukacs.

Toda obra e arte, para alcançar o seu mais respeitável e legítimo juízo de valor, tende a responder, na sociedade contemporânea, às seguintes questões: primeiro, às solicitações do publico, cujos critérios de avaliação estão muito próximos das sugestões levantadas da oferta comercial, portanto, da publicidade. Segundo; compor-se de acordo com a internacionalidade do autor, que determina a natureza de sua experiência e, ao mesmo tempo, apresenta-se à opinião, a fim de obter tanto o reconhecimento estético, quanto os meios de subsistência pessoal. O artista aspira a ser um profissional do seu ofício, além, é claro, de satisfazer-se com a necessidade íntima de se comunicar por intermédio da sua obra, já que também atende a uma pulsão comunicativa e desinteressada. A tais objetivos corresponde, por parte do leitor (consumidor) a necessidade de receber informação nova.

Enfim, a obra ideal a que visa o crítico é aquela universal e intemporal, que constituía o bem comum da humanidade e legítimo patrimônio nacional. Há de ter, como vimos, a conjuração dos três aspectos: unidade, complexidade e intensidade.

A obra nasce com a leitura e esta é feita de acordo com determinado horizonte de expectativas. Que horizonte seria esse? Assemelha-se a um conjunto de hipótese compartilhada por uma geração de leitores. Entre o leitor, a obra e o público forma-se uma cumplicidade de informações e valores, de tal sorte que se instaura entre eles verdadeira harmonia com o quadro social.

A apreciação individual do crítico, quando atinge os canais de comunicação com o publico, exerce função didática, estabiliza conceitos e ajuda a fixar padrões de gosto. De forma auxilia a formular a avaliação coletiva e social da obra de arte.

A legitimidade do juízo crítico provém do julgamento da posteridade, quando lhe dá sustento, homologação e reconhecimento, o que pressupõe a objetivização do valor, ainda que de modo empírico. A longo prazo, a boa literatura prima sobre a má, que cai no olvido. O tempo cassa a literatura dos falsos valores, consagra a tradição do novo. Instaura a dinâmica da negatividade. Obras excepcionais refazem o quadro contextual, alteram o gosto e as expectativas.
Escolas e teorias passam e a obra continua sem a resposta cabal dos seus críticos. Ela aparece costumeiramente caucionada a uma verdade. A verdade transitória da época.

Artigo publicado na revista da Academia Paulista de Letras.

Fontes:
Helio Consolaro. Portal Por Tras das Letras.
Imagem = André Lux

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 5


4 — A comunidade absorve o grupo

O terceiro momento que pretendemos fixar situa-se na passagem do século XIX: entre 1890 e 1910, digamos sem maior preocupação cronológica.

A cidade é outra. Tem setenta mil habitantes naquela data; duzentos e quarenta mil nesta. É um importante centro ferroviário, comercial, político, onde a indústria se esboça. A população mudou radicalmente. Não há mais escravos, os caipiras vão sumindo, chegaram magotes de italianos, espanhóis, portugueses, alemães. Há uma diferenciação social muito mais acentuada, quer no sentido horizontal do aparecimento de novos grupos, e alargamento dos que havia, quer no vertical, em que as camadas se superpõem de modo diverso, recompostas quanto ao número, à composição, aos padrões de comportamento. A Faculdade de Direito é importante, mas já surgiram ou vão surgir outros institutos de ensino superior, e o novo perfil da estrutura social e demográfica não favorece mais a sua posição excepcional. É um segmento integrado, ao lado de outros. A literatura já não depende mais dos estudantes para sobreviver, nem eles precisam mais da literatura como expressão sua, para equilibrar-se na sociedade. No lapso corrido desde o decênio transformador de 1870, deu-se um processo decisivo: a literatura é absorvida pela comunidade — antes impermeável a ela — e deixa de ser manifestação encerrada no âmbito de um grupo multifuncional, ao mesmo tempo produtor e consumidor. Formou-se um público, e se não a profissão de escritor (cuja primeira associação se esboça aqui pouco antes de 1890), certamente uma atividade literária que não mais depende de um só grupo, recrutando os seus membros em vários deles.

Deixando de ser manifestação grupai, ela vai tornar-se manifestação de uma classe — a nova burguesia, recém-formada, que refinava os costumes segundo o modelo europeu, envernizada de academismo, decadentismo e art-nouveau.

Nesse terceiro momento a literatura se torna acentuadamente social, no sentido mundano da palavra. Manifesta-se na atividade dos profissionais liberais, nas revistas, nos jornais, nos salões que então aparecem. E por uma conjunção verdadeiramente providencial, é o momento do Parnasianismo e do Naturalismo.

Com efeito, assim como as tendências românticas prestaram-se à definição de uma literatura de grupo, oposta de certo modo à comunidade tacanha, pelo coeficiente de isolamento e antagonismo que trazia, o Parnasianismo e o Naturalismo se ajustaram com vantagem a essa difusão da literatura na comunidade em mudança, pelos seus cânones de comunicabilidade e consciência formal. Expressão clara, embora elaborada; sentimentos naturais; conformidade ao bom senso e à realidade como ela é; comunicabilidade, porém definida segundo os padrões da gente culta, incorporada à classe dominante e dispersando-se a partir dela pela população.

Daí um certo aristocratismo intelectual, certo refinamento de superfície, tão do agrado da burguesia, que nele encontra atmosfera confortável e lisonjeira. Não é de estranhar, portanto, que as concepções literárias de então se hajam enraizado em São Paulo, a ponto de até hoje formarem a base do gosto médio, que parou em Vicente de Carvalho e Martins Fontes. Os oradores, os jornalistas, os homens públicos ainda se reportam automaticamente a elas, quando elaboram a sua expressão, e os poetas modernos mais queridos são os que a elas mais se prendem: Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia.

Grande significado social, como se vê, tem este processo por meio do qual a produção literária se transferiu do grupo fechado de estudantes para a comunidade, organizando-se de acordo com padrões definidos pelos da elite social. Processo que serviu à própria poesia romântica — ao alargar o âmbito dos seus consumidores, dando-lhes difusão que antes não possuía. E ao fazê-lo, recalcou as tendências satânicas tão características do meado do século, selecionando as do sentimentalismo e do nacionalismo, mais comunicáveis, e de fato incorporados pela musa parnasiana. Resultado: talvez nunca tenha havido em São Paulo uma coincidência tão grande entre a inspiração dos criadores, o gosto do público, a aprovação das elites. Contos e romances reais ("a gente parece ver"; "parece que aconteceu com a gente"); poemas sonoros, límpidos, fáceis de decorar e recitar, mas ao mesmo tempo corretos, de acordo com as normas da língua — cujo cultivo encontra então o seu apogeu. Não é por mera coincidência que dois dos poetas mais característicos da época sejam professores: Francisca Júlia e Sílvio de Almeida — este, bom conhecedor do idioma. Nem que o mais famoso romancista, dentre os que viviam em São Paulo, fosse Júlio Ribeiro, gramático eminente. "Língua", "linguagem", "apuro", "estilo terso", "escoimado de erros", "vernáculo"; "decoro", "lapidar", "escorreito", "nitidamente desenhado", "fino lavor", "opulento", "riqueza de vocabulário"; "real", "traçado ao vivo", "tirado da vida", "só falta falar", — eis um ramalhete da crítica do tempo, mais eloquente do que tudo que pudéssemos dizer.

Compreensível, portanto, que ocorresse então o beneplácito dos poderes à literatura. Literatura na política, na administração. Literatura como degrau de ascensão social. Solenidades públicas. Academias literárias — não mais de mocinhos imberbes, cedo dispersados pela vida, mas de respeitáveis senhores, com posição na sociedade. Salons em vez de repúblicas; em vez das sessões de grêmio, a acolhida ampla de um público já constituído, com interesses norteados pela burguesia semiletrada.

No entanto, a herança dos mocinhos parece qualitativamente mais sólida, — pois de todo esse período, tão cheio de talentos estimáveis e de um real fervor pelas coisas do espírito, apenas nos fere a sensibilidade, hoje em dia, Vicente de Carvalho. Olhando-o em bloco, vemos que a sua função foi sobretudo social: a incorporação efetiva da literatura à vida da comunidade paulistana, por meio dos padrões de suas classes dominantes.
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continua……………
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Trova 170 - Dirce Davenia Guayato (Londrina/PR)

Montagem da Trova sobre imagem de autoria de Ivan Cabral

Kátia Canton (Poema para Dalí)

Ilustração de André Davino
Era uma vez
Um sonho de menino.
Estranho,
Versátil,
Admirável.

De repente, o tempo não existia mais.
Tinha parado,
Congelado,
Suspendido.

