sábado, 5 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 5 –

 

Contos e Lendas do Mundo (A Dor Alheia)

Ao voltar de um exaustivo dia de caça, trazendo segura nos dentes uma pequena corça, a onça encontrou sua toca vazia.

Imaginando que os filhotes estivessem nas imediações, pôs-se a procurá-los com diligência. Olhou e examinou cada canto, sem encontrá-los. Preocupada com a demora que se tornava séria, desesperou-se e tomada de pânico esgoelou-se em urros que encheram de espanto toda a floresta.

Uma anta decidiu indagar a respeito da ocorrência. Chegando junto da toca, viu a onça desatinada e então, jeitosamente, procurou saber dela sobre o que estava acontecendo.

- Devoraram-me os filhotes! - gemeu a onça - infames caçadores cometeram friamente o maior de todos os crimes: mataram os meus filhos.

A anta conciliadora, porém franca, não deixou que a oportunidade se passasse sem que ela dissesse à onça certas verdades que embora dolorosas, careciam ser ouvidas por ela naquele momento. Então falou-lhe:

- Mas senhora onça, se analisar bem o fato, há de convir que suas acusações não procedem. Perdoe-me a franqueza, nessa hora de desespero. Respeito a sua dor, mas devo dizer-lhe que fizeram uma vez aquilo que a senhora pratica todos os dias. Não pode negar que vive sempre a comer os filhotes dos outros, não é verdade? Ainda agora acabou de abater uma corçazinha.

Tomada de indignação, a onça arregalou os olhos como que espantada pela coragem e atrevimento da anta, falando com um ódio mortal:

- Oh, estúpida criatura! É isso que você tem a dizer para consolar o meu coração ferido pela dor? Com que direito você se atreve em comparar os meus filhos com os filhotes dos outros? E como pode comparar o meu sofrimento e desolação ao dos demais? É preciso considerar primeiro a minha posição, em relação à dos outros animais, para depois pesar a situação.

Foi nesse momento que um velho macaco, que bem do alto do seu galho assistia ao diálogo, falou como quem está revestido de autoridade:

- Amiga onça, é sempre assim: A dor alheia só atinge aos altruístas, mas jamais ao egoísta.

Fonte:
Universo das Fábulas

Prof. Garcia (Pantuns) IV


PANTUN DA VIDA CIRCENSE

Trova tema:
No picadeiro da vida
às vezes somos palhaços:
com atitude fingida
maquiamos os fracassos.

(Hélio Pedro – RN)


Às vezes somos palhaços:
E nesse circo sem pano,
maquiamos os fracassos
ante a incerteza e o engano.

E nesse circo sem pano,
com tanta banalidade,
ante a incerteza e o engano,
as marcas vis da maldade.

Cora tanta banalidade,
vê-se em qualquer direção,
as marcas vis da maldade
moldando as marcas no chão.

Vê-se em qualquer direção,
a maldade desmedida,
moldando as marcas no chão
no picadeiro da vida.
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PANTUN DO FALSO ARREMEDO

Trova tema:
Nenhum ourives se atreve
a imitar - nem de arremedo
as filigranas de neve
dos galhos nus do arvoredo!

(Madalena Ferreira – RJ)


A imitar - nem de arremedo...
O que Deus fez e pintou
dos galhos nus do arvoredo
artista nenhum tentou.

O que Deus fez e pintou
com tinta de amor infindo,
artista nenhum tentou
pintar um quadro tão lindo.

Com tinta de amor infindo,
mas sem usar qualquer tinta,
pintar um quadro tão lindo
ninguém tentou ninguém pinta.

Mas sem usar qualquer tinta,
pintar galhos cor de neve,
ninguém tentou ninguém pinta,
nenhum ourives se atreve.
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PANTUN DO FRATERNO ABRAÇO

Trova tema:
O abraço meigo e fraterno,
refletindo nitidez,
no retrato fez eterno
tudo o que o tempo desfez.

(Hélio Alexandre – RN)


Refletindo nitidez,
guardo ainda por lembrança,
tudo o que o tempo desfez
nesta foto de criança,

Guardo ainda por lembrança,
a paz dos nossos perfis,
nesta foto de criança
que tanto nos fez feliz.

A paz dos nossos perfis,
está na fotografia
que tanto nos fez feliz
nas marcas de cada dia.

Está na fotografia,
a expressão do amor eterno,
nas marcas de cada dia,
o abraço meigo e fraterno,
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PANTUN DO TEU CORPO AUSENTE

Trova tema:
Levada por fantasia
de um desejo inconsciente,
eu beijo na cama fria
as formas de um corpo ausente!

(Rita Mourão – SP)


De um desejo inconsciente,
surge na luz da paixão
as formas de um corpo ausente,
presente nessa ilusão.

Surge na luz da paixão,
Tudo que o sonho permite
presente nessa ilusão,
nesse sonho sem limite.

Tudo que o sonho permite
Eu tento manter a calma,
nesse sonho sem limite
nos limites de minha alma.

Eu tento manter a calma,
na loucura que me guia,
nos limites de minha alma
levada por fantasia.
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PANTUN DO VELHO EGOÍSMO

Trova tema:
Por egoísmo e ganância
a Terra está dividida.
Tanto poder e arrogância,
ante a pobreza sofrida.

(Edy Soares – ES)


A terra está dividida.
Fome, morte, sonhos vãos;
ante a pobreza sofrida
poderes lavando as mãos,

Fome, morte, sonhos vãos;
miséria batendo às portas,
poderes lavando as mãos
da exclusão das almas mortas.

Miséria batendo às portas,
lamentando a crueldade,
da exclusão das almas mortas
em meio a tanta maldade.

Lamentando a crueldade
é triste essa mendicância
em meio a tanta maldade,
por egoísmo e ganância.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Arthur de Azevedo (Sova Bem Merecida)


Numa das ruas de uma das estações dos subúrbios vivia, não há muito tempo, numa casa térrea, edificada no meio de um terreno bem plantado, uma família composta de uma senhora quarentona e três rapazes, seus filhos.

A senhora, que se chamava D. Eulália, e era conhecida no bairro pela sua extrema bondade, passava por viúva, mas a verdade é que tinha marido vivo, o Araújo, o maior desordenado que Deus deitou ao mundo.

Durante os cinco primeiros anos de casado, o Araújo, apesar de jogador, foi um marido como outro qualquer - cumpria satisfatoriamente as obrigações conjugais e não dava à esposa motivo para grandes queixas, mas depois do quinto ano, quando já lhe haviam nascido dois rapazes e estava para nascer o terceiro, enrabichou-se por uma atriz de terceira ordem, desapareceu de casa de família e nunca mais lá voltou.

Por mais estranho que pareça ao leitor habituado à tranquilidade e boa harmonia do lar, o caso é que se passaram vinte anos sem que esse extraordinário marido tornasse a ver mulher e filhos.

Os rapazes cresceram e se empregaram sem conhecer o pai senão de nome. Felizmente eram bons filhos: moravam todos três com D. Eulália, a quem nada faltava.

Releva dizer que o marido - justiça se lhe faça! - desde que desapareceu de casa mandava à família todos os meses dinheiro pelo correio, estivesse onde estivesse, e lá uma vez por outra, quando o jogo lhe proporcionava uma boa boiada, lá ia mais uma lambuja.

Jogador de profissão, o Araújo percorria o Brasil inteiro, de norte a sul, bancando ou apontando, perdendo aqui para ganhar acolá, ora, muito por cima, ora muito por baixo, mas sempre ativo, alegre e sadio, como se lhe não doesse nada na consciência.

De vez em quando aparecia com uma nova mulher ao seu lado. A atriz pela qual desprezara a esposa tinha sido cem vezes substituída.

Entretanto, aconteceu-lhe o mesmo que o Aretino: apaixonou-se deveras pela ultima das suas amantes, e teve um sério desgosto quando, entrando em casa uma noite, não a encontrou, mas uma carta em que ela lhe comunicava que, estando farta da companhia de um jogador tresnoitado, tinha encontrado outro amante menos anormal.

O Araújo, que, aliás, tinha ganho alguns contos de réis aquela noite, julgou enlouquecer, e teve um acesso de lágrimas. Todavia, passada a crise, serenou, e veio-lhe à lembrança, aguilhando-o pela primeira vez como um remorso, a família que abandonara havia vinte anos.

Não sei que resolução se passou então na alma daquele homem, o que sei é que ele resolveu ir ter, mesmo àquela hora, com a sua infeliz mulher e pedir-lhe perdão de todos os seus erros.

Saiu de casa, tomou um tilburi, que o fez chegar à estação da central a tempo de apanhar o último trem dos subúrbios.

Na estação ficou embaraçado por não saber onde era a casa. Encontrou, porém, um polícia que o orientou, depois de interrogá-lo com desconfiança.

- Eu sou o marido de D. Eulália.

- D. Eulália é viúva.

- Todos assim pensam. É casada comigo, mas não nos vemos há vinte anos!

- O senhor chegou de viagem?

- Cheguei. Cheguei de uma longa viagem.

- Então desculpe, mas como andam muitos ladrões aqui no bairro... Da própria casa de D. Eulália roubaram uma noite destas não sei quantas galinhas.

E o rondante ensinou ao Araújo onde era a casa de D. Eulália.

O marido entrou com precaução, mas quando ia no meio do terreno, entre o portão e a casa, saltaram-lhe lá de dentro os três rapazes, armados de cacetes, e deram-lhe uma sova tremenda.

- Eu sou o marido de D. Eulália - gritava o desgraçado.

Felizmente D. Eulália, reconhecendo-lhe a voz, gritou aos rapazes:

- Basta, meninos, basta! É vosso pai!.

Cessou a pancadaria, mas o Araújo estava prostrado no chão, descadeirado, sem se poder levantar.

Os rapazes, pedindo-lhe muitas desculpas de o haverem tomado por ladrão, carregaram-no a pulso para dentro de casa, onde o deitaram na cama de um deles.

