sábado, 30 de abril de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 2

 

Lima Barreto (Amor, cinema e telefone)

Tenho em grande conta a eficácia das medidas legislativas, administrativas e policiais que, diretamente e indiretamente, tendem a civilizar a sociedade. Temos visto o que acontece com o jogo de patota que todos os nossos códigos presentes e passados condenam, o que não tem impedido que virtuosos cavalheiros dele tenham vivido durante meio século, eduquem regiamente filhos e filhas, formando aqueles e casando estas nas rodas mais governamentais possíveis, merecendo, com toda a justiça, serem considerados exemplares pais de família, por toda a gente. Tudo nesta vida é o sucesso. Pode-se começar por este ou aquele meio defeituoso ou condenado; mas, se obteve sucesso, a massa está disposta a admirar o audaz bem-sucedido.

Estas reflexões não são próprias do assunto, tendendo elas unicamente mostrar que a ação da polícia é sempre eficaz para a moralização dos costumes. Até agora, ela não se tinha voltado para os cinemas, deixando de imitar a Liga pela Moralidade que tem uma polícia secreta para julgar, sob o ponto de vista de sua moral particular, os filmes que são corridos nos nossos cinemas.

Não posso auxiliar a nossa polícia legal, porquanto desde muito que não vou a cinematógrafos. Não posso suportar essas hediondas damas americanas: Ketties não sei o quê, Thedas; e os respectivos cavalheiros: Johns, Hamiltons, Tigres de toda a sorte. As mulheres têm uma carnadura de gesso ou mármore artificial e uns gestos duros e angulosos; os homens, com uns enormes olhos que se esbugalham mais no patético, têm um mento (queixo) quadrado de sioux, muito antipático.

E todas essas fitas americanas são brutas histórias de raptos, com salteadores, ignóbeis fantasias de uma pobreza com intenção de causar pena, quando não são melodramas idiotas que deviam fazer chorar as criadas de servir de há quantos anos passados.

Apesar disso tudo, é na assistência delas que nasce muito amor condenado. O cadastro policial registra isso com muita fidelidade e frequência. "Foi", diz uma raptada, "no Cinema X que conheci F. Ele me acompanhou, até". Ela omite alguma coisa que houve antes do acompanhamento. Tem um apelido náutico...

Ainda outro dia, no inquérito a que a polícia procedeu, sobre aquela tragédia conjugal da Rua Juparanã, velo saber-se que a esposa culpada conhecera o seu sedutor no Cinemaz.

O amor, ao que parece, é como o mundo, nasce das trevas; e o cinema não funciona à luz do sol, nem à da eletricidade, nem à da lua que, no velho romantismo das falecidas Eiviras, Grazielas e outras, lhe era tão favorável.

Outro aparelho bem moderno, que está sendo fator constante da dissolução da família, é o telefone.

Um inquérito que corre nos subúrbios sobre um suposto suicídio, por envenenamento, vem mostrando às claras como o telefone é assim como o "livro e aquele que o escreve", no caso sagrado de Paulo e Francesca da Rimini. É e vem sendo o medianeiro de amores ilícitos e criminosos.

Não há dia, hora, minuto, em que eu entre nas casas de negócios da minha vizinhança, que não veja uma moça, uma senhora atracada ao respectivo telefone. Falam baixo e eu fico pensando cá com os meus botões: que tolice irão fazer nos dias que conversam através de um fio de cobre?

O amor deve ser combatido. Ele é o causador, parte primordial, de todos os crimes, violentos ou não, da loucura, do suicídio, do jogo e, até muitas vezes, da embriaguez e intoxicações de toda a sorte.

Todo o instrumento, aparelho que facilita a sua obra, deve ser proibido, acho eu.

Têm a palavra as nossas autoridades.

Fonte:
Publicada na Revista “Careta”,  RJ: 24 de janeiro de 1920.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLII

CONTRASTE


MOTE:
O cansaço é para mim
contraste nesta jornada.
- Meu corpo chegando ao fim,
minha alma em plena alvorada.

Alfredo de Castro
Pouso Alegre/MG, 1922 – 2011

GLOSA:
O cansaço é para mim

uma coisa inaceitável,
é triste senti-lo, enfim,
é uma dor insuportável!

Mas um contraste medonho,
contraste nesta jornada.
querendo acabar meu sonho,
sinto em minha caminhada.

A chorar, eu chego, sim,
pois não consigo aceitar:
- Meu corpo chegando ao fim,
e o peito querendo amar.

Eu não consigo entender:
Minha vida, terminada,
o corpo quase a morrer,
minha alma em plena alvorada.
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NOSSOS CORAÇÕES

MOTE:
Tão forte nos abraçamos
confundidos no entrelaço,
que eu acho até que trocamos
os corações nesse abraço!