O relógio começou a escorregar por entre as suas mãos
E o tempo foi derretendo.
O menino então falou comigo:
“Eu penso, eu digo e falo
O que vem na mente.
E você sente”.

Juntos, escrevemos automaticamente
Tudo o que vem à cabeça
Sem censura
Nem suspiro.
A gente se entende.

As imagens que surgem do texto são bonitas.
Surgem Dalí e daqui.
Têm sol, têm mar, têm casas e árvores
E têm gente estranha.

As cenas são improváveis
E o ritmo é de um sincopado que não existe,
Nem nas mais exóticas músicas que ouvimos.
Apenas sonho de meninos?

Se eu fosse um artista
Surrealista
Eu também sonharia assim.
Perguntaria teu nome
E no meio da fome
Pediria pra você ficar e pintar comigo.

Eu iria me nutrir da tua mão de chocolate
E da tua pele de pêssego.
Juntos, iríamos passar tinta, comemorar
E colorir todos os sonhos do mundo.

Fonte:
Revista Nova Escola. abril de 2007.

Folclore Indigena (A Dança do Arco-Íris)


Há muito e muito tempo, vivia sobre uma planície de nuvens uma tribo muito feliz. Como não havia solo para plantar, só um emaranhado de fios branquinhos e fofos como algodão-doce, as pessoas se alimentavam da carne de aves abatidas com flechas, que faziam amarrando em feixe uma porção dos fios que formavam o chão. De vez em quando, o chão dava umas sacudidelas, a planície inteira corcoveava e diminuía de tamanho, como se alguém abocanhasse parte dela.

Certa vez, tentando alvejar uma ave, um caçador errou a pontaria e a flecha se cravou no chão. Ao arrancá-la, ele viu que se abrira uma fenda, através da qual pôde ver que lá embaixo havia outro mundo.

Espantado, o caçador tampou o buraco e foi embora. Não contou sua descoberta a ninguém.

Na manhã seguinte, voltou ao local da passagem, trançou uma longa corda com os fios do chão e desceu até o outro mundo. Foi parar no meio de uma aldeia onde uma linda índia lhe deu as boas-vindas, tão surpresa em vê-lo descer do céu quanto ele de encontrar criatura tão bela e amável. Conversaram longo tempo e o caçador soube que a região onde ele vivia era conhecida por ela e seu povo como “o mundo das nuvens”, formado pelas águas que evaporavam dos rios, lagos e oceanos da terra. As águas caíam de volta como uma cortina líquida, que eles chamavam de chuva. “Vai ver, é por isso que o chão lá de cima treme e encolhe”, ele pensou. Ao fim da tarde, o caçador despediu-se da moça, agarrou-se à corda e subiu de volta para casa. Dali em diante, todos os dias ele escapava para encontrar-se com a jovem. Ela descreveu
para ele os animais ferozes que havia lá embaixo. Ele disse a ela que lá no alto as coisas materiais não tinham valor nenhum.

Um dia, a jovem deu ao caçador um cristal que havia achado perto de uma cachoeira. E pediu para visitar o mundo dele. O rapaz a ajudou a subir pela corda. Mal tinham chegado lá nas alturas, descobriram que haviam sido seguidos pelos parentes dela, curiosos para ver como se vivia tão perto do céu.

Foram todos recebidos com uma grande festa, que selou a amizade entre as duas nações. A partir de então, começou um grande sobe-e-desce entre céu e terra. A corda não resistiu a tanto trânsito e se partiu. Uma larga escada foi então construída e o movimento se tornou ainda mais intenso. O povo lá de baixo, indo a toda a hora divertir-se nas nuvens, deixou de lavrar a terra e de cuidar do gado. Os habitantes lá de cima pararam de caçar pássaros e começaram a se apegar às coisas que as pessoas de baixo lhes levavam de presente ou que eles mesmos desciam para buscar.

Vendo a desarmonia instalar-se entre sua gente, o caçador destruiu a escada e fechou a passagem entre os dois mundos. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal, tanto na terra como nas nuvens. Mas a jovem índia, que ficara lá em cima com seu amado, tinha saudade de sua família e de seu mundo Sem poder vê-los, começou a ficar cada vez mais triste. Aborrecido, o caçador fazia tudo para alegrá-la. Só não concordava em reabrir a comunicação entre os dois mundos: o sobe-e-desce recomeçaria e a sobrevivência de todos estaria ameaçada.

Certa tarde, o caçador brincava com o cristal que ganhara da mulher. As nuvens começaram a sacudir sob seus pés, sinal de que lá embaixo estava chovendo. De repente, um raio de sol passou pelo cristal e se abriu num maravilhoso arco-íris que ligava o céu e a terra. Trocando o cristal de uma mão para outra, o rapaz viu que o arco-íris mudava de lugar.

– Iuupii! – gritou ele. – Descobri a solução para meus problemas!

Daquele dia em diante, quando aparecia o sol depois da chuva, sua jovem mulher escorregava pelo arco-íris abaixo e ia matar a saudade de sua gente. Se alguém lá de baixo se metia a querer visitar o mundo das nuvens, o caçador mudava a posição do cristal e o arco-íris saltava para outro lado. Até hoje, ele só permite a subida de sua amada. Que sempre volta, feliz, para seus braços.

Fonte:
Lenda indígena recontada por João Anzanello Carrascoza, ilustrada por Alarcão. Disponível na Revista Nova Escola. Edição Especial. Agosto de 2004.

Ialmar Pio Schneider (Baú de Trovas V)


Andei por árduo caminho
no qual não quero andar mais;
e voltei para o meu ninho
como voltam os pardais...

Ao tentar criar poemas
para contar minha história,
me deparei com dilemas
na fase contraditória...

Aquela que um dia fez
meu coração palpitar,
hoje não saiba, talvez,
desta saudade sem par.

Busco na trova a harmonia
para equilibrar a vida;
é o resumo da poesia
em quatro linhas contida.

Contigo no pensamento,
eu vou compondo esta trova,
porque neste sentimento
minha paixão se renova.

Coração aventureiro,
vive sonhando um amor,
que pode ser verdadeiro,
infeliz ou enganador.

É tão tarde... a madrugada
daqui a pouco vai raiar;
e pensando em minha amada
quero dormir e sonhar...

Eu já vou me convencendo
que nada sei pra ensinar;
amei tanto e não compreendo
o que significa amar.

Eu te quis com tanto afã,
não pude te conquistar;
pela tentativa vã,
peço perdão por te amar...

Houve sempre um sentimento
que nunca teve igualdade,
pois surge a qualquer momento,
e que se chama saudade.

Meu coração se enternece
quando vejo os passarinhos,
no instante que a noite desce,
retornarem aos seus ninhos.
Meu coração treme ainda
ao lembrar-te com saudade,
porque por seres tão linda
eras a felicidade!

Não me compreendes agora
porque no teu lindo rosto
nenhuma lágrima chora
ao saber do meu desgosto.

No coração de quem ama
não morre nunca a saudade,
porquanto é qual uma chama
com fogo da eternidade...

Nosso amor em decadência
foi findando pouco a pouco;
você com sua demência
e eu me tornando mais louco.

O amor que nasce de um beijo
até pode fracassar,
mas se nasce de um desejo
vai permanecer no olhar...

Pelos caminhos do amor
quantos sonhos e ilusões;
e o que causa dissabor
são as nossas frustrações.

Penso em ti de vez em quando
e se não posso te amar,
quero somente, sonhando
teus olhares recordar.

Quando te vi deslumbrante
com teus olhares fatais,
eu notei naquele instante
que era então tarde demais.

Queres me amar, eu aceito
teu bem-querer de bom grado,
porque vivo insatisfeito
por nunca ter sido amado.

Saudade!... palavra viva
do que ficou no passado;
és o bem que nos cativa
para sempre ser lembrado!

Se eu não sentisse saudade
daquela que tanto quis,
talvez a felicidade
não me fizesse infeliz.

Segura o pouco que tens
e amanhã podes ter mais,
porque de todos teus bens
preponderam ideais.

Se leres os versos soltos
neste livro de lamentos,
que não te assaltem revoltos,
infelizes sentimentos...

Sendo um simples aprendiz
de saber da trova o enredo,
sinto que não sou feliz
e me condeno em segredo.

Se o amor não tem futuro
e vive só da esperança,
é qual um tiro no escuro
e sem querer você “dança”.

Se tens amor não escondas,
muito sofri por contê-los;
ele surge como as ondas
e foge ao não ter desvelo...

Tenho saudade da areia
sob o sol a cintilar
e as noites da lua cheia
clareando as águas do mar...