Ora, aí está como o Araújo voltou à casa depois de uma ausência de vinte anos.

É verdade que desta vez ficou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 4 –

 


Rachel de Queiroz (Amor de acidentado)


ACONTECEU ultimamente um caso que tem chamado atenção. Estava um moço noivo, de casamento marcado para daí a poucos dias, quando de repente, ao atravessar aquela avenida de mau agouro a que por isso mesmo teimam em chamar Getúlio Vargas, caiu-lhe em cima um automóvel desabrido, desses que não procuram saber se o cristão à sua frente é noivo ou é nada – querem é passante jeitoso para derrubar, como de fato este o derrubou. O mundo não é assim mesmo, incerto e enganoso? De nada vale um homem alimentar no seu coração qualquer espécie de sonhos preciosos ou de esperanças; nem vale o alto juízo que ele faça de si ou sequer o juízo que dele façam os outros; o destino está aí na sua frente, de boca aberta e dentes afiados, na figura de um automóvel, de um micróbio, de uma onda de mar, e tanto vai para o buraco o sonhador rico de promessas como o pobre desesperado para o qual a morte já chegou tarde.

Felizmente o nosso moço não chegou a ir para o buraco. Andou perto nas primeiras horas, rebentou muito osso e deitou muito sangue – mas foi socorrido a tempo, e parece que com bastante gaze, gesso e paciência acaba ficando tão perfeito ou quase tão perfeito quanto antes do desastre.

E agora chegando à parte que chama atenção e que todo mundo acha bonito: segundo foi dito antes, estava a vítima de casamento justo, juiz apalavrado, padre tratado. A noiva de vestido feito, os doces no forno e o champanha na geladeira. Em vista disso, achou o noivo que, acidentado ou não acidentado, não seria um simples capricho do chofer que iria inutilizar tantos preparativos. E pois não desdisse nada, não adiou os convites: apenas transferiu a cerimônia para a enfermaria do hospital, e em torno do seu leito de dores se procedeu ao enlace, completo e sem atraso de um minuto.

Bem fazem os que se admiram e acham bonito, porque nestes tempos cínicos e desesperados um caso assim é um sinal tangível de que o amor ainda existe no mundo na sua forma mais pura, e passados nove séculos sobre os túmulos de Abelardo e Heloísa, ainda os encontramos reencarnados na mesma fortaleza de paixão e na mesma integridade de sentimento.

Porque diante daquele homem incógnito, enfaixado, todo revestido de gesso, a moça não hesitou em encontrar o seu amado, o seu escolhido, o único que lhe serve e lhe apela à alma no meio dos bilhões de seres do planeta. Afinal, com isso se prova que o que ela amava não era o simples corpo que o automóvel massacrou – não eram aquelas pernas agora entaladas, aquelas costelas em colete de gesso, o rosto, os lábios, os olhos que a gaze está encobrindo, e que ela não pode jurar que sairão os mesmos da aventura. De tudo que havia dentro ou fora daquele corpo e desse corpo fazendo parte, é evidente que ela amava especialmente o escondido coração dentro do peito, ou a flama imortal e imponderável que sob o nome de alma costumamos dizer que mora dentro do coração.

Ele, por seu lado, ninguém pode dizer que amasse menos. Porque um indivíduo que sofreu tal subversão corpórea, mesmo que retorne à vida sem aparente alteração no seu aspecto físico, não é possível que ressurja para a vida com as mesmas disposições de espírito que costumava usar antes. O lógico é que o rapaz atrevido que caiu debaixo das quatro rodas assassinas saia do hospital um senhor morigerado, que olha duas vezes para cada esquina antes de a atravessar. E no entanto esse homem novo está pronto a endossar os compromissos do homem antigo, e não hesita e corre para o que deseja, sem faixa ou tala que o prenda – por quê? Só porque ama, porque acima da dor, e do receio físico e da preocupação com o conserto que lhe estão fazendo os doutores no triste corpo, estão as necessidades, as exigências da alma.

Vivemos em terra de muitos acidentes, e pois o problema do amor com acidentado deve estar entre nós constantemente se propondo; por isso damos publicidade ao caso do casamento no hospital e o apresentamos à meditação dos interessados. Todos nós poderemos, mais cedo ou mais tarde, estar na situação do moço ou da moça da história: e se a meditação não nos ajudar a fugir da sanha matadora do automóvel desconhecido, pelo menos nos ensinará a não perder as esperanças, e até – quem sabe – no meio da desilusão e da tristeza, de repente ver brotar um milagre.

Fonte:
O Cruzeiro. RJ. 23 abril 1949.

Francisco Pessoa (Décimas do Pessoa) II


ADELINA MESQUITA


Ser avó é ser mãe indo e voltando
É chorar duas vezes de alegria
Ser chamada Maria de Maria
Não querer trocar fralda e já trocando
Caducar sem dizer: - tô caducando
Abafar qualquer choro com carícia
Afirmar "dormir pouco, uma delícia"
É mentira de vó, é muito apego
Eu queria ver uma, sem chamego,
Se tivesse uma neta qual ALÍCIA!
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AMOR PROIBIDO

Meu sentimento vaga na poesia,
Meu cantar tomou forma do meu pranto
Pois chorar se por ti, fez-se acalanto
Saber tudo do nada que eu sabia
E sentir que sentindo não sentia
O prazer, se é prazer tudo que sinto
E o amar, se é amor, amo e não minto
Um sei lá!... Posto quando a ti me achego
Na impossibilidade de um chamego
Sonho louco, num louco labirinto...

"Sentindo que sentir eu não sentia
O prazer qual prazer não me aprazia".
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AOS POETAS DE CAICÓ

Eu queria escrever meu sentimento
Mas não sai, a não ser este prospecto
Ou sou eu um carente de intelecto
Em mostrar o meu agradecimento
Pode ser até falta de talento
Pra exprimir o que sinto por vocês
Aturando o Pessoa uma outra vez
Nessa nossa querida Caicó
A rainha de todo Seridó
Quem me dera voltar no outro mês!!!
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INCLUSÃO SOCIAL

Desde os primos vagidos deste mundo
Quando o sopro divino se fez luz,
O saber é a estrada que conduz.
Ao píncaro e ao abismo mais profundo
Caminho, onde caminho e me confundo
Pela vil dualidade do caminho,
Ora cova tristonha, ora ninho
És palco vivo de uma nova vida
O saber faz da rua uma avenida
Porém, pode calçá-la com espinho.
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NO MEU LAR SOU EU QUEM MANDA
QUANDO A PATROA VIAJA!


Sou chefe até do meu chefe
Sou o grito que calou
Se você pensa quem sou
Me beije e eu lhe dou tabefe.
No carteado sou blefe
Dentre as cobras sou a naja,
Quer me ver doido? Reaja...
Mais brabo que urso panda,
No meu lar sou eu quem manda
Quando a patroa viaja!
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PARODIANDO OTACÍLIO BATISTA

o Evangelho nos guia nos conforta
Nos momentos da vida tão cruéis
Que nos tornam pequenos, infiéis,
Sendo a crença o que menos nos importa.
Quando Cristo bateu à minha porta
Convidei-O a entrar: — Faça o favor,
Abençoe-me pois sou um pecador...
Fez-se ouvir sua voz doce, maviosa:
"A mensagem bonita e carinhosa
Faz o homem temer sem sentir dor!"
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QUEM TANTO CANTOU SAUDADE
DEIXOU SAUDADE NA GENTE


Tristeza em toda cidade
Choram nobres e plebeus
Pois se foi sem dar adeus
Quem tanto cantou saudade
Em busca da eternidade
Resolveu partir na frente
Foi seu último repente
Sua única derrota
Grande mestre Chico Mota
Deixou saudade na gente.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

O Soneto – Parte 2

Para exemplificar sua qualidade – totalmente diferente da poesia livre – cada uma tem sua maneira de ser e de desenvolver o tema abordado. Assim vamos transcrever um soneto de nosso patrono Raul de Leoni (1895 – 1926) – sonetista por excelência:

INGRATIDÃO

Nunca mais me esqueci!… Era criança
e em meu velho quintal, ao sol-nascente,
plantei, com minha mão ingênua e mansa,
uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança…
cresceu… cresceu… e, aos poucos, suavemente,
pendeu os ramos sobre um muro em frente
e foi frutificar na vizinhança…

Daí por diante, pela vida inteira,
todas as grandes árvores que em minhas
terras, num sonho esplêndido semeio,

como aquela magnífica amendoeira,
eflorescem nas chácaras vizinhas
e vão dar frutos no pomar alheio…

 
Do poeta Bastos Tigre (1882 – 1957):

ENVELHECER :

Entre pela velhice com cuidado,
pé ante pé, sem provocar rumores
que despertem lembranças do passado,
sonhos de glória e de ilusões de amores.

Do que houveres no teu pomar plantado,
apanha os frutos e recolhe as flores,
mas lavra ainda e cuida o teu eirado –
outros virão colher quando te fores.

Não faças da velhice enfermidade,
alimenta no espírito a saúde,
luta contra as tibiezas da vontade.

Que a neve caia, que o ardor não mude,
mantém-te jovem, não importa a idade :
tem cada idade a sua juventude…


II

Estou sempre a procurar, na internet, novos adeptos do soneto – mas que tristeza! A maioria confunde e fala em soneto como se fosse sinônimo de poesia. Aliás, poesia não se fala nem se escreve, sente-se. Qualquer demonstração escrita em versos é um poema, seja em que estilo for – livre, concreto, metrificado, soneto, trova, etc – tudo é poema. Corriqueiramente, especifica-se um texto em versos como poesia e este hábito é quase impossível de corrigir-se no linguajar do povo e dos versejadores. Tal vício pode ser equiparado ao verbete “agilizar” que foi oficializado por vício de linguagem quando o correto “era” agilitar. Assim, este detalhe tornou-se, também, um vício, por isto, vamos falar de soneto.