Almerinda Liporage
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Tão forte nos abraçamos

com muito amor e alegria
e, com gosto, nos beijamos
com suspiros de euforia!

Ficamos, assim, juntinhos
confundidos no entrelaço.
Nossos sonhos e carinhos
ocuparam nosso espaço!

Com volúpia nos amamos
num amor de realidades,
que eu acho até que trocamos
as nossas identidades!

Porque sabemos amar
seguimos, num só compasso,
chegando mesmo a trocar
os corações nesse abraço!

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SE ÀS VEZES...

MOTE:
Se, às vezes, tenho vontade
de chorar...e tenho feito,
é porque minha saudade
não cabe mais no meu peito!

Aloísio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:

Se, às vezes, tenho vontade

de vagar pela amplidão,
buscando a felicidade,
eu sinto forte emoção!

Tenho vontade, também,
de chorar...e tenho feito.
Calar-me – não vai ninguém,
pois esse é o meu direito!

E se esta minha verdade
põe-se em ponto de explosão,
é porque minha saudade
nasce lá no coração!

Aperto, daqui e dali,
não dá mais, não tem mais jeito,
pois a dor que sinto aqui
não cabe mais no meu peito!
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VARAL DOS ANJOS...

MOTE:
O arco-íris tão bonito
e de tão finos arranjos,
é só o varal do infinito
secando a roupa dos anjos.
Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

GLOSA:

O arco-íris tão bonito
enfeitando o céu de cores,
é o meu quadro favorito
com colorido de flores!

De uma beleza sem fim
e de tão finos arranjos,
traz, com ele, até a mim,
murmúrios de anjos e arcanjos!

Encantada, então, o fito
e sinto muita emoção,
é só o varal do infinito
com roupas do coração!

Escuto a voz da ternura
e os sons doces de mil banjos,
que lembram aragem pura,
secando a roupa dos anjos.
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SER...

MOTE:
Ser poeta e trovador
é um dom que deus nos deu
prova sublime de amor

do pai para um filho seu.
Antônio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis/RJ

GLOSA:

Ser poeta e trovador
é ser dono do universo,
é saber trovar a dor
com a beleza do verso!

E toda essa inspiração
é um dom que deus nos deu.
De emoção, em emoção,
alcançamos o apogeu!

Escrevendo com fervor,
obtemos com alegria,
prova sublime de amor,
sempre em forma de poesia!

Ser poeta é ser ternura.
Eu sinto em meu próprio eu,
que essa é uma dádiva pura
do pai para um filho seu.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Chico Anysio (Júnior)

Tem obsessão pelo filho, a quem chama de Júnior. Nada lhe nega, achando que age de modo correto ao lhe satisfazer os menores desejos.

— Pai, me dá uma prancha?

À tarde traz-lhe não apenas a prancha pedida, mas outras coisas que não tinham sido solicitadas. A mulher acha errado acostumar o filho desse modo.

— Presente, agora, só no aniversário e no Natal.

A promessa à mulher fica na promessa. Cada noite traz uma coisa para o garoto.

— Comprei um tênis lindo pro Júnior.

Quase ofende o garoto entregando-lhe um par de tênis de mau gosto.

— Que tal?

— Bacana.

O garoto põe o tênis a contragosto e sai, sem conseguir esquecer que se calça de azul. Depois que o garoto sai, vai para a janela esperar que ele apareça na calçada, lá embaixo.

— Está um homenzinho.

— É. Precisa é melhorar as notas.

— Paciência.

Poupa o menino de queixas e reclamações. Tem sempre uma explicação para os erros.

— Coisa de menino... é uma criança.

Aceita os defeitos e os rotula de "coisa natural da idade". É seu filho único e seu único amigo. A mulher, um pouco por ciúme, critica este modo de proceder.

— O Júnior está mal acostumado. E você...

— Eu sei o que estou fazendo, Petrônia.

Mudou, recentemente, para uma rua do Encantado. Quer que o filho cresça com a liberdade que ele tinha na idade do menino: jogando peladas na rua, soltando pipa, fazendo bucha para balão. Argumenta, explicando a mudança:

— Quero que o Júnior tenha uma infância feliz como a que eu tive.

A mulher não tem opinião. Quando tem, evita emiti-la. É dominada pelo dominante. No caso da mudança, nem ao menos foi consultada.

— Copacabana é uma perdição. Meu filho não vai ser criado neste inferno.

A mulher conformou-se. Arrumou as malas, encaixotou a louça e, submissa como sempre, trocou o apartamento da zona sul pela casa do Encantado, com 64 metros quadrados de terra mal cuidados a que ele chama de quintal.