Tuas mãos nas minhas mãos
numa ternura incontida,
sinto que não foram vãos
esses momentos na vida.

Vens à noite de mansinho
e trazes junto contigo
a saudade do carinho
que olvidar eu não consigo.

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Esaú e Jacó)

Análise da obra realizada pelo Prof. Teotônio Marques Filho para o Portal Por Trás das Letras

Ao estudar a obra de Machado de Assis, a crítica divide-a em duas fases bem distintas cujo marco delimitado é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. Até essa data, a obra machadiana é marcadamente romântica, onde sobressaem poesia, contos e os romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e laiá Garcia (1878).

A partir de 1881, com a publicação das Memórias, Machado de Assis muda de tal forma, que Lúcia Miguel Pereira, chega a afirmar que “tal obra não podia ter saído de tal homem”. A partir daí, “Machado liberou o demônio interior e começa uma nova aventura”: a análise de caracteres, numa verdadeira dissecação da alma humana. É a segunda fase - fase marcadamente realista, sem a qual “não teríamos Machado de Assis”.

Além de contos, poesia, teatro, crítica, integram essa fase os romances seguintes, entre os quais está o nosso Esaú e Jacó (1904): Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1900) e Memorial de Aires (1908), seu último romance.

Criticamente, Esaú e Jacó não é o melhor romance de Machado de Assis, chegando Massaud Moisés a colocá-lo como “um declínio”, principalmente se comparado aos outros romances da segunda fase: “Esaú e Jacó é simples, mas simples por fora e por dentro”, conclui o crítico.

Entretanto, vale a pena ler o livro não só pelas virtuosidades do estilo de Machado de Assis como pela história narrada e outras pérolas que o escritor vai jogando ao longo do romance.

Como já ficou situado, Esaú e Jacó se enquadra no estilo realista, o que procuraremos mostrar a seguir.

O ESTILO DE ÉPOCA

Cronologicamente, Esaú e Jacó é um livro que surgiu nos fins do Realismo (1904), estando fora da fase áurea do Realismo brasileiro e da ficção machadiana (1880-1900). Isso quer dizer que se torna difícil enquadrar o romance nos moldes realistas, como quer a crítica, ao situá-lo na segunda fase de Machado de Assis. Talvez mais correto seria localizá-lo numa terceira fase... Além do mais, por essa época (1893), surgia um novo estilo - o Simbolismo, que, apesar de ser um movimento essencialmente poético, vai manifestar-se no livro de Machado de Assis.
Não obstante, alguns aspectos do Realismo podem ser detectados no livro.

1) Fidelidade na descrição de situações e personagens. A verdade dos fatos é uma das principais preocupações realistas. Ser fiel àquilo que descreve é uma norma que o escritor realista, tanto quanto possível, procura seguir. Se compararmos o escritor realista com o romântico, veremos que este se caracteriza pela fantasia, pela imaginação, pelo idealismo. O escritor realista é, mais ou menos, o oposto: encara a realidade direta e objetivamente e procura mostrar o que é, não o que deve ser, como os românticos.

Se você leu Esaú e Jacó atentamente, não foi difícil perceber essa preocupação. Em diversas passagens, Machado se preocupa com a verdade dos fatos, em ser fiel àquilo que narra, como é o caso desta passagem do Cap. V:

“Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as causas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue”.

Quanto à autenticidade das personagens, é difícil perceber no livro, com exceção do Conselheiro Aires, que acaba “ocupando o centro de toda a narrativa”, como ressalta Massaud Moisés. Outras personagens, como Pedro, Paulo e Flora, lembram figuras românticas. Flora, por exemplo “é moça, virgem, e morre de doença estranha, mal de sentimento ou coisa parecida” (Massaud Moisés).

2) Gosto pela análise. A análise é uma característica básica na ficção realista, principalmente a análise psicológica.

Esaú e Jacó, como veremos mais adiante, atém-se à análise da complexidade dual do ser humano. Em inúmeras passagens encontramos essa preocupação de analisar, onde Machado procura desvendar e esclarecer os segredos da alma humana, como é o caso do excerto que vamos transcrever, extraído do Cap. XCIII:

“Talvez a causa daquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espírito da moça fazia à casa da gente Santos. Uma das vezes, o espírito voltou para dizer estas palavras ao coração: “Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difícil a ação, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano. Anda, esquece-os: se os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distância farão o resto”.

3) Objetividade a impessoalidade. Não resta dúvida que essa é uma característica que reflete a época - época do cientificismo, da precisão, da observação. Ao contrário do Romantismo, no Realismo o escritor não interfere na conduta de suas personagens; tanto quanto possível, ele se afasta delas, desenvolvendo assim uma narrativa objetiva e impessoal.

No nosso romance, é fácil perceber essa característica, embora o Conselheiro Aires tenha muito de Machado de Assis: é um homem cordato, grave, ponderado, equilibrado, inteligente tomo o próprio escritor. Mas o livro em si retrata uma situação que é vista e narrada por um observador que procura ser objetivo e impessoal, como revela na passagem abaixo, do Cap. XLVIII:

“Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não sela das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso por aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo”.

4) Narrativa lenta e pormenorizada. Se a grande preocupação do escritor realista é com a análise, claro está que o seu processo narrativo será lento. Os pormenores, detalhes aparentemente dispensáveis, contribuem, por outro lado, para o painel ou retrato da realidade que se quer expor.

Em Esaú e Jacó, a narrativa está cheia de fatos e episódios que não fazem parte propriamente da história, o que retarda o desfecho: o processo é, pois, lento e pormenorizado.

Como exemplo, veja-se esta passagem do Cap. XI:

“Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, Mas eu quero que saibas que casa era, e que rua e, mais digo que ali havia uma espécie de clube...”

5) Enfoque do tempo presente. O Realismo retrata a vida contemporânea. Enquanto o romântico se volta para o passado ou se projeta no futuro, através do sonho, da imaginação, da idealização, o realista se fixa no presente, porque o que lhe interessa é a vida que o rodeia. Nesse sentido, justifica-se a crítica, a sátira e a ironia, que se tornam armas com que os escritores realistas combatem as depravações morais da sociedade, da qual riem e escarnecem.

Marca registrada de Machado de Assis, em Esaú e Jacó, abranda-se o tom irônico, não havendo tanta descrença e tanto niilismo como nas Memórias ou em Quincas Borba. Entretanto, aqui e ali reponta a ironia, como é o caso da tabuleta do Custódio, da história do “irmão das almas” e mesmo a situação política do Batista.

Para ilustrar este item, não há melhor exemplo do que os fatos políticos ocorridos na época e que vão culminar com a Proclamação da República, como se vê nos capítulos “Noite de 14” (LIX) e “Manhã de 15” (LX). Há, outrossim, inúmeras referências a personalidades e fatos da história do Brasil, como a política do “encilhamento” de Rui Barbosa.

6) Aspectos simbolistas. O Simbolismo é um movimento essencialmente poético, o que não quer dizer que a prosa esteja totalmente excluída. Inaugurado, oficialmente, entre nós, em 1893, com o livro Broquéis, de Cruz e Sousa, o Simbolismo é um movimento literário que se fundamenta basicamente na linguagem figurada - no símbolo, como sugere a palavra. Com base nisso, depreende-se a busca do etéreo, do vago, da música, do mistério e do metafísico.

Para o crítico Cavalcânti Proença, “desde o título, há simbolismo” em Esaú e Jacó, apontando inúmeros exemplos como aquele “lenço verde” de Natividade, a simbolizar a esperança no futuro dos gêmeos ou aquela “alma azul” de que o escritor fala no Cap. XIX:

Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela”. Enfim, “ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul”.

Mas, como observa o citado crítico não ficam aí os exemplos, e, sem esforço, podemos lembrar que os dois namorados levam grinaldas à sepultura da moça que ambos amavam. Uma é de perpétuas, de simbolismo muito evidente, e a outra, mais obscura, de miosótis, o “forget-me-not” dos ingleses; um dos apaixonados diz de si mesmo “que o seu amor é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir”.

Outra figura que lembra o Simbolismo é a moça Flora, que tem muito das virgens vaporosas que povoam a literatura simbolista e se aproximam das esferas celestes e etéreas. Também o velho Plácido, “doutor em matérias escusas e complicadas”, conhecedor de “gestos visíveis e invisíveis”, pode ser colocado aqui como exemplo nesse sentido.