Para mim é redundância falar-se em soneto “clássico” ou “tradicional” pois, para ser soneto, tem que ser clássico, isto é, obedecer as exigências de suas regras seculares, rígidas, amarradas em seus quartetos e tercetos, com rimas, métrica e acentuação, o que lhe dá a cadência e a melodia necessária. O soneto tem suas regras presas e algemadas como são nossas leis que regem o comportamento de cada cidadão.

Portanto, um soneto é um poema de 14 versos dividido em dois quartetos e dois tercetos, rimando sempre entre si os dois quartetos, geralmente, no sistema ABBA+ABBA ou ABAB+ABAB e os dois tercetos com duas ou três rimas sempre diferentes dos quartetos, nos esquemas variáveis de infindáveis combinações como CDC+DCD, CDE+CDE; CEC+DED ou CCE+DDE. Muitos contrariam tais regras utilizando três ou quatro rimas nos quartetos, o que esbarra no que determina a tradição, prejudicando, às vezes, sua sonoridade.

Obviamente, as regras rígidas do soneto tem por objetivo, embora camuflado, de dificultar sua montagem como um perfeito quebra-cabeça – o que muitos não entenderam até hoje. E a maioria dos poetas sonetistas sempre aceitaram tal desafio, tanto que, Gonçalves Crespo, poeta brasileiro radicado em Portugal (1846/1883) dizia: “O soneto pode ser, quando muito, um animal bravio que um bom domador, realmente poeta, pode perfeitamente domesticar – basta que tenha longa e íntima convivência com suas normas”. Já outro poeta brasileiro, Amadeu Amaral (1875/1929) era mais radical ao afirmar que “muita gente ainda supõe que o poeta tortura suas ideias na grelha do soneto – tal coisa só se dá com os maus poetas”. Portanto, o soneto é um desafio para qualquer poeta, como um alpinista que sempre procura o caminho mais difícil para chegar ao topo da montanha.

Outro detalhe imprescindível na montagem de um soneto, é o último terceto que terá que, forçosamente, ter o último verso carregado de impacto, de emoção ou de enlevo para fechá-lo com ênfase e que dá todo o efeito ao tema abordado, valorizando-o – é a chamada “chave de ouro”. A ausência de tal detalhe, na maioria das vezes, rouba todo o valor do trabalho, aliás, detalhe que deve estar sempre presente em qualquer texto, em prosa ou verso, tradicional ou moderno. É uma necessidade para indicar-lhe o fecho, impedindo que viremos a página para procurar a continuação do trabalho, como ocorre muito amiúde.

A beleza do soneto sempre foi cantada em prosa e verso – como estou fazendo agora, em prosa – e como muitos fizeram em versos, pois o soneto é eterno, dentro de seu estilo peculiar, sua forma diferente, sua estrutura única e seu conteúdo límpido como cristal, de fácil e imediata assimilação e enlevo.

Muitos foram os poetas que o enalteceram em seus quatorze versos, transformando-os em “um rocal de gemas” como bem o definiu o poeta luso-brasileiro Filinto de Almeida, (1857/1945) um dos fundadores da ABL. Mas apesar de tantos, um dos mais belos do gênero é do poeta J. G. de Araujo Jorge (1914/1987) organizador de uma das mais completas coletâneas de sonetos de vários países, em quatro volumes, “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”. Ei-lo :

Fino frasco de forma nobre e pura,
e, ao mesmo tempo, taça de cristal,
onde a vida, em beleza se emoldura
e vibra como um órgão musical.

Em transe, o poeta sempre te procura
para desabafar, sentimental,
seu pobre coração que se amargura
ou seu canto de amor, belo e triunfal!

Cabe em ti tudo quanto em nós palpita,
tudo quanto se sonha ou se concebe:
– a finita emoção, a alma infinita…

Vinho da uva da vida que se pisa,
– és, a um só tempo, a taça em que se bebe,
e o frasco em que a beleza se eterniza.


E se muitos poetas declararam sua idolatria pelo soneto, um sem número de outros enalteceram a beleza da mulher, mas parece que só um salientou a deficiência de tal predicado. E foi nosso saudoso confrade, Roger Feraudy, (1923/2006) – autor de nosso hino – que a entronizou no soneto “ A MOÇA FEIA” :

Não tinha graça, não tinha beleza…
Quando passava, andar desajeitado,
eu a pensar ficava – a natureza
deve num instante ter se descuidado…

No seu semblante havia uma tristeza,
sempre ansiosa, um ar preocupado;
sem atrativos, não era surpresa
quando afastava alguém interessado.

Jamais teve um amante, um amor um dia;
no solitário quarto imaginava
romances que não teve e que queria…

A moça amarga sem nenhum encanto;
a moça triste que ninguém olhava;
a moça feia… que eu amava tanto !


E do poeta P. de Petrus (1920/-) um sonetilho – JANGADEIRO

A aurora, calma e silente,
áurea luz, no céu, espraia:
vitória do sol nascente,
sobre a noite que desmaia.

Vai, jangadeiro valente,
no mar, distante na praia,
e vence a enorme torrente
sobre espumas de cambraia!

De olhos postos no infinito,
esquece as penas da lida,
que o teu lavor é bendito.

Canta e reza à tua sorte:
cantando – enfrentas a vida;
rezando – enfrentas a morte.

- - - - - –
continua…

Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni (http://rauldeleoni.com.br/soneto/
)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 3 –

 

Francisco José Pessoa de Andrade Reis (1949 - 2020)


Com profundo pesar comunico o falecimento esta manhã, devido a problemas cardíacos do poeta, trovador, escritor e oftalmologista Francisco José Pessoa, um amigo com quem trocava emails  "adocicados", por ambos termos diabetes.

Uma grande perda para o mundo literário em geral, em especial para os trovadores. Mal se foi e já deixa saudades.

Abaixo uma parcela ínfima da obra do Dr. Pessoa.
 
 DE PESSOA PRA PESSOA

Poesia é um sonho e, se sonhado,
Sobre nuvens volutas, pictóricas,
Rédeas soltas sem bridas, metafóricas,
Faz do poeta um ser místico e alado.
Quem o lê, leia certo ou leia errado,
Sempre os versos encontram o seu intento…
Lamentar cada um com seu lamento,
E sorrir cada um com seu sorriso,
Coração de poeta é sem juízo
E a razão de fingir é seu talento!

CADA PASSO É MAIS UM SONHO
AO LONGO DO CAMINHAR


Esteja alegre ou tristonho
O poeta enxerga a vida
Tal a terra prometida…
Cada passo é mais um sonho.
Chega ao destino risonho,
Pelo prazer de rimar
E antes mesmo de apear
Em pensamentos, imerso,
Olha pra trás, vê seu verso
Ao longo do caminhar.

Usei todos os atalhos
Que encontrei pelo caminho,
Fiz de quando em quando um ninho,
Fiz de estrelas agasalhos.
Os meus cabelos grisalhos
Tingidos pelo luar,
Retratam bem meu andar…
Embora um tanto tardonho,
Cada passo é mais um sonho
Ao longo do caminhar.


PALHAÇO

A vida se nos faz meros palhaços…
Sorriso solto num choro prendido,
Querer que é dado nunca agradecido
Saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
Embebedar-se tanto pra esquecer,
Sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
No picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
Imagem tão real quanto ilusória
Pranto da morte rindo pra viver!

TROVAS

1
A cobiça sendo um vício
e a renúncia salutar,
nosso menor sacrifício
é saber renunciar.
2
Aconteça o que aconteça
eu nunca vou desistir…
por trás da nuvem espessa,
tem sempre um sol a sorrir!
3
À minha mulher confesso:
- Na atual encarnação,
para apressar teu progresso
sou a tua expiação!
4
Aquele pé de carvalho
plantado em minha lembrança,
cintila gotas de orvalho
quando me vejo criança.
5
À tardinha, todo dia,
assisto o chegar do trem,
esperando por Maria
só que Maria não vem.
6
As estrelas não fenecem
perante à luz que encandeia,
mas docemente adormecem
se a noite é de lua cheia.
7
Eis o grande desafio
para quem se diz cristão:
ter que dizer, renuncio,
em favor de um outro irmão!
8
Esta vidinha da gente
tal a serra é mesmo assim…
ora subida ou vertente
num sobe e desce sem fim.
9
“Faça-se a luz”! e ao fazê-la
com muito amor e carinho,
Deus colocou uma estrela
a clarear meu caminho.
10
Feliz da vida se logra
o Zeca exibe o caneco,
que ele trocou pela sogra
na feira de cacareco.
11
Já que não posso mantê-las
ao alcance do meu braço,
eu canto minhas estrelas
em cada verso que faço.
12
Minha mãe, quanta lembrança,
quem me dera tal jaez…
eu voltar a ser criança
começar tudo outra vez.
13
Minhas lágrimas vertidas
por entre dobras de rugas,
são saudades incontidas
do meu passado... são fugas!
14
Na avenida do fracasso
onde a humanidade avança,
em cada esquina que passo
eu planto um pé de esperança.
15
Não há placa de chegada
na minha estrada da vida…
faço de cada parada
novo ponto de partida.
16
 Nas veredas tortuosas
dessa vida em desalinhos,
nas retas eu colho as rosas
nas curvas tiro os espinhos.
17
Nossas faces, pergaminho,
rastro do tempo que, algoz,
não apagou o carinho
que ainda existe entre nós!
18
Nossa vida não tem prazo
e tal o dia, é assim:
um surgimento, um ocaso,
que por acaso é sem fim!
19
Nos trigais do sentimento
que contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.
20
O inverno se me avizinha
e, no espelho, a contragosto,
vejo que o tempo caminha
deixando o rastro em meu rosto.
21
O meu amor quis safar-se
de mim, então me escondi;
de rosa era seu disfarce…
fui, sorrateiro, e a colhi!
22
O nosso amor passageiro
tal orvalho evaporou…
nasceu e morreu ligeiro,
que nem saudade deixou.
23
Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão…
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!
24
Quem diz ter brilho e alardeia
desdenhando o semelhante,
esquece que a lua cheia
tem seus dias de minguante!
25
Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se
mas não engana a si mesmo!
26
 Quem não quer vencer a estrada
como faz o peregrino,
dobra sempre a esquina errada
na contramão do destino.
27
Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
Nó que se dá, no passado,
e se desfaz no presente.
28
Soluça vazia, a rede,
o armador emudeceu,
marcas de pé, na parede,
choram tanto quanto eu!…
29
Subo às nuvens… fantasia…
e para o amor espalhar,
solto minha poesia
com rimas soltas ao ar.
30
Todo indivíduo que é tolo
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo…
só tem a casca por fora!