— Copacabana era tão bom...

Foi a única ponderação da mulher. Inútil.

— Eu é que sei. Garoto gosta de espaço. Eu, que fui garoto, é que sei. Nada vale o que ele vai ter aqui na rua. Não é, Júnior? Espaço! — enche a boca.

Júnior, 14 anos, confirma sem palavras. Em cada casa da rua há, pelo menos, três meninos. O filho, agora, terá uma "turma", igual à do pai, no passado.

Ali estão há duas semanas. O menino ainda não fez amizades. Prefere a janela, de onde acompanha a pelada.

— Que tal morar aqui, Júnior?

Ele abraça o filho na janela, incomodando-o com o aperto. O menino demora a responder:

— Bom.

Bate nas costas do garoto, instigando-o a fazer amigos, na rua cheia de espaço e tristeza.

— Anda, Júnior. Vai brincar com a molecada.

O garoto não se move. Fica na janela. Dali ele vê o pai meter-se na pelada e conversar com o pretinho que joga melhor.

— Vem, filho. Tem vaga pra você.

O menino vai. Por obediência, apenas. A mulher, na cozinha, faz um bolo de chocolate, para encher o tempo. Agora é ele quem está na janela.

— Olha o ponta desmarcado. Levanta a cabeça quando pegar a bola, Júnior.

O garoto joga mal. É mantido no time pelos picolés que o pai compra para os 14 da pelada. Desembrulha o picolé do filho, dando-o já sem papel e sem perguntar se era de groselha que ele queria.

A televisão desligada aumenta as horas do domingo.

— Amanhã o homem vem instalar a antena.

A mulher gosta da notícia. Vai recomeçar a acompanhar a novela. Não têm mais telefone.

— Sem telefone é outra coisa, não é? Outro sossego...

A mulher olha a mesa onde, em Copacabana, havia um telefone e concorda. Ele senta na sala, no sofá forrado de plástico, com o rádio ligado no futebol. O filho volta com um pequeno corte na perna.

— O que foi isso?

— Nada.

— Nada, como? Está sangrando.

— Foi a unha de um garoto que...

A mulher consegue evitar que ele vá tomar satisfações. É difícil fazer com que ele não se meta nos problemas dos garotos. Demora, mas convence. Ele fica, porém, visivelmente aborrecido. Faz curativo na perna do Júnior.

— Está ardendo?

Não está, mas ele sopra forte, segurando a perna do garoto onde colocara o mertiolate. Atribui à contusão a tristeza do filho.

— Vamos fazer um galinheiro? — propõe.

O garoto consegue evitar o convite que lhe soara como determinação. Mete-se no quarto e se deita sem intenção de dormir. Chega da cozinha o ruído do liquidificador.

— Em Copacabana mora-se em gavetas. Aqui, mora-se no chão. Aqui há chão. O Júnior gosta de espaço.

A mulher não responde. Ele recebe o silêncio como concordância.

— Daqui a uma semana está enturmado...

Vai ao portão. O paletó de pijama aberto permite que ele acaricie os pêlos do peito, fazendo círculos com a mão aberta. Quase se felicita pela ideia de mudar para aquela rua.

— Boa tarde.

O vizinho que passa não responde.

— Não ouviu. — diz-se, explicando.

Os dedos, livres dentro do chinelo folgado, abrem-se confortavelmente. O palito do fósforo passeia nos lábios, vez por outra chupado, quase sempre mordido.

Petrônia põe o bolo no forno, faz um café. A tarde entra em coma, o domingo prepara-se para dormir.

— Cafezinho, Haroldo.

— Opa. Chegou na hora; estava pensando nele.

A mulher serve o café na bandeja, como se ele fosse patrão.

— O Júnior não quer um cafezinho?

— Ele não gosta, Haroldo.

— Quem disse? Põe uma xicrinha pra ele...

A mulher faz.

— Cafezinho, filho?

Estende a bandeja para o garoto, onde a xícara fumaça. O rapaz bebe, sem o menor desejo. Chega a repudiar o último gole. Apressa a explicação, temeroso.

— Tinha pouco açúcar.

— Sua mãe ainda não aprendeu que...

Júnior não escuta a acusação que Haroldo faz. Volta a se enfiar no travesseiro. Está quente, abafado. A mulher vigia o bolo. Haroldo, da janela, olha a única árvore da rua, defronte à sua casa, tentando adivinhar que árvore é aquela. Júnior, no quarto, expira forte o ar quente que engolira. O calor das quatro e meia convida a uma praia. Mas a praia está tão longe do chão onde hoje mora... Vai para a janela.