O ESTILO DE MACHADO DE ASSIS

Pode-se dizer que Machado de Assis é o escritor das pequenas coisas, dos detalhes imperceptíveis a olho nu, como ele próprio reconhece numa crônica: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”. Além desse aspecto que Eugênio Gomes chama de “microrrealismo”, muitas outras virtuosidades podem ser apontadas no estilo machadiano, como veremos a seguir:

1) Narrativa lenta. Embora seja próprio dos escritores realistas de um modo geral, o gosto pelo detalhe, a morosidade narrativa marcam de tal forma o estilo de Machado de Assis, que passam forçosamente ao plano individual. Aliás, é o próprio escritor quem o diz nas Memórias Póstumas de Brás Cubas: “tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..."

Em Esaú e Jacó, as paradas e digressões não são tão comuns como nas Memórias. Chega a haver uma certa preocupação com o enredo. Mas o velho hábito está presente em inúmeras passagens, como é fácil perceber numa leitura atenta do livro. Basta ver as várias referências políticas que estão disseminadas pelo romance, as considerações e reflexões filosóficas e morais, além das conversas constantes com o leitor.

2) Humor. O humor é a grande tônica da ficção realista de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro.

Em Esaú e Jacó, o grande humorista das três obras citadas desaparece quase que completamente para dar lugar a um escritor mais crente na vida e nos homens. Entretanto, algumas passagens estão perpassadas de humor, como é o caso da “tabuleta do Custódio”: “Confeitaria do Império” ou “Confeitaria da República”? -Era difícil a escolha do nome que satisfizesse aos interesses do Custódio, posto que a mudança de regime era iminente. Talvez fosse melhor “Confeitaria do Custódio”, que agradava a gregos e troianos; mas o melhor mesmo era “esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas”.

Através do episódio, veladamente, Machado critica a rapidez com que o Brasil mudava de regime. E o que sugere o contexto e mesmo a palavra “moda” que aqui aparece na fala do Custódio.

3) Sátira. Em Esaú e Jacó, embora o livro não esteja infestado do tom satírico e irônico como os anteriores, um bom exemplo é o Batista, político frustrado e sempre dirigido pela esposa, D. Cláudia. Outro bom exemplo é aquele “irmão das almas” que aparece logo no início do livro e acaba ficando milionário, como ressurge no final, inclusive pleiteando Flora em casamento. Quando esta morre, é expressivo o tom irônico com que Machado de Assis descreve o que passou pela mente do Nóbrega, o ex-irmão das almas, como se vê no Cap. CVIII:

“Não vou ao ponto de afirmar que teve prazer com a morte de Flora, só por havê-lo feito acertar na notícia da doença, estando ela perfeitamente sã. Mas que ninguém fosse seu marido, foi uma espécie de consolação. Houve mais: supondo que ela o tivesse aceitado e casassem, pensava agora no esplêndido enterro que lhe faria. Desenhava na imaginação o carro, o mais rico de todos, os cavalos e as suas plumas negras, o caixão, uma infinidade de cousas que, à força de compor, cuidava feitas. Depois o túmulo, mármore, letras de ouro...”

Satírico igualmente é o Cap. IV, que se intitula de “a missa do coupé”, onde Machado mostra que a missa - a santa missa - vale mais pela presença de algum ricaço do que pela sua intenção de sufragar almas...

4) Moralismo e Reflexões. Outra característica que marca o estilo machadiano é o gosto pelas considerações filosóficas e reflexões morais que vai espalhando ao longo do seu caminho: “o leitor agarra a história e vai até o fim levado pelo escritor que recheia a narrativa de suas contínuas e peculiares reflexões”, observa o crítico Massaud Moisés. No livro, não há melhor exemplo, nesse sentido, do que o Aires, com suas considerações e reflexões que vai reunindo no seu Memorial, como estas que transcrevemos aqui: “Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem agrava”, escreveu ele no Memorial, justificando assim porque “preferia a conversação das mulheres”.

Noutra passagem, é digna de nota uma reflexão que está no capítulo “A Mulher é a desolação do Homem” (LV), onde afirma Machado que “o leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar, os atos e os fatos, até que deduz a verdade que estava, ou parecia estar escondida”.

5) Citações. As citações de autores ou máximas famosas são constantes no estilo de Machado de Assis. Em Esaú e Jacó, entretanto, como ressalta Massaud Moisés, “as citações assumem uma postura diferente, aderem mais, justificam-se mais do que antes, pois acabam sendo o depuramento, pela memória, dum hábito de longa data.”

Logo no início do livro (Cap. III), está uma citação em francês, extraída do Britannicus, de Racine, um dos maiores teatrólogos franceses: “ni cet excès d’honneur, ni cette indignité” (nem tal excesso de honra, nem tal indignidade). No Cap. XV, o próprio título contém uma citação latina extraída de um hino religioso medieval, que é cantado nas missas dos mortos: “teste David cum Sibylla” (diz David, diz a Sibila), o que quer dizer que tanto as profecias religiosas como pagãs chegam ao mesmo fim.

Digna de nota também é aquela citação da llíada e da Odisséia, de Homero, em que vem definida a personalidade de cada um dos gêmeos (Cap. XLV).

6) Referências bíblicas. Segundo o depoimento do crítico Massaud Moisés, “a Bíblia era um dos livros de cabeceira de Machado de Assis”, principalmente no que concerne à linguagem metafórica, largamente utilizada pelo escritor.

Em Esaú e Jacó, são inúmeras as referências bíblicas que poderíamos inserir aqui, desde o próprio título do livro - Esaú e Jacó, que são personagens bíblicas, até os nomes Pedro e Paulo, que evocam os dois apóstolos. Também os nomes Natividade e Perpétua lembram duas santas da igreja católica. Além desses nomes, que podemos considerar bíblicos, anotem-se ainda as referências:

No Cap. III, o escritor fala de dar esmola “como quer o evangelho”, o que pode ser confirmado com São Mateus, VI, 3: “Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita”. No Cap. VI, refere-se a “uma criatura tirada da coxa de Abraão”, o que igualmente está na Bíblia (cf. Gênesis, XVIII, 11), onde se diz que Abraão e Sara têm filho “já velhos e adiantados em idade”.

No Cap. XIV, há outra referência bíblica que, inclusive, explica o título do livro: “Esaú e Jacó brigaram no seio materno”, o que também aconteceu com o Pedro e Paulo do romance. É o que diz a Bíblia (cf. Gênesis, XXVII, 22): “E os filhos lutavam dentro dela (Rebeca)”. Outra referência bíblica está no Cap. XV, onde o doutor Plácido procura explicação espírita para a rivalidade dos dois gêmeos, citando a Bíblia e mostrando que “os dois apóstolos (Pedro e Paulo) brigaram também”, o que é confirmado pela Epístola de São Paulo aos Gálatas, II, 11, onde se diz que São Paulo “resistiu-lhe na cara” (referindo-se a São Pedro).

7) Interferência do autor. “Machado de Assis foi e sempre será um autor que se torna presente na narração, que intervém, que se faz personagem entre os personagens”, diz o crítico Gustavo Corção. Com efeito, é difícil a gente ler um livro de Machado onde ele não procure dialogar com o leitor. Chama-lhe a atenção, orienta, prepara-o para uma notícia, esclarece sua posição, pede-lhe que não interfira na sua narração; enfim, mantém um verdadeiro diálogo com o leitor ao longo da narrativa.

Em Esaú e Jacó, são inúmeras as passagens, nesse sentido. Como exemplo, veja-se este excerto do Cap. XXVII:

“O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores, que é o seu Interesse particular nos livros.”

Aliás, em todo o capítulo, o escritor dialoga com a leitora, censurando-lhe a curiosidade por querer precipitar os fatos.

8) Personagens. Um detalhe interessante a respeito das personagens machadianas é que elas “não fazem nada, não têm emprego, não têm ocupações”: não têm outra ocupação senão o trabalho de serem personagens de Machado de Assis. Nos seus romances, mesmo da primeira fase, todos estão dispensados do trabalho, porque um dos primeiros cuidados do escritor é “distribuir dotes e heranças, para que seus personagens se movam sem o embaraço da condição servil”. Aliás, conforme o depoimento de Gustavo Corção, isto parece refletir alguma coisa do escritor e da época: “Como homem e cidadão, Machado de Assis é um genuíno representante da sociedade liberal burguesa, e há de ser por isto que insensivelmente, inconscientemente, o trabalho não entra na dinâmica de sua ficção”.

Em Esaú e Jacó, todas as personagens são bem postas na vida e não precisam fazer muito esforço para ganhar dinheiro. Aí está o Aires, diplomata aposentado, o Batista, o Santos, e até o “irmão das almas”, que acaba ficando rico, sem mais nem menos, favorecido pela política do “‘encilhamento”.