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 7: Mala sem alça


— BOM DIA!

— Bom dia. Em que posso ajudar?

— O senhor ainda compra objetos antigos?

— Sim. Este é o meu ramo.

— Tenho uma mesa com quatro cadeiras.

— Teria como dar uma olhada? Trouxe fotos ou filmou os objetos?

— Não, senhor. Fiz melhor. Trouxe no meu carro. Quer dar uma olhada?

— Só se for agora. Onde está o seu automóvel?

— Aqui ao lado.

O dono do topa-tudo levantou de sua mesa cheia de quinquilharias e acompanhou o futuro cliente. Cresceu, claro, os olhos, quando viu que a mercadoria estava em boas condições:

— Quanto quer?

— Diga o senhor.

— Não posso ‘botar’ preço nas bugigangas que meus clientes aparecem por aqui querendo negociar.

— Pensei em duzentos reais.

— Dou cem reais.

— Não dá para melhorar o preço?

— Amigo! Cento e quarenta e cinco reais e não se fala mais no assunto.

— Nem eu, nem o senhor: Cento e cinquenta reais.

— Fechado.

— É toda sua.

***

— Pois não? Posso ajudar?

— Estou vendendo um rádio de pilha e a bateria.

— Se eu puder ver o aparelho...

O cara colocou uma sacola de supermercado sobre a mesa, a mesma, aliás, a única, repleta de pequenas antiguidades:

— Quanto quer?

— Cinquenta reais.

— Vinte e cinco.

— Fechado. O radinho é seu.

***

Entrou um jovem bem apessoado, de terno e gravata:

— Olá!

— Bom dia. Posso ajudar?

— Acho que sim. Ia passando quando vi no seu anúncio, ali fora, dizendo que o senhor compra qualquer coisa.

— Verdade. O que o amigo tem para negociarmos?

— Um troço bem usado. E bem velho também. Do tempo que nossas avós andavam de patinete de uma roda só.

— Ok. Diga ai o que é.

— Tenho certeza que o senhor não tem aqui. Pelo menos, na rápida olhada que dei...

— Tá bom. Diga o que é. E o preço. Quem sabe não fechamos negócio?

— Caso o senhor não queira comprar, poderá trocar comigo numa televisão, estante ou aquele guarda-roupas ali, ou a geladeira. Enfim... Faço qualquer coisa...

— Tudo bem, meu amigo. Só preciso saber o que é que o senhor tem para barganharmos e o valor pretendido.

— A peça tem mais de noventa anos. Apesar da idade, faz tudo: lava, passa, cozinha, joga conversa fora, late, mia, grita...

— Não estou conseguindo acompanhar o seu raciocínio.

— Acho que fui bem claro...

— Pelo que entendi, o senhor tem um gato ou um cachorro... Já que o prezado deixou claro que mia e late!

— Acertou. É um animal. Eu acrescentaria mais. Um animal peçonhento.

— Meu Deus! Um porco? Um leão? Uma cobra? Um elefante, talvez?

— Quase...

O comerciante coçou a cabeça:

— Apesar desses bichos que mencionei não latirem, nem miarem, agora fiquei encucado. Ele lava, passa e etc... Seja mais claro, por favor... Sou meio lerdo, às vezes, no raciocínio...

— Dá uma olhada, por gentileza.

O sujeito entregou um envelope ao dono do comércio. Ao abrir, se deparou com várias fotos de uma senhora em idade bastante avançada:

— Amigo, isto é algum tipo de brincadeira? Não negocio pessoas. Ficou louco?

— Eu sei que não negocia seres humanos, aliás, isso ai nem pode ser considerado um... Mas se abrisse uma exceção, quanto me daria?

— Prezado, tenho mais o que fazer. Passe bem. Bom dia.

Todavia, a criatura insistiu:

— Quanto?

O lojista achou melhor entrar na piração da criatura e ver até onde o chato de galochas chegaria:

— Sua mãe?

— Não.

— Avó?

— Não.

— Tia, irmã, sobrinha... Algum vizinho criador de caso?

— Minha sogra. Se eu lhe trouxer essa desgraça aqui, fechamos na cama de casal com aqueles dois criados-mudos que estão ali naquele canto?

O mercador se enfureceu. Saiu literalmente do sério. Para não partir para as vias de fato, precisou acionar a polícia. Somente desta forma conseguiu tirar o sujeito cara de pau de dentro de seu estabelecimento.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 5 –

Antônio Barbosa Bacelar

 
Lisboa, 1610 – 1663

A UMAS SAUDADES

Saudades de meu bem, que noite e dia
a alma atormentais, se é vosso intento
acabares-me a vida com tormento,
mais lisonja será que tirania.

Mas quando me matar vossa porfia,
de morrer tenho tal contentamento,
que em me matando vosso sentimento,
me há de ressuscitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo
satisfazer com mortes repetidas
o que à beleza sua estou devendo;

vidas me dai para tirar-me vidas,
que ao grande gosto com que as for perdendo,
serão todas as mortes bem devidas.
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Antônio Barbosa Bacelar nasceu em Lisboa, frequentando o Colégio de Santo Antão e indo depois estudar Direito em  Coimbra. Tendo-se dedicado à magistratura, foi corregedor em Castelo Branco, provedor em Évora, desembargador no Porto e magistrado na Casa da Suplicação em Lisboa. A par do trabalho no âmbito da justiça, dedicou-se à escrita, nomeadamente à historiografia e à poesia. A sua obra poética está essencialmente publicada na Fénix Renascida.
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Padre Baltasar Estaço
 
Évora, 1570 – 16??

A UM IRMÃO AUSENTE

Dividiu o amor e a sorte esquiva
em partes o sujeito em que morais;
este corpo tem preso onde faltais,
esta alma onde andais anda cativa.

Contente na prisão, mas pensativa,
porque este mal tão mal remediais,
que vós comigo lá solto vivais,
e eu sem mim e sem vós cá preso viva.

Mas lograi desse bem quanto lograis,
que eu como parte vossa o estou logrando
e sinto quanto gosto andares sentindo;

cá folgo, porque sei que lá folgais,
porque minha alma logra imaginando
o que lograr não pode possuindo.
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Foi Cônego da Sé de Viseu. Dedicou-se à poesia e à filosofia escolástica. Por motivos desconhecidos. foi processado pela Inquisição e preso em julho de 1614. Sabe-se que esteve preso em Coimbra em 1616, onde tentou suicídio, sendo transferido para Lisboa no ano seguinte. Em 1620 é condenado a prisão perpétua, mas é libertado em 1621 com a condição de não voltar a Viseu. Publicou, a pedido de D. João de Bragança, bispo de Viseu, a obra Sonetos, Éclogas e Outras Rimas (Coimbra, 1604), onde glorifica vários santos e condena as vaidades do mundo num estilo em que ele próprio se propõe dar o exemplo de humildade, mas que é sobretudo feito da exploração teológica dos paradoxos e da coincidentia oppositorum no amor a Deus. Deixou diversas obras manuscritas.
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Luís de Camões
 
Lisboa, c.1524 – c.1580

AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é um fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;

é um não querer mais que bem querer;
é solitário andar por entre a gente;
é um não contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder;

é um estar-se preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é um ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade,
sendo a si tão contrário o mesmo amor?
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Luís Vaz de Camões foi um poeta nacional de Portugal, considerado uma das maiores figuras da literatura lusófona e um dos grandes poetas da tradição ocidental. Pouco se sabe com certeza sobre a sua vida. Aparentemente nasceu em Lisboa, de uma família da pequena nobreza. Sobre a sua infância tudo é conjetura mas, ainda jovem, terá recebido uma sólida educação nos moldes clássicos, dominando o latim e conhecendo a literatura e a história antigas e modernas. Pode ter estudado na Universidade de Coimbra, mas a sua passagem pela escola não é documentada. Frequentou a corte de D. João III, iniciou a sua carreira como poeta lírico e envolveu-se, como narra a tradição, em amores com damas da nobreza e possivelmente plebeias, além de levar uma vida boêmia e turbulenta. Diz-se que, por conta de um amor frustrado, autoexilou-se em África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Voltando a Portugal, feriu um servo do Paço e foi preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Passando lá vários anos, enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e escreveu a sua obra mais conhecida, a epopeia nacionalista Os Lusíadas. De volta à pátria, publicou Os Lusíadas e recebeu uma pequena pensão do rei D. Sebastião pelos serviços prestados à Coroa, mas nos seus anos finais parece ter enfrentado dificuldades para se manter. Camões foi um renovador da língua portuguesa e fixou-lhe um duradouro cânone; tornou-se um dos mais fortes símbolos de identidade da sua pátria e é uma referência para toda a comunidade lusófona internacional.
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 D. Tomás de Noronha
 
Alenquer, ???? – 1651

A UMA DAMA PRÓDIGA DE FAVORES

Se assim, formosa Helena, como és sol,
não deras tantas mostras de ser lua,
não te tivera o mundo por comua*,
nem quem tanto te quer por caracol.

Olha que já te traz a fama o rol
por ser a tua grandeza a todos nua,
e pode ser que ganhes sendo crua
não acudindo como peixe ao anzol.