9) Linguagem apurada. Para o Prof. Massaud Moisés, um dos melhores atrativos da leitura de Esaú e Jacó é a linguagem, que avulta aqui na sua depuração máxima: “A linguagem mostra-se no melhor de suas possibilidades, enxuta de qualquer excesso, simplificada ao máximo, a ponto de ganhar, aqui mais do que noutro romance, qualquer coisa de clássico, graças ao vigor e à naturalidade presentes”.

É meio difícil transcrever passagens nesse sentido, pois todo o livro é um monumento de perfeição lingüística e artística, não só pela depuração do estilo como pela beleza das imagens, como na passagem abaixo do Cap. XCIII:

“Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras do espírito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a mão trêmula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não combinavam, as letras confundiam-se, depois iam morrendo, não todas, mas salteadamente até que o músculo as lançou de si. No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro. Foi o que ela achou no fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicável”!

Como se vê, nesse excerto, Machado focaliza a temática da dualidade humana em que Paulo era o coração, “no valor e no ímpeto”; Pedro, o espírito, “pela arte e sutileza”: duas partes de um todo, duas metades que se completavam - coração e espírito: corpo e alma.

ESTRUTURA DE ESAÚ E JACÓ

1) Ação. O núcleo central do romance gira em torno da rivalidade entre os dois gêmeos, sendo de fundamental importância aqui também a presença de Flora, que existe porque os gêmeos existem.

Pedro e Paulo, os gêmeos, filhos de Natividade e Santos, nascem sob o signo de uma profecia: seriam rivais na vida, mas estavam fadados à grandeza: “cousas futuras” - como previu a cabocla do Castelo.

Nascem e crescem sob o signo da rivalidade, tal como Esaú e Jacó ou os apóstolos Pedro e Paulo. E por ironia do destino, amam a mesma mulher, Flora, filha do Batista e de D. Cláudia. Flora, a eleita dos dois, que também os ama a ambos, acaba morrendo, como solução para o intrincado impasse. Pedro e Paulo, depois de formados - médico e advogado, respectivamente, chegam às “cousas futuras”: tornam-se deputados.

No romance, é marcante a figura do Conselheiro Aires, pai espiritual dos gêmeos. Sua presença acaba por ofuscar as demais, passando de personagem secundária a principal, “ocupando o centro de toda a narrativa”, como salienta Massaud Moisés.
O drama central do livro é um triângulo, onde os gêmeos assumem posições opostas (PxP) e buscam a mesma mulher (Flora), que tenta uni-los, (P=P) assentada no seu trono etéreo, inatingível. Entre eles se põe o Aires, que ocupa o centro do triângulo e do livro, como guia e pai espiritual dos três.

2) Lugar. A história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro, com diversas referências a localidades ainda hoje existentes, como o Morro do Castelo (hoje Esplanada do Castelo), Botafogo, Andaraí e outras.
Mais no fim do romance, a ação se desloca, durante algum tempo, para Petrópolis.

3) Tempo. Embora Machado seja mestre no tempo psicológico, aqui a seqüência dos fatos se revela essencialmente cronológica; inicia-se com a previsão da cabocla do Castelo, em 1871, indo até os primeiros anos da República (1889). Muitos fatos políticos que se situam nesse espaço de tempo merecem referências, como é o caso da Proclamação da República, que ocupa mais de dois capítulos do livro.

4) Personagens. Com exceção do Conselheiro Aires, todas as personagens de Esaú e Jacó são fracas e estão muito longe da complexidade humana das grandes personagens machadianas. Todas elas, com exceção do Aires, podem ser classificadas como planas, dada a fragilidade que encerram.

A seguir, procuraremos apresentá-las para que se tenha uma idéia mais precisa do perfil de cada uma.

a) Aires. Como já dissemos, o Conselheiro Aires acaba ocupando o centro de toda a narrativa, dada a sua importância no romance como guia espiritual dos meninos. Era estimado e respeitado pela sua conduta ímpar, pela sua hombridade, experiência e dignidade. O título que ostenta - conselheiro - é mais um rótulo feliz de seu papel ao pé daqueles com quem convive do que uma simples referência à glória diplomática. Como observa Massaud Moisés, “é um homem de nervos, sangue, cheio de humanidade, de contradição por isso mesmo, dono duma vitalidade incomum à idade e, simultaneamente, duma melancólica e conformista visão da existência”, no que lembra o próprio Machado de Assis.

Em suma, “Aires é a crença no homem e no seu destino terreno” e revela na obra um gosto pela vida que encanta pela alta dose de sinceridade e pela concepção estóica e sábia da existência.

Para outros detalhes do personagem, leia-se o capítulo XII, onde é apresentado ao leitor.

b) Pedro e Paulo. Pedro e Paulo são os gêmeos que dão nome ao livro (Esaú e Jacó). Caracteriza-os uma rivalidade que remonta ao ventre materno, quando já brigavam.

Não constituem individualidades autônomas, não passando de símbolos da dualidade do ser humano, na sua natureza complexa e intrincada, que só uma Flora pode ver e “explicar”: “No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro”. E que são o “coração” e o “espírito” senão dualidades do mesmo ser? Era certamente por isso que Flora não os distinguia, chamando Paulo de Pedro e vice-versa:

Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo”, como se vê no Cap. XXXV.

Mas a dupla Pedro-Paulo é não só símbolo da dualidade do ser humano como também um meio de Machado pôr a vivo a situação política dos fins do século XIX, em que igualmente está implícita a ambigüidade humana: Pedro era monarquista (conservador), Paulo republicano (liberal): “A razão parece-me ser que o espírito de inquietação está em Paulo, e o de conservação em Pedro”.

Segundo a caracterização do Aires, ainda dentro dessa linha de oposições, o perfil de Pedro estava no início da Odisséia, de Homero:

“- Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa llion...”

O de Paulo no começo da Ilíada:

“- Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à estância de Plutão tantas almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães...”

Quer dizer, Pedro era astuto como Ulisses; Paulo, colérico como Aquiles.

Enfim, como ressalta o crítico Affonso Romano, “a narrativa machadiana desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade através de um jogo de oposições”, em que Pedro e Paulo estão como “a dualidade básica do livro”.

E assim termina o livro: os gêmeos, agora deputados - “eleitos em oposição um ao outro” - continuavam rivalizando pela vida: eles eram “os mesmos, desde o útero” - assevera o Aires. Assim é o homem, desde a criação, feito à imagem e semelhança de Deus...

c) Flora. É uma personagem que atravessa a sua curta existência sem perturbar ninguém, ofuscando-se no ocaso da vida sem nenhuma manifestação de natureza ruidosa. “Flora toca-nos, comove-nos até, mas desaparece mansamente do romance como desaparece mansamente de nossa memória sem deixar maior rasto impressivo, como deixa Capitu para sempre e sempre”.

Flora não é uma personagem de carne e osso, como o é Sofia ou Capitu. É antes uma idéia poética, um ideal de juventude do que propriamente uma personagem. “Por pouco é uma heroína romântica, não fosse haver ao todo de sua personalidade um grão de mistério para além dos problemas de ordem amorosa”: vive de leve, morre de leve, sem perturbar ninguém com sua presença, como se não tivesse direito à vida, ou se sua presença fosse o motivo da discórdia entre os dois irmãos, que ela confunde numa só pessoa.

Enfim, como a vê o Aires, Flora é uma criatura inexplicável: “acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita...”

d) Batista - D. Cláudia. São os pais de Flora. D. Cláudia é o retrato da mulher forte, que subjuga o marido fraco. Em muitas partes, “D. Cláudia sobe como personagem, ainda que desça como criatura, pela estreiteza de seus desígnios egoísticos.” A fraqueza do Batista e a fortaleza da mulher podem ser vistas no Cap. XLVII, onde Machado coloca a mulher como sinônimo do diabo. O Batista é o tipo do político que quer subir, mas é fraco; D. Cláudia a mulher ambiciosa que quer tudo para o marido, porque serão delas os privilégios e regalias do sucesso e das glórias dele.

e) Natividade - Santos. São os pais dos gêmeos. Ela, esposa dedicada e mãe extremada, que não hesita em se expor à opinião pública em favor dos filhos, como no caso da consulta à cabocla do Castelo, aonde foi juntamente com a irmã, Perpétua: “tinha fé, mas tinha também vexame da opinião”. Ele, comerciante bem sucedido e banqueiro de grande respeito na praça, como toda personagem machadiana. Daí até o baronato é um pulo: “...no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o titulo de Barão de Santos.”

f) Nóbrega. É o “irmão das almas”, que aparece no inicio do livro tirando esmola “para a missa das almas”. Depois fica rico sem fazer muito esforço, beneficiado que foi pela esmola “graúda” de Natividade (como ocorre no início do romance) e pela política do “encilhamento”, famosa na história do Brasil. Foi um dos pretendentes de Flora e representa uma das inúmeras caricaturas machadianas.

g) Plácido. É “doutor em matérias escusas e complexas”, que procura explicar a rivalidade dos gêmeos. Morre desenvolvendo a teoria da “correspondência das letras vogais com os sentidos do homem”.
h) Perpétua. Irmã de Natividade e, portanto, tia dos gêmeos. É a responsável pelos nomes dos meninos, que, segundo Machado, os tirou do Credo, “estando à missa”, o que constitui um “cochilo” machadiano, pois, no Credo, não há referência aos apóstolos Pedro e Paulo. Certamente quis dizer no “Confiteor”, onde os dois apóstolos estão presentes. Afinal, até o bom Homero “cochilou”: “Aliquando bonus dormitat Homerus...”

i) Rita. É a mana do Aires, com quem Flora vai passar uma temporada, em cuja casa acaba morrendo. Era viúva e se vangloriava de “ter cortado os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos”.