Ai! muda, muda, Helena, muda as modas,
e não sejas, oh! não! como é a corça,
que mais corre como a seta que a lastima.

Ama a quem te mais quer, e não a todos,
que repartido o amor tem menos força,
e a coisa que é mais comua não se estima.
*comua = comum
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Era filho de um fidalgo escudeiro do rei D. Sebastião. Casou com uma prima e, tendo enviuvado, casou pela segunda vez. Jacinto Cordeiro, no seu Elogio dos Poetas Lusitanos (1631), coloca-o entre os mais célebres poetas do seu tempo. Participou no movimento de reação crítica ao estilo poético existente na Fénix Renascida e no Postilhão de Apolo, atacando o ridículo do artificiosismo que se fazia sentir nas composições literárias da época. Podou, em oitavas herói-cômicas, o estilo do seu tempo em autênticas paródias de lugares-comuns gongóricos. Dedicou-se, assim, à sátira caricaturesca dos vícios, vergonhas e torpezas sociais em estilo quase sempre indecoroso e grosseiro. Os versos eram para ele ora uma forma de pedir favores (o que é vulgar até ao Romantismo), ora uma forma de descarregar os seus ressentimentos de fidalgo de alta estirpe sem rendimentos condignos. A sua miséria fê-lo perder todo o respeito às diferentes condições sociais, sem excluir as prestigiadas pela religião ou as que motivam a compaixão, pelo sofrimento que vivem. Desenhou-nos o feroz autorretrato atualizado do escudeiro vicentino, entre outras críticas de tipos e costumes. Conhecido pelo apelido de Marcial de Alenquer devido ao caráter satírico das suas composições poéticas, deixou-nos ótimos exemplos de textos ricos em alusões ao mundo social.
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Violante do Céu
 
Lisboa, 1602 – 1693

VIDA QUE NÃO ACABA DE ACABAR-SE

Vida que não acaba de acabar-se,
chegando já de vós a despedir-se,
ou deixa por sentida de sentir-se,
ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-se,
pois chega já de vós a dividir-se,
ou procura vivendo consumir-se,
ou pretende matando eternizar-se.

O certo é, Senhor, que não fenece,
antes no que padece se reporta,
por que não se limite o que padece.

Mas, viver entre lágrimas, que importa?
Se vida que entre ausências permanece
é só vida ao pesar, ao gosto morta?
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Soror Violante do Céu era uma freira dominicana que na vida secular se chamou Violante Montesino. Professou no Convento de Nossa Senhora do Rosário da Ordem de S. Domingos em 1630. Foi uma das poetisas mais consideradas do seu tempo, sendo conhecida pelos meios culturais da época como Décima Musa e Fênix dos Engenhos Lusitanos. É hoje um dos máximos expoentes da poesia barroca em Portugal. Aos 17 anos celebrizou-se ao compor uma comédia para ser representada durante a visita de Filipe II a Lisboa.
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Ignácio de Loyola Brandão (Lígia, por um momento!)


“Há mais de um ano espero a chance para te fazer uma pergunta”, disse Zé Mário. “Te dou uma carona, vamos conversando.” Aceitei, eram onze da noite, não havia como sair do Ibirapuera, a não ser que se     achasse um táxi, na pura sorte. Ou atravessando as alamedas escuras, se conseguisse chegar ileso a um ponto de ônibus. Confesso, não tinha coragem de passar entre os eucaliptos e as capoeiras de arbustos. Ter medo de assalto é normal, facilitar é suicídio. Esse era o problema da Bienal do Livro. A saída. No final, as pessoas corriam como baratas, ansiosas em busca de amigos que pudessem levar.

Descemos para o estacionamento, Zé Mário me olhava receoso. Que pergunta seria esta que leva um ano a ser feita? Durante este tempo nos encontramos muitas vezes, ele sempre está em lançamento de livros, coquetéis, faculdades onde faço palestras. Frequentamos os mesmos cinemas, as pessoas de um grupo idêntico, ele é professor de Teoria Literária e eu sou jornalista, escrevo uns contos de vez em quando. Circulamos dentro de áreas restritas, dificilmente fugindo a determinados limites. São os mesmos cinemas, teatros, os bares e restaurantes, mesmas pessoas nas mesmas festas. Talvez por isso eu esteja um pouco afastado; me cansa. Não quero que um dia possam dizer: “Ah, está à procura dele? Pois tem um coquetel para a venda de um saco de feijão, ele vai estar lá.” A gente precisa se resguardar um pouco, se conter. Se dar, porém lentamente, com menos sofreguidão.

Gosto de Zé Mário, ele veio do sul, era garoto ainda, estivemos apaixonados pela mesma mulher. Ganhei dele; e não ficou meu inimigo, ao contrário, tentou se aproximar, e conseguiu. “Naquele tempo, você exercia um fascínio sobre as pessoas, escrevia em jornal, era irônico, todo mundo tinha medo do que você dizia, era um cínico, agressivo. Exatamente o que eu queria ser, eu tinha chegado de Porto Alegre, queria conquistar São Paulo, lembra-se? Queria que me admirassem, as pessoas te curtiam, você tinha chegado da Europa trazendo discos da Joan Baez, o seu apartamento se enchia de gente.” Os discos da Baez. Tenho ainda exatamente os mesmos, nunca mais coloquei na vitrola. Por bloqueio. Não tenho coragem. Sei o que eles me trazem de volta. Ligação e rompimento. Uma tarde, Baez cantava “Baby I Gonna Leave You”, e essa tarde marcou minha vida, como a mais dolorida, ela me deixou com o sentido de rejeição que até hoje, homem maduro, carrego, cheio de insegurança.

Tinha chovido, mas o céu já estava limpo. Rompemos entre luzes irreais, o vapor de mercúrio tornava prateados os gramados úmidos, o silêncio era enorme.

— Pergunta, eu pedi, mais ansioso do que ele.

— Sabe, percebi um dia que minha vida poderia ter sido modificada. E não deixei. Você já teve esta sensação?

— Na hora, não. Depois, sim. Mas depois é fácil ver as coisas. Não dá para julgar, ou se sentir culpado.

— É estranho que você esteja ligado a dois momentos importantes de minha vida. Primeiro, aquela mulher que você ganhou. Tinha de ganhar, você era mais velho, no grupo todos falavam de você e de repente o homem de quem todos falam chega da Europa. Ela era uma atriz principiante, vinda de Porto Alegre. Claro, aceitei, eu também te admirava. Mas, desta vez, foi diferente.

— Diz logo, não fica rodeando.

— Não sei, pode ser que eu tenha criado um mito na minha cabeça. Não me interessa. Fiquei marcado e preciso saber. Talvez haja tempo. Preciso saber, e só você pode me ajudar. É difícil explicar. Ficou na minha cabeça. É uma obsessão. Vai ouvindo, depois me diz. Não, depois me ajuda! Tenho de resolver isso, não posso mais segurar. Se eu conseguir encontrá-la, pode ser que ainda me salve. Ando confuso, perdi minha tese por incapacidade de concentração. Acredita? Acho que não, você continua cínico, não pode ter ideia do que seja sentar-se à mesa para estudar, escrever, tomar notas, e não ver nada, não fixar uma só linha. Me fechei, completamente. Porque sei. Eu me recusei. Recusei uma coisa que desejava. Foi um daqueles momentos que decidem tua vida. Já teve disso? Saber que foi aquele instante e que o teu gesto, o teu próximo passo determinou tudo? Fui covarde, e não me conformo. Fiquei pensando: sempre é tempo. Hoje decidi. Vai ser esta noite: Esteja onde estiver, vou atrás dela. Se estiver em São Paulo, vou bater na porta, não interessa se casou ou não. Se mudou, encho o tanque e vou em frente, nem que tenha de atravessar o Brasil. Pareço bobo, não? Dom Quixote. Pode ser. Esta noite é pra valer. Resolvi.

— Se fosse mais claro, deixasse de falar para você mesmo, seria mais fácil.

— Estou assim, porque você precisa entender a importância. Agora compreendo a frase vida ou morte. É um lugar comum, só que estou dentro dele. Vida ou morte. Um ano atrás eu me apaixonei por uma mulher que estava com você. Nos vimos uma só noite. Nunca mais parei de pensar nela. Nunca mais. Dia e noite. Acordo, levanto, trabalho, durmo, acordo. Um ano. Marquei o dia, hora, tudo. Pareço um moleque, um adolescente? Assim que ela me deixou. Adolescente. Que maravilha. Fazia anos que não me sentia desse jeito. Dormindo abraçado ao travesseiro, imaginando que é ela. Pode? Um homem desquitado, de quarenta anos, dois filhos? Até me dá um pouco de vergonha.

— Pois é, as pessoas andam tão fechadas que se envergonham das emoções. Então, negam tudo, se tornam intransponíveis, não percebem o encanto dos pequenos toques elétricos que fazem a gente vibrar, e viver.

— Deixa isso pra lá. Não te dei carona para analisar emoções da humanidade. Que mania você tem, continua igual ! O problema é que eu preciso encontrar Lígia.

— Ah, Lígia?

— Ela mesmo. Não tem a mínima ideia de como preciso dela. Pensei muito se não criei na minha cabeça alguma coisa. Acho que não. Tenho certeza. A gente não tem muitas certezas na vida, mas esta, eu tenho. É ela.

— Lígia?

— Faz um ano. Você entrou com uma menina loira e sentou-se ao meu lado, lembra-se? Era o último dia que exibiam “Corações e Mentes”, o cinema estava cheio. Você nem tinha me visto, te chamei. Havia um lugar vago ao meu lado. Você pediu: “Guarda que ainda vem uma amiga nossa.” Coloquei minha bolsa. Logo depois, ela chegou. Quando atravessou o corredor à nossa frente, lembra-se, estávamos na segunda fila, do meio para trás, senti que era ela. Só podia ser. Vi o perfil, no escuro. Na penumbra, batido de luz. Alta, o rosto de traços decididos, suave no recorte. Pode? Foi assim que vi, naquela hora. Tinha o andar firme, um jeito meio... soberbo... não é bem a palavra,... é soberbo mesmo. Um certo orgulho, segurança. Você chamou, ela veio, sentou-se ao meu lado. Me deu a mão, sorriu. Engraçado, parecia que nos conhecíamos há tanto tempo. Sempre fui tímido com mulheres desconhecidas, mas não com aquela...