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES

Embora Esaú e Jacó apresente a juventude de Flora e dos gêmeos, além de outros, bem como a idade provecta do Aires, marcada pela serenidade e sabedoria, temas que podem ser estudados no livro, o núcleo principal do romance é a dualidade do ser humano.

Ao abordá-lo, Machado de Assis faz um retrato do momento político brasileiro, em que o Brasil passa de Império a República, mudança que tem um tratamento irônico no livro.

1) Dualidade do ser humano. É o que está explicito no próprio título do livro: Esaú e Jacó, figuras bíblicas que rotulam o romance, filhos de lsaac e Rebeca, que se caracterizaram pela rivalidade. No romance, os irmãos têm nome de Pedro e Paulo, o que evoca os dois apóstolos, também rivais, segundo a explicação do velho Plácido.

Pedro e Paulo, como já ressaltamos “não são individualidades autônomas”, não são pessoas físicas, mas símbolos, representação duma dualidade radical no homem, desde a criação, como faz sugerir a expressão “desde o útero” e a “flor eterna” do Aires, no final do romance: o homem nasceu assim, é assim, e será eternamente assim.

O drama, que constitui o caso psicológico e humano abordado no romance, resulta de serem os gêmeos dois e não um. Quer dizer, os dois gênios (Pedro e Paulo) que deveriam nascer em um, nascem em dois. Os dois aspectos que deviam estar numa só pessoa, como é normal, brotam em duas.

Machado poderia muito bem pegar uma só pessoa e analisar-­lhe essa complexidade dual. Não o fez. Preferiu isolar os dois componentes básicos do ser humano: coração (Paulo) e espírito (Pedro), para usar a nomenclatura de Flora. Isolados em dois, seria mais fácil a dissecação do ser humano, a análise da complexidade antitética do homem.

É isso que Machado quer insinuar: todos nós temos dois gênios (=gêmeos) dentro de nós. Com outras palavras: todos nós temos um Pedro (espírito) e um Paulo (coração). Ora somos inquietos, como Paulo, ora dissimulados, como Pedro; ora republicanos (Paulo), ora conservadores (Pedro).

Por isso mesmo é que Flora os confundia numa só pessoa: Pedro era o lado que faltava em Paulo, e Paulo era o lado que faltava em Pedro; um completava o outro, porque cada um deles não era uma pessoa completa: “Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo”. Também nesse sentido está aquele desenho de Flora, “em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais”, que o Aires identificou com os gêmeos, observando que “as duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido”.

Nesse sentido, outra passagem ainda que merece destaque é a cena da morte de Flora, quando os gêmeos “queriam entrar ambos” no quarto, e Flora tem esta expressiva pergunta que é tomada como delírio da moça:

“- Ambos quais? perguntou Flora.”

Mas o Aires, que conhece e sabe tudo, “rejeitou o delírio”: os gêmeos eram uma só pessoa e, portanto, não podiam ser “ambos”.

Enfim, assim termina o romance: os dois gêmeos deputados com prenúncio de que seriam maiores ainda - Presidente da República, certamente. O pior é que “a presidência da República não podia ser para dous”, e eles eram um em dois, criados à imagem e semelhança de Deus, que é um em três...

2) Momento político brasileiro. A narrativa machadiana vem entrecortada de fatos políticos da história do Brasil: a abolição da escravatura, em 1888, vem aí mencionada opacamente, mas servindo para Paulo tecer considerações nitidamente de sentido republicano “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”. A “emancipação do branco” seria a República, o que “era uma ameaça ao imperador e ao império”, conforme pressente Natividade.

Chega rápida e mansamente a República, da noite para o dia (“Noite de 14” e “Manhã de 15”), o que Machado vai ironizar com a “tabuleta do Custódio”, que caía aos pedaços com a “madeira rachada e comida de bichos”. Era então a “Confeitaria do Império”. Era preciso uma reforma, e o Custódio, embora a contragosto, envia-a ao pintor. Nem bem este tinha acabado a sua obra (estava no “d”), proclama-se a República, sem ao menos avisarem ao pobre homem... Custódio estava desesperado. Em vão o Aires procura consolá-lo, observando que nem tudo estava perdido. Poderia perfeitamente trocar de nome. O pintor parara no “d” (“Confeitaria d”). Era fácil acrescentar “República” (“Confeitaria da República”), ao que o Custódio responde:

Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro”.

Mas como insinua o Aires, agora junto ao Santos, “nada se mudaria; o regime, sim era possível, mas também se muda de roupa sem mudar de pele (...); tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

Fonte:
Hélio Consolaro. Por Trás das Letras.

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 4


3 — O grupo se justapõe à comunidade

A partir dessa etapa preliminar, em que os estudantes se articulam e adquirem consciência do seu estado, forma-se o que se poderia chamar a sua sociabilidade específica. Mesmo antes de 1840 eles já aparecem como grupo diferenciado na pequena cidade de então (doze a quinze mil habitantes); a partir mais ou menos daquele ano, firma-se nitidamente o processo de elaboração de uma expressão própria desse grupo. Imaginemos o estado de coisas àquela altura na capital sossegada e provinciana, que um acadêmico irreverente definia assim: "Depois, o povo paulista tem o mesmo tipo: é monótono por excelência. Chilenas, banguês, burros, padres, capas, mantilhas, lama, caipiras (machos e fêmeas) eis o que encontrava Genesco". Os padrões sociais previam o comportamento de sitiantes, proprietários, comerciantes, advogados, magistrados, funcionários, deputados — isto é, daquilo que os rapazes seriam depois do curso, depois de casados, compadres, pais de família, liberais ou conservadores, almoçando às oito, jantando às três, ceando às sete, dormindo às nove. Mas que padrões se ajustariam ao comportamento de dezenas e logo centenas de moços de gravata lavada, ocupados em atividades tão fora do esquadro? No flanco da comunidade paulistana cresceu e se firmou, com características próprias, o grupo diferenciado de acadêmicos.

Na idade em que estavam, de passagem da adolescência à maturidade, quase todos longe das famílias, socialmente colocados aquém da vida prática, nutridos de idéias e princípios diferentes dos que norteavam os paulistanos, é natural que desenvolvessem tipos excepcionais de comportamento. Antes, tinham sido meninos de família, como os outros; depois, seriam letrados, políticos e proprietários, como os outros. No breve curso da Academia, porém, eram algo diferente. Tanto mais diferentes, quanto os haviam concentrado na pequena e pacata São Paulo, que não possuía estrutura social constituída de modo a englobá-los.

Desse caráter de exceção nutriu-se a sua sociabilidade peculiar, definida por determinados tipos de comportamento, determinada consciência corporativa, e, finalmente, uma expressão intelectual própria.

A sua localização histórica é reconhecível pelo apogeu das manifestações características, que podemos delimitar, de um lado, pela fundação da Sociedade Epicuréia (1845); de outro, pela estadia de Castro Alves (1868). A partir de 1870 a convivência acadêmica se vai alterando. O crescimento rápido da cidade, a diferenciação crescente das funções, modificaram pouco a pouco o sistema de relações entre os dois grupos — o de estudantes e a comunidade. Aquele foi perdendo o relevo próprio, encontrando vias cada vez mais numerosas de conexão com esta, dissolvendo-se na vida comum. Em consequência, perdeu a sua gloriosa exceção, embora não a sua importância.

Na fase que nos interessa, portanto, o "corpo acadêmico" se define sociologicamente como um segmento diferenciado na estrutura da cidade, à qual por enquanto se justapõe, sem propriamente incorporar-se, caracterizando-se pela formação de uma consciência grupal própria. A boêmia e a literatura constituem a manifestação mais tangível desta, configurando o tipo clássico do estudante paulistano, exprimindo o seu ethos peculiar. É verdade que sempre houve numerosos rapazes alheios à vida acadêmica, tendendo por isto a integrar-se nos outros agrupamentos da comunidade e aproximando-se dos seus padrões. Eram os que decoravam o compêndio, cortejavam bons partidos, agradavam os figurões — antecipando-se à vida. Mas o fato é que os momentos de crise tornavam patente o elevado grau de coesão estudantil, como foi o caso, em 1843, das assuadas ao presidente Joaquim José Luís de Sousa, quando a prisão de dois rapazes levou grande parte dos colegas a se constituírem prisioneiros em solidariedade. E mais ainda no chamado "conflito dos cadetes" (1854), em que houve um morto e a cidade se pôs em pé de guerra, acabando tudo com a remoção do batalhão do Exército envolvido nas ocorrências. Nessa ocasião, toda a Academia saiu a limpo, a despeito da situação dramática, reagindo coesa, exigindo e obtendo desagravos aos seus brios, que reputara ofendidos.

Esta situação criava tensões frequentes entre os estudantes e a comunidade, e não há melhor prova da estrutura dual que era então a de São Paulo do que o seu reconhecimento tácito pela administração, nomeando em 1851 e mantendo por longos anos no cargo de delegado de polícia um lente da Faculdade, o conselheiro Furtado, que nesta qualidade servia de ponte entre a população e o grupo estudantil.

Além das estudantadas e da boêmia, a sociabilidade acadêmica se manifestava de modo mais estruturado nas "repúblicas", agremiações literárias, jornais e revistas.

Há em São Paulo uma reunião original, vivendo louca, caprichosa e interessante, que tem uma crônica importantíssima, mas que varia tanto, como o caráter de seus protagonistas.

Não sabemos que mente de poeta, ou de socialista observador, batizou essa reunião sob o nome simpático de República.

Três ou quatro rapazes reúnem-se, pactuam e vão viver na mesma casa, fazendo em comum as despesas do alimento, do aluguel etc. Eis a República proclamada.

Estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos, mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (troça, literatura, estudo), elas eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originaram muitos escritos, muitos projetos literários. Pelos fins do decênio de 1840, nelas se reuniam para improvisar bestialógicos em prosa e verso (gênero da mais alta importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas) João Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, José Bonifácio, o moço, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães — autor do estupendo soneto:

Eu vi dos pólos o gigante alado…

Das repúblicas a sociabilidade literária se expandia pelos grêmios, inaugurados pela Filomática: o Ensaio Filosófico, 1850; o Ateneu Paulistano, 1852; a Associação Culto à Ciência, 1857 (de preparatorianos); o Instituto Acadêmico, 1858; o Clube Literário, o Instituto Científico. Merece lugar à parte a Epicuréia (1845), espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade.

Algumas dessas associações tiveram o seu periódico, destacando-se os famosos Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano e Ensaios Literários do Ateneu Paulistano. E houve jornais, como o Acaiaba (1851), O Guaianá (1856) (cujos nomes indicam a tendência), A Academia (1856), íris (1857).

Concluindo, registremos, do ponto de vista que nos interessa, o caráter complexo e multifuncional do grupo estudantino, no que se refere à literatura.

Note-se, com efeito, que ele constituía um meio estimulante para a produção literária, seja envolvendo o estudante numa atmosfera de exceção, seja integrando-o num sistema de relações em que a atitude literária predominava. Muita gente, que pela vida afora nunca mais ia abrir um livro de ficção ou de poesia, era desta maneira conduzida a pagar o seu tributo, contribuindo para o patrimônio do grupo com produções as mais das vezes sem maior significado estético.

Mais ainda: era um sistema de intercâmbio literário, garantindo o curso das produções, seja por escrito, seja nas frequentes sessões de grêmio, seja nos recitativos, discursos e debates de república ou tertúlia. Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados — circulando de qualquer forma, na falta de bibliotecas e livrarias. Lembremos a importância decisiva que teve na formação de José de Alencar o fato de morar na República de um amigo de Francisco Otaviano — cujos livros pôde assim devorar, familiarizando-se com a literatura francesa, sobretudo Balzac. Conheço uma coleção encadernada dos Ensaios literários, em cuja primeira página se lê, numa letrinha corrente e amarelecida: "Foi arranjado com muito custo e por isso é infilável por sua natureza". Nada mais significativo das formas estudantis de circulação bibliográfica…

Além disso, as repúblicas constituíam o público, — elemento básico no funcionamento e na continuidade da literatura. No século passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilégio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria, devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava pedestal para a evidência das obras na comunidade e eventualmente no país.

Finalmente, o corpo estudantil fornecia a crítica, a sistematização das apreciações impressionistas, a tentativa de interpretar o significado das obras. Nas revistas e nos jornaizinhos, censores e apologistas ombreavam com poetas e prosadores. Alguns, da melhor e mais promissora qualidade, como Álvares de Azevedo e Antônio Joaquim de Macedo Soares — este, um embrião de grande crítico, sem dúvida superior aos que então pontificavam. Dedicando grande interesse à análise dos trabalhos de acadêmicos e ex-acadêmicos, ele enriquece as coleções da Revista Mensal, dos Ensaios e, no Rio, da Revista Popular, com um juízo agudo e equilibrado, que é pena tenha sido desviado em seguida para outros setores.

Estas considerações nada significam, todavia, se não lhes juntarmos uma última, a saber, que o Romantismo facilitou a constituição autárquica do corpo acadêmico, fornecendo-lhe uma ideologia adequada, pelas três vias em que se manifestou aqui: nacionalismo indianista, sentimentalismo ultra-romântico, satanismo. O primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos.

Depois da publicação das poesias de Gonçalves Dias, o regato brotado na fonte de Nênia, de Firmino, alargou-se numa torrente imperiosa, a cujo fio se deixaram ir muitos dos jovens. O Acaiaba, redigido por Couto de Magalhães, depois o Guaianá, votaram-se ao Indianismo, que alastrou também pelas outras revistas, em poesia e crítica. Reconhecido por todos como fundador da poesia brasileira, Gonçalves Dias era por alguns considerado o modelo necessário. Dentro dos critérios de nacionalismo estético, imperantes em nosso Romantismo, julgou-se o valor dos poetas pela presença ou ausência, na sua obra, do pitoresco nacional, mormente o indígena. Álvares de Azevedo, embora admirado, era tido por muitos como pouco, ou não brasileiro, poeticamente. "Manuel Álvares de Azevedo pouco e muito pouco tem de brasileiro: apontaremos só a Canção do sertanejo", escrevem dois estudantes. "As suas poesias, embelezadas nos perfumes da escola byroniana" — diz outro — "não foram inspiradas ao fogo de nossos lares. As harmonias do nosso céu, os perfumes de nossa terra não ofereciam àquela alma ardente, senão um espetáculo quase sem vida; eram maravilhas por assim dizer murchas, ante as quais o poeta não se inclinava". Pode-se ver a que ponto chegou a obsessão indianista dos estudantes de então por esta primeira estrofe de O canto de Ibitinga, de L. B. Castilho:

Deixei taba adornada de crânios,
Meus djicks, meu forte cuang,
Deixei inis aonde embalava
Meus amores mais doces que o pang.

E o mocinho explica em notas, complacentemente, que djick é flecha, cuang é arco, inis é rede, pang é mel…

O Indianismo chegou pois a adquirir aspectos característicos na atmosfera acadêmica. Não obstante, era linguagem de maior comunicabilidade, ligando os estudantes ao nacionalismo — que se manifestou em São Paulo de forma ainda mais geral, na celebração constante do Ipiranga, tema localista correspondente ao que foram o Dois de Julho, na Bahia, a Guerra Holandesa, em Pernambuco, a Inconfidência, em Minas.

Igualmente acessível ao gosto comum foi o sentimentalismo ultra-romântico, — a idealização amorosa, a pieguice, a melancolia, vazadas em ritmos melodiosos e fáceis, desenvolvidos sob a inspiração direta dos portugueses. Constitui a maioria da produção estudantina do tempo, e bem se compreende a importância que teve para definir a ideologia do grupo, graças à sua insistência no poeta solitário, incompreendido, infeliz, separado por um abismo da comunidade dos homens comuns. Era uma solução para exprimir a posição autárquica do estudante, confirmando-o na sua singularidade, na sua diferença.

Ide, minhas canções, voai aos ermos,
Filhas da solidão, voltai a ela!
[B. Guimarães]

Em face do burguês que lhe esconde a filha e resmunga com as suas tropelias, o moço se define como alma de escol, incompreendida do mundo, fadada à infelicidade. Abundam nas revistas de então as diatribes contra a hipocrisia, a corrupção, a dureza da sociedade — saídas por vezes da pena de algum salteador noturno de galinheiros, ou comparsa de pândegas inconfessáveis. Em face da comunidade estática, o grupo trepidante de moços encontra na atitude romântica uma solução ideal para exprimir a sua diferenciação.