Não com aquela, penso. Por que não com aquela? Que era de intimidar. Lígia não era bonita, porém compensava com todos os truques. Eram muitos. O corpo magro, bem feito e tão desejado. Ela mal tinha ideia como era desejada. Editora de moda e sabia o que vestir, como vestir. Se valorizava. Os olhos eram claros e o sorriso grande. Servia-se deles também para afastar as pessoas. Quando queria, era inacessível, distante, fria. Para isso, valia-se de uma ascendência de menina rica, bem tratada. Gente bem nascida, bem-criada, que falava várias línguas. Claro, a família perdeu tudo, ela teve que trabalhar corno todo mundo. Mas deixava entrever que não era como todo mundo. Por isso, foi difícil para ela, no começo. Havia a distância, o isolamento. Mesmo as pessoas que ela queria, ficavam desconfiadas. Foi apenas uma fase, com os anos, ela se integrou. Casou-se, teve uma filha, foi morar nos Estados Unidos. Mas o casamento balançou, eles voltaram. Foram morar, quase como hippies, numa casinha, na praia, perto do Rio. Tinham guardado algum dinheiro, o marido era correspondente de uma revista americana qualquer. Uma vez, saiu reportagem sobre pessoas que estavam fugindo das cidades. No Jornal do Brasil. Falavam dela. Um rosto feliz, ela fazia bordados que vendia na feira na praça. E, dizia a reportagem, estava se preparando para escrever. Uns contos. Não queria voltar para a cidade. Sua casa era branca, com redes, plantas, desenhos que eles mesmos faziam e colavam pelas paredes. A filha, com dois anos, vivia solta. A casa ficava numa ponta da vila, não havia carros, perigo nenhum. Lígia parecia ter descoberto a vida que a gente queria e não tinha coragem de assumir. Vendo a reportagem, pensei que ela devia ter se transformado muito por dentro. Claro, por que não admitir? Lígia tinha sido uma esnobe. Inadaptada. Áspera. Árdua de se conviver. Foi preciso ser machucada, para descer do seu Olimpo. Verdade que ela tinha sido colocada nesse Olimpo, não subira de propósito. Os seus primeiros contatos com o cotidiano foram acidentados; e ela foi cortando arestas, aparando pontas. Até se tomar pessoa agradável, desejada. Tenho uma grande amiga, Maria Alice, que era confidente de Lígia. Ela sofria, me disse, porque não se sentia atraente. E era, sem saber. Tanto que a maioria do meu grupo a queria. Tanto, que ali estava Flavinho, morto de fixação.
— ... você está me escutando? Estou te enchendo? Estou, está na cara. Fica aí olhando para fora...

— Não , continua. Pensava em Lígia. Fala.

— Está tudo tão vivo na minha cabeça. De repente, no meio do filme, ela estendeu a mão. Cheia de balas. Foi um choque. Pensa bem! Na tela, aquela sangreira do Vietnã. Foi na cena em que o oficial mata o soldado com um tiro na cabeça. E, ao meu lado, aquela mulher com um sorriso, estendendo a mão cheia de açúcar. Acha que fiquei bobo? Eu não! Acho lindo. Me tocou. Apanhei uma bala e senti, comigo mesmo, que estava estabelecida a cumplicidade. Porque ela não ofereceu a bala a vocês. Era uma coisa nossa, ali, no escuro do cinema. Minha e dela. E éramos completamente desconhecidos. Falamos coisas durante o filme. Não me lembro o quê. Só sei que eram observações sobre a vida americana que ela parecia conhecer bem. Detalhes que me escapavam e ela completava. Quando o filme terminou, combinamos de jantar. Todos. Ela estava de carro. Andamos muito, estava estacionado longe, perto da banca de flores do largo do Arouche. Um Volks creme, sujo de barro. “Vim hoje da praia”, ela comentou. “Peguei um desvio todo enlameado.” Abriu a porta, bateu a mão no assento traseiro. “Ainda está cheio de areia. Mas areia não suja, não é?” Olhei as mãos dela, os braços. Era uma noite de calor, ela usava um vestido leve, de algodão cru. Sua pele era morena e senti uma excitação. Lígia trazia o sol na pele, o primeiro sol de verão que tinha queimado levemente seus braços. Quis tocar naquela carne, deixei a mão solta sobre o banco, ela raspava o ombro nos meus dedos. Cúmplice. Ela tinha se tornando minha cúmplice, naquela noite, e gostávamos do jogo.

Me lembro que depois Lígia desapareceu. Passaram seis meses, voltou a São Paulo, procurando emprego em revistas. Tinha se separado, a filha estava com os pais dele, num país aqui da América. Em tudo Lígia precisava ser diferente. Não, nada de ligações comuns, de dia-a-dia. Havia um mistério qualquer nela, uma coisa insondável que não chegávamos a compreender. Penso que somente Maria Alice, a minha amiga que foi confidente dela, chegou a entendê-la um pouco, à certa altura. Porque, então, Lígia iniciaria um processo de abertura para a vida e as coisas. Fazia uma espécie de exame de si mesma, de suas relações, do que pretendia. Mostrava a Maria Alice os esboços dos contos. Rasgava a maioria, insatisfeita. “Nunca estive satisfeita com nada, o que há comigo? Nem com as pessoas, nem com meu trabalho, nem com nada. Mas posso recomeçar, agora vejo tudo tão claro. E vou recomeçar.” Naquela semana em que fomos ver “Corações e Mentes” ela se preparava para ir ao encontro do ex-marido. Pela terceira e última vez, numa tentativa de reconciliação. Achava que valia a pena, porque existia a filha.
— O que é que há? Vou parar, pô!

— Nada disso, continua. Estava me lembrando que naquela semana Lígia ia embora. E você também. Falou nisso o jantar todo. Sei lá que viagem você ia fazer. Ia ver uma escola em Blumenau. A gente ainda gozou: fazer o que em Blumenau? Vai é se enterrar. E, no fundo, estávamos mortos de inveja. Você embarcava no dia seguinte, não foi?

— Isso mesmo! Viagem desgraçada. Por que fui? Era só ficar. Que nada. Fui pensando nela.

— Mas conta do jantar...

— Nada de especial. Você estava interessado na loirinha. Ou não estava? Nem prestei atenção. Só me interessava Lígia. Durante o jantar uma ou duas piadas, um olhar, um sorriso e eu tive certeza. Era ela. Fizemos ali naquela mesa um mundo particular, dentro do qual nos entendemos. Éramos quatro, e na verdade éramos dois. O resto estava isolado, fora de nossos limites. Dá para entender? Não acha incrível esta sensação, quando ela se apodera da gente? Estamos no meio de todo mundo, afastados vinte metros um do outro. Mas a pessoa está dentro do teu círculo, e você no dela. E ninguém penetra nosso cordão mágico. É muito bobo?

— Continua com vergonha, hein? A gente é mesmo besta. Se solta, puxa!

— Na hora de ir embora, percebeu que fizemos uma manobra? Deixamos a loirinha, depois você. Demos voltas incríveis, só para ficarmos juntos. Ela me levou em casa. Ficamos conversando no carro, diante do meu prédio por umas duas horas. Estava amanhecendo quando ela se foi. Eu podia ter dito: sobe comigo. Mas não era hora. Era coisa que, com Lígia, devia acontecer naturalmente. E ia acontecer. Ela ainda perguntou: “Você precisa viajar mesmo? Tem que ir?” Banquei o besta. “Tenho. É a minha carreira, meu futuro.” De tanto pensar no futuro, a gente acaba por destruí-lo. Ela se foi, subi. A mala estava pronta. Se abro, nunca mais viajo, pensei. Não abri. Tomei um café, desci, peguei um táxi e fui para a Rodoviária. Para não encontrar emprego em Blumenau. E voltar seis meses depois, recomeçar. Te procurei, você estava viajando. Daquelas coisas que acontecem em São Paulo. Desencontro, desencontro. Um pouco de besteira minha. No fundo, nos encontramos, mas eu tinha medo. Que você me gozasse. Ou dissesse: ela voltou para o marido, está feliz. Era isso, medo de que ela estivesse bem com o outro.

Penso agora nas coisas que Maria Alice me contou. Cada tarde, ela chegava e desabafava. Tinha ido visitar Lígia. Voltava arrasada, precisava de mim para se recuperar. Lígia tinha voltado grávida da última viagem. Sentiu-se mal e foi ao médico. O médico: “Precisa abortar. Já. E fazer uma operação.” Abriram e fecharam. Nada a fazer, disse o médico. Lígia ficou sabendo. Percebeu o clima à sua volta e exigiu que contassem tudo. Foi para casa. Ficou de cama, porque as pernas tinham se quebrado e os ossos não se consolidavam. Só permitia visita de Maria Alice, dia sim, dia não. Era o contato com o mundo, com as coisas. E lia estranhos livros sobre a vida além da morte. Continuava rasgando os contos que escrevia, trabalhava nos esboços. Parece que desejava permanecer de algum modo. Não confiava na memória das pessoas que a queriam. Queria mais. Achava que era bobagem tudo que fizera. A esnobe que tinha sido. Refez tudo em sua cabeça. Até que um dia não quis mais receber Maria Alice. Mandou dizer que estava com dores. Muito feia. Maria Alice ficava na sala, mandava escritos, recebia bilhetes.

“É hoje, me decidi.” Zé Mário estava quase gritando comigo. “Tem de ser hoje. Para o que der e vier. Vamos lá?”