Foi, contudo, o satanismo que constituiu a manifestação mais típica dessa singularidade do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que envolvem a vida acadêmica de São Paulo numa atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente. É a típica tonalidade paulistana, difundida por todo o país, contribuição original desta cidade ao Romantismo brasileiro, ligada à pessoa e à obra de Álvares de Azevedo — principalmente o Macário e A noite na taverna. Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e ele encarnam este momento da nossa literatura — sólida trinca de amigos que fascinou muitas gerações de acadêmicos-literatos. E realmente participaram de tal modo dos padrões excepcionais do seu grupo, que não se acomodaram fora dele: Manuel Antônio morreu antes de deixá-lo; Aureliano jamais conseguiu escapar ao seu influxo, a ponto de morrer de bêbado, inadaptado integral à vida; Bernardo deixou a poesia (pelo menos a verdadeira), buscando outro rumo no romance, e na vida foi sempre um inadaptado pouco melhor que o seu infeliz e fraternal amigo.

Com esta corrente, o grupo da Academia atingiu o ponto mais alto da diferenciação e forjou a sua expressão mais característica. Não era possível ir mais longe sem a ruptura total com a sociedade ambiente. E de fato não foi. As "exagerações" da sua poesia não cessam de ser apontadas nos jornaizinhos, e o grupo acadêmico, apesar do fascínio exercido pela lembrança do satanismo, irá pouco a pouco descobrindo conexões que possibilitem a sua integração na comunidade. Varela, que veio pouco depois refazer na vida, e um pouco na poesia, o caminho da famosa tríade, já não passaria de um continuador. Castro Alves dará o sinal da mudança deslocando os rapazes da sua autarquia para a vasta comunhão dos problemas sociais. E o grupo, crescido como floração estranha no flanco da pequena cidade, integrar-se-á lentamente na vida da grande cidade que desponta.

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continua……………
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Trova 169 - Pedro Ornellas (São Paulo)

Fonte:
Imagem obtida em http://edself.blogspot.com

Folclore Popular (Lenda do Preguiçoso)


Diz que era uma vez um homem que era o mais preguiçoso que já se viu debaixo do céu e acima da terra. Ao nascer nem chorou, e se pudesse falar teria dito:

“Choro não. Depois eu choro”.

Também a culpa não era do pobre. Foi o pai que fez pouco caso quando a parteira ralhou com ele: “Não cruze as pernas, moço. Não presta! Atrasa o menino pra nascer e ele pode crescer na preguiça, manhoso”.

E a sina se cumpriu. Cresceu o menino na maior preguiça e fastio. Nada de roça, nada de lida, tanto que um dia o moço se viu sozinho no pequeno sítio da família onde já não se plantava nada. O mato foi crescendo em volta da casa e ele já não tinha o que comer. Vai então que ele chama o vizinho, que era também seu compadre, e pede pra ser enterrado ainda vivo. O outro, no começo, não queria atender ao estranho pedido, mas quando se lembrou de que negar favor e desejo de compadre dá sete anos de azar...

E lá se foi o cortejo. Ia carregado por alguns poucos, nos braços de Josefina, sua rede de estimação. Quando passou diante da casa do fazendeiro mais rico da cidade, este tirou o chapéu, em sinal de respeito, e perguntou:

“Quem é que vai aí? Que Deus o tenha!”

“Deus não tem ainda, não, moço. Tá vivo.”

E quando o fazendeiro soube que era porque não tinha mais o que comer, ofereceu dez sacas de arroz. O preguiçoso levantou a aba do chapéu e ainda da rede cochichou no ouvido do homem:

“Moço, esse seu arroz tá escolhidinho, limpinho e fritinho?”

“Tá não.”

“Então toque o enterro, pessoal.”

Fonte:
Lenda recontada por Giba Pedroza, ilustrada por Orlando. in Revista Nova Escola. Edição Especial. Agosto de 2004.

Ialmar Pio Schneider (Soneto)


Como posso saber se tu me queres
quando me encontro assim... de ti distante ?...
Elejo-te a mais bela das mulheres
e concebo que sejas minha amante.

Quando sonho contigo deslumbrante,
nada me turva a mente e se tiveres
um pensamento alegre, não obstante
o verdadeiro amor não mais esperes...

Lembra-te do poeta que te quis
no decorrer da tua mocidade,
a quem nada ofertaste, mas apenas

fizeste com que fosse outro infeliz,
perdido pelos antros da cidade,
maldizendo das lástimas terrenas...

Canoas - RS, 17 de outubro de 2000

Fonte:
O Autor

Vicência Jaguaribe (Carolina Trovão, seu colar de corais e o raiozinho de sol)


Colar de Carolina
Com seu colar de coral,Carolina corre por entre as colunas da colina.
O colar de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cordo colar de Carolina, põe coroas de coral
nas colunas da colina.
(Cecília Meireles)


- Carolina, corra aqui, me ajude com esta bacia!

E a Carolina acionava as asinhas de seus pés, feito Hermes, o mensageiro dos deuses, e voava para ajudar a mamãe. A bacia estava cheia de roupa lavada para estender no quintal.

- Carolina, onde estão os meus óculos? Preciso ler o jornal e não os encontro!

E a Carolina abria bem seus olhos de lince e achava os óculos do vovô, que fazia um ar de felicidade ao abrir o jornal.

- Carolina! Carolina! Me ajude a pentear os cabelos, que já estou atrasada para a missa!

E a Carolina, com suas mãozinhas de fada, fazia um coque no cabelo da vovó e o prendia com um pente de madrepérola. E a vovó ia bonita e feliz rezar pela família.

- Carolina, leve a Silvinha para passear na colina!

E a Carolina punha seu colar de coral e levava a irmãzinha para passear na colina. E a Carolina ficava mais bonita com os corais do colar colorindo seu colo de cal.

A Carolina, segurando na mão da irmãzinha, apostava corrida com a própria sombra, que às vezes se escondia nas colunas da colina.

A Carolina Trovão era assim: em casa era pau para toda obra. Os adultos nunca a deixavam em paz, e a Carolina ajudava todo mundo. E era um tal de gritar, chamando a Carolina – Carolina, isso; Carolina, aquilo; Carolina, aquilo outro!

E a Carolina Trovão não era Trovão só no sobrenome, não! A Carolina parecia ser o resultado de uma descarga elétrica, que a fazia correr em vez de andar; que lhe conservava em alerta todos os sentidos – seus olhos viam mais; seus ouvidos ouviam mais; seu nariz cheirava mais; sua boca sentia mais gosto e suas mãos tinham mais sensibilidade do que... os olhos, os ouvidos, o nariz, a boca e as mãos das outras crianças e também dos adultos.

Mas a Carolina Trovão era, principalmente ruidosa – falava alto, ria alto, cantava alto e não deixava que ninguém ficasse triste ou desconsolado perto dela. E, sempre que podia, gostava de brincar com gente, com bicho, com coisas e, principalmente, com os elementos da natureza.

Naquele dia, na colina, com a Silvinha, ela percebeu que um raiozinho de sol insistia em tocar nos corais de seu colar. Ela, então, resolveu brincar de esconde-esconde de corais com ele.

Primeiro, puxou seus longos e lisos cabelos ruivos para a frente e escondeu os corais do colar. Mas o vento, amigo do raiozinho de sol, mandou uma rajada, que levantou a bela cabeleira da Carolina, deixando à mostra os corais do seu colar. E o raiozinho de sol caiu diretamente sobre eles.

Depois, ela levantou a gola da blusa de modo a fazer a fazenda cobrir os belos corais do colar. Um raio de sol mais forte do que o raiozinho brincador virou-se diretamente para a Carolina. Ela sentiu tanto calor, que o jeito foi abrir os primeiros botões da blusa e deixar à mostra os lindos corais de seu colar. E o raiozinho de sol refletiu diretamente sobre eles.

Por último, ela tentou proteger-se pelas sombras das colunas da colina, mas o sol mudou de posição, e as sombras foram para o outro lado da colina. Ela ficou, assim, cara a cara com o raiozinho de sol, que se lançou todinho sobre os corais de seu belo colar. E as duas meninas – a Carolina e a Silvinha – viram um espetáculo lindo, que elas nunca tinham visto nem no cinema: os reflexos dos corais do colar da Carolina enfeitaram de coroas de coral as colunas da colina.

Fonte:
Era Uma Vez Outra Vez.