E sorria. Firme, confiante. Tranquilo. Como vou contar que ela morreu há dois dias?

Fonte:
Ignácio de Loyola Brandão. Cabeças de Segunda-Feira. RJ: Codecri, 1983.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 2 –

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Bom dia, Nhô Juca


Em meados de 1952, quando começou a primeira campanha eleitoral em Maringá, o candidato a prefeito Inocente Villanova Júnior foi buscar em São Paulo um jovem radialista para coordenar e animar os seus comícios. Era um paulista nascido em Itápolis no dia 28 de maio de 1925, Antônio Mário Manicardi, recém-aprovado num concurso para compor o elenco de radionovelas da Rádio América. A proposta do candidato era bem atraente. Manicardi aceitou, mas com o trato de que, após a campanha, voltaria para São Paulo. Até hoje não voltou.

Villanova foi eleito e fez dele o primeiro servidor da prefeitura. Nomeou-o secretário factótum (faz-de-tudo), encarregado de ajudá-lo a instalar e pôr em funcionamento o governo municipal. Seu primeiro ato foi comprar duas mesas e duas cadeiras para mobiliar o gabinete do executivo. Mas precisou pagar com dinheiro saído do bolso do prefeito, porque ainda não havia entrado nem um tostão no caixa do município.

No comando dos comícios, Manicardi ficou logo famoso pela sua voz bonita, pela facilidade de comunicação com a pioneirada e pelos belos poemas que declamava nos intervalos dos discursos. O sucesso foi tal que, além do cargo na prefeitura, ele foi também contratado pela Rádio Cultura para comandar programas sertanejos, graças aos quais ficou conhecido em toda a região usando o nome artístico de “Nhô Juca”.

Além de animar programas de auditório, acordava os ouvintes todas as manhãs com um melodioso e alvissareiro “Bom dia pra vancê”. Anos depois, passou a comandar aos domingos, na TV Cultura, o “Festival de Música Sertaneja”, e durante um bom tempo atuou também na Rádio Difusora e na Rádio Atalaia.

A grande popularidade conquistada como comunicador acabou levando-o a se candidatar à Câmara Municipal – foi vereador por três mandatos, e no último período exerceu a presidência do Legislativo. Nessa oportunidade acumulou o cargo de vice-prefeito e por trinta dias foi prefeito interino, desempenhando a função com eficiência e brilho.

Porém o artista, radialista, político de sucesso Antônio Mário Manicardi, o nosso querido e a cada dia mais admirável Nhô Juca, foi sempre, antes de tudo, um senhor poeta, romântico de nascença – o primeiro poeta da cidade.

Membro fundador da Academia de Letras de Maringá, é frequentador assíduo das reuniões da entidade, onde, com o encanto e a autoridade dos seus vigorosos 95 anos, continua compondo e declamando belíssimos poemas.

E vejam só: se em 1952 a Rádio América de São Paulo perdeu um excelente ator de radionovelas, Maringá, por sorte nossa, ganhou um dos seus mais marcantes pioneiros, um maringaísta com cadeira cativa e permanente na memória e no coração de quantos tiveram e continuam tendo a alegria de conviver com ele. Abração, Poeta.
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Crônica publicada no Jornal do Povo – 29-10-2020

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Benedita de Mello (Poemas Avulsos) 2


A CIDADE DE VICÊNCIA

 Minha cidade pobre e pequenina!
Virgem rezando aos pés do Sirigí!
E’ simples como as flores da campina,
bendita sejas, terra onde eu nasci.

 Cedo, ao fechar seu cálice — a bonina,
olhas o sol! E o sol, cheio de si,
beija-te a silhueta alva e franzina.
Bendita sejas, terra em que eu sofri.

 Amo-te assim, calcada e reprimida,
pelos donos de engenhos explorada,
sem pão, sem vestes, sem amor, sem vida.

É minha a tua dor. São meus os ais
que os teus carros de boi deixam na estrada,
levando o sangue dos canaviais.
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CARNAVAL

Tu não eras assim quando eu te amei.
Do que foste, só tens o nome que usas.
Atitude ora de anjo, ora de rei,
Tinhas virtudes grandes e profusas.

Não fugias ao bem que hoje recusas.
Eras a perfeição com que eu sonhei.
Se de tanto mudar, te não acusas,
É que não sabes que mudaste, e eu sei.

O carnaval chegou, te mascaraste.
De fingir que eras outro, outro ficaste,
Sem perceber que estavas diferente.

O rei momo passou. veio outro dia.
Mas nunca mais te vi sem fantasia,
Retomar o teu eu de antigamente.
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DESPOJOS

Vai-se partindo aos poucos, laço a laço,
Aquele nosso grande amor de outrora.
Ontem foi um desgosto, hoje embaraço.
Amanhã vai-se uma ilusão embora.

Mais uma falsidade revigora
Em minha alma essa dor, esse cansaço.
O próprio ciúme, com um sopro escasso,
Está fadado a perecer agora.

Nada mais acharás, quando voltares,
Que o fundo sono desse amor acorde:
Nem desejos, nem sonhos, nem pesares...

E embora em ti de novo o amor transborde,
Sentirei nos meus lábios, se os beijares,
O sabor da perfídia que me morde.
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DESTINO

Serei sempre algo que te pertenceu.
Um dia fui a tua aspiração.
Fui depois, sem saber, o tudo teu,
Tua sincera e única afeição.

Fui mais tarde um brinquedo em tua mão...
Logo após, uma flor que esmaeceu,
No vaso rubro do teu coração.
Agora, sou teu sonho que morreu...

Hei de ser sempre alguma coisa tua.
Coisa que o teu desprezo não destrua...
Farta, sutil e eterna como a poeira.

E contra o teu querer, tua vaidade,
Quando não puder ser tua saudade,
Eu serei teu remorso a vida inteira.
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ESCONDIDA

Quando em criança, ainda bem criança,
Toda vida levava em brincadeira...
Corriam, a buscar-me, a casa inteira
As meninas de toda a vizinhança.

Debaixo de uma mesa ou uma cadeira,
Por fim era encontrada... que folgança!...
Correria... algazarra... sem tardança,
Ia esconder-se alguma companheira...

Hoje, no sazonar de nossas vidas,
Jogo às vezes sozinha às escondidas
Nas noites em que o ar tem cheiro à lua...

Numa alegria que não podes ver,
A minha alma brincando de esconder,
Fica toda encolhida atrás da tua...
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Benedita de Mello foi uma poetisa e escritora brasileira. Também fundou instituições sociais para cegos. Cega de nascença, publicou diversos livros de poemas. Educadora, professora do Instituto Benjamin Constant, do Rio de Janeiro, onde residia. Seus versos são por vezes perpassados de uma serena amargura. Em seu livro Sol nas trevas, ela descreve a vida vista pelo intelecto de um cego. Matriculou-se no IBC em 1920 e em 1928 tornou-se professora. Seu nome chegou a ser cogitado para a Academia Brasileira de Letras. Seu gênero era basicamente o soneto. (wikipedia)

Rubem Braga (Os Teixeiras Moravam em Frente)


Para não dar nome certo digamos assim: os Teixeiras moravam quase defronte lá de casa.

Não tínhamos nada contra eles: o velho, de bigodes brancos, era sério e cordial e às vezes até nos cumprimentava com deferência. O outro homem da casa tinha uma voz grossa e alta, mas nunca interferiu em nossa vida, e passava a maior parte do tempo em uma fazenda fora da cidade. Além disso, seu jeito de valentão nos agradava, porque ele torcia para o mesmo time que nós.

Mas havia as Teixeiras. Quantas eram, oito ou vinte, as irmãs Teixeira? Sei que era uma casa térrea muito, muito longa, cheia de janelas que davam para rua, e em cada janela havia sempre uma Teixeira espiando. Havia umas que eram boazinhas, mas em conjunto as irmãs Teixeiras eram nossas inimigas, acho que principalmente as mais velhas e mais magras.

As Teixeiras tinham um pecado fundamental: elas não compreendiam que em uma cidade estrangulada entre morros, nós, a infância, teríamos de andar muito para arranjar um campo de futebol; e, portanto, o nosso campo natural para chutar uma bola de borracha ou de meia era a rua mesmo.

Jogávamos descalços, a rua era calçada de pedras irregulares (só muitos anos depois vieram os paralelepípedos, e eu me lembro que os achei feios, com sua cor de granito, sem a doçura das pedras polidas entre as quais medrava o capim; e achei o nome também horroroso, insuportável, paralelepípedos, nome que o prefeito dizia com muita importância, parece que a grande glória de Cachoeiro e o progresso supremo da humanidade residia nessa palavra imensa e antipática – paralelepípedos); mas, como eu ia dizendo, a gente dava tanta topada que todos tínhamos os pés escalavrados: as plantas dos pés eram couro grosso, e as unhas curtas, grossas e tortas, principalmente do dedão e do vizinho dele. Até ainda me lembro de um pedaço do “campo” que era melhor, era do lado da extrema direita de quem jogava de baixo para cima, tinha uma pedra grande, lisa, e depois um meio metro só de terra com capim, lugar esplêndido para chutar em gol ou centrar.

Tenho horror de contar vantagem, muita gente acha que eu quero desmerecer o Rio de Janeiro contando coisas de Cachoeiro, isto é uma injustiça; a prova aqui está: eu reconheço que o Estádio do Maracanã é maior que o nosso campo, até mesmo o Pacaembu é bem maior. Só que nenhum dos dois pode ser tão emocionante, nem jamais foi disputado tão palmo a palmo ou pé a pé, topada a topada, canelada a canelada, às vezes tapa a tapa.

Não consigo me lembrar se a marcação naquele tempo era em diagonal ou por zona; em todo caso a técnica do futebol era diferente, o jogo era ao mesmo tempo mais cavado e mais livre, por exemplo: não era preciso ter onze jogadores de cada lado, podia ser qualquer número, e mesmo às vezes jogavam cinco contra seis pois a gente punha dois menores para equilibrar um vaca-brava maior.

Eu disse que as partidas eram emocionantes; até hoje não compreendo como as Teixeiras jamais se entusiasmaram pelos nossos prélios.

Fonte:
Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas.

O Soneto (Parte 1)

Nota do Blog:

Infelizmente há na internet sonetos que não obedecem às regras obrigatórias próprias a eles. Quando os poetas quebram as regras, o soneto deixa de ser soneto, assim como em outros gêneros poéticos que exigem regras, como por exemplo a trova, que quando não segue a sua estrutura de 4 versos de sete sílabas poéticas, com sentido completo e claro, pode ter outra denominação, mas com certeza ao se denominar trova está incorreto.

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Como todos devem saber – existem dois estilos de poesia: a de composição livre, sem ser subordinada a qualquer norma e a de composição tradicional metrificada, condicionada às suas regras. São dois estilos independentes com suas subdivisões e como aqui vamos tratar exclusivamente dum segmento metrificado – isto é, do soneto – somos forçados a deixar a composição livre à parte. Portanto, vamos falar de soneto? Normalmente, o adepto de tal estilo é rigoroso, preservando-o em suas formas originais e fixas, pois, havemos de considerar que, se partirmos para versos livres estaremos invadindo o estilo oposto – portanto, uma incoerência.

Há muitas controvérsias sobre sua origem que surgiu lá pelo século XII e, embora não tenha sido seu criador, fortaleceu-se e tomou forma própria a partir do italiano Francesco Petrarca (1304/1374) – o modelo petrarquiano. Da Itália, viajou para outros países e na Inglaterra se transformou em soneto inglês, quando foram alteradas somente a colocação de seus quatorze versos – o modelo shakespeariano.

Alguém já disse que o soneto é “a sedução do cárcere” mas eu diria que é “o cárcere da sedução”, pois, conforme o poeta contemporâneo Paulo Bonfim (sagrado o ”príncipe dos poetas brasileiros” em 1991): “ Para muitos, o soneto é inibidor, mas eu acho que é a prova de fogo do poeta. Não considero o soneto o espartilho da poesia”.

Majo & Machado em seu site define muito bem o soneto em relação às suas regras rígidas, comparado-o com o vinho, essa bebida natural e original: “se servido puro, é vinho; se misturado com água e açúcar, é refresco.” Nada mais lógico e racional.

Alguns pretendem modernizá-lo, como tentou o poeta Augusto Frederico Schmidt, mas Vasco de Castro Lima já alertava que um poema de quatorze versos poderá ser muito poético, mas se não respeitar suas regras rígidas, poderá ser tudo, menos um soneto.

E por que a divergência ? Convenhamos – a beleza do soneto está em sua forma sucinta, elevada, concisa e exclusiva, pois cada estilo de poesia tem suas peculiaridades e maneira diferente de desenvolvê-la. Assim, no segmento metrificado, a trova tem suas regras básicas; o haicai outras diferentes; o ovillejo as suas e assim por diante em função de cada estrutura. Se fugisse das regras, a trova perderia seu valor se transformando numa simples quadrinha – assim é o soneto.

Esmiuçar as regras e a nomenclatura do soneto talvez seja um pouco longo, o que faremos, gradativamente, numa próxima vez. Para adiantar diria somente que é um poema de quatorze versos – dois quartetos e dois tercetos – rimando os dois quartetos e, com rimas diferentes, os dois tercetos.
texto de João Roberto Gullino (Site Casa Raul de Leoni)
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SONETOS IMORTAIS, por J. G. de Araújo Jorge

Todos os sonetos citados nesta crônica encontram-se na minha antologia
“Os mais Belos Sonetos Que o Amor Inspirou”. Volume I – Poesia Brasileira.

Na história da literatura brasileira temos o fato curioso de três grandes poetas que se celebrizaram apenas com um livro: Augusto dos Anjos, com “Eu e Outras Poesias”, Raul de Leoni, com “Luz Mediterrânea”, e Moacir de Almeida, com “Gritos Bárbaros”. Eu acrescentaria um nome bem mais recente, cuja obra “Cânticos Bárbaros”, mereceu em 1934 o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras: trata-se de Mário Cruz, que vive em Petrópolis, e é técnico do Museu Imperial.

Por acaso, são todos poetas de minha predileção, em que pese à diversidade de estilos e temperamentos, ou justamente por isso. Mas, do mesmo modo que há escritores de um único livro, ou que se consagraram por uma de suas obras, há, entre os poetas, os que se celebrizaram apenas por um poema, um soneto.

O exemplo clássico é o de Felix Arvers, autor de “Mês Heures Perdues”, e que teria mergulhado no mais completo anonimato não fosse o seu famoso soneto inspirado por Marie Nodier. Só em língua portuguesa há cerca de 200 traduções conhecidas.

No Brasil há alguns casos mais ou menos semelhantes. Autores de sonetos célebres, ou que se celebrizaram por um soneto, mas com muitas outras produções de valor pelo menos idêntico ao do trabalho consagrado. São por demais citados Bilac com o seu “Ouvir Estrelas”; Raimundo Correia, com “As Pombas” e “Mal Secreto”, e Machado de Assis, com “Carolina”. Carlos Ribeiro, o mercador de livros, me referiu que, às vezes, entram porta adentro de sua livraria e lhe perguntam à queima-roupa:

O senhor tem aí a “Carolina”, de Machado de Assis?

(hoje há outra “Carolina” concorrendo com a de Machado de Assis: a do Chico Buarque de Holanda, poeta moço, que ainda se dá ao luxo de música nos belos poemas que compõe).

Citemos outros: Raul de Leoni está nos álbuns, nos recitais, na memória do povo, cada vez mais, com aquele soneto que não incluiu em sua obra, e que é apresentado ora com o título de “Perfeição”, ora com o título de “Argila”. Eu prefiro “Perfeição”. Quem não será capaz de dize-lo?

Nascemos um para o outro, desta argila
de que são feitas as criaturas raras,
tens legendas pagãs nas carnes claras
e eu trago a alma dos faunos na pupila…”


Mário Pederneiras, poeta carioca, cantor de sua cidade, hoje quase esquecido, ficou com seu “Suave Caminho”, de um lirismo envolvente:

“Assim, ambos assim, no mesmo passo…”

E o final:

“Placidamente pela vida iremos
calçando mágoas, afastando espinhos,
como se a escarpa desta vida fosse
o mais suave de todos os caminhos…”


Nilo Bruzzi, o biógrafo de Casimiro de Abreu e Júlio Salusse, romancista e poeta conquistou seu lugar com um único soneto: “Única”. Pelos primeiros versos vocês se lembrarão logo:

“No turbilhão da vida cotidiana
há sempre oculto um rosto de mulher…”


Há outro poeta que não deixou sequer livro publicado, cearense, falecido em 1941, cujas poesias ficaram esparsas por jornais e revistas de sua terra: o Padre Antônio Tomás. Seu soneto “Contraste” é uma página que traz a marca da perenidade. Canta o poeta: “Quando partimos, no vigor dos anos,/ da vida, pela estrada florescente,/ as esperanças vão conosco à frente/ e vão ficando atrás os desencantos…” Mais tarde, no entanto, conclui: “Nós enxergamos claramente/ quando a existência é rápida e fugaz,/ e vemos que sucede exatamente/ o contrário dos tempos de rapaz:/ os desenganos vão conosco à frente/ e as esperanças vão ficando atrás!”

Julio Salusse, “o último Petrarca brasileiro”, apaixonado pela sua Laura, filha do Conde de Nova Friburgo, criou a imagem do amor eterno com o soneto “Cisnes”. Ainda hoje figura em todos os cadernos de poesia:

“A vida, manso lago azul, algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós, constantemente,
um lago azul sem ondas nem espumas…”


Alceu Wamosy, gaúcho, que morreu pelejando, com apenas 28 anos, imortalizou-se com os quatorze versos de “Duas Almas”. Quem não os sabe de cor?

“Ó tu que vens de longe! Ó tu que vens cansada
entra, e sob o meu teto encontrarás carinho:
eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada…”


Da mesma maneira, Da Costa e Silva, do outro extremo do Brasil, poeta piauiense, está na memória da gente, com o soneto “Saudade”, cujo terceto final ressoa como uma balada de sino:

“Saudade! O Paraíba, velho monge
as barbas brancas alongando… E ao longe
o mugido dos bois da minha terra…”


Quero encerrar, entretanto, esta crônica, com uma surpresa para vocês. Vou apresentar-lhes um soneto inteiramente desconhecido. Recebi-o de um amigo, num velho recorte sem data, já amarelecido, do “Correio da Manhã”, e certamente o incluirei na 3ª edição de minha antologia “Os Mais Belos Sonetos que o Amor inspirou”. O nome do poeta? Otávio Rocha. Não o conheço; nunca encontrei seu nome em qualquer citação. Mas arrisco-me a vaticinar-lhe a celebridade à proporção que se der a divulgação do soneto. Ei-lo na íntegra:

ROMANCE

“Venha me ver sem falta… Estou velhinha.
Iremos recordas nosso passado;
a sua mão quero apertar na minha
quero sonhar ternuras ao seu lado…”

Respondi, pressuroso, numa linha:
“Perdoe-me não ir… ando ocupado.
Ameia-a tanto quanto foi mocinha
e de tal modo também fui amado.

Passou a mocidade num relance…
Hoje estou velho, velha está… Suponho
que perdeu da beleza os vivos traços.

Não quero ver morrer nosso romance…
Prefiro tê-la, jovem no meu sonho,
do que, velha, apertá-la, nos meus braços!


Aí está, o mais velho e o mais belo dos temas, renovado sempre na poesia e no sonho de um poeta.
 
continua...
 
Fonte:
Crônicas de JG de Araujo Jorge extraído do livro ” No Mundo da Poesia ” Edição do Autor -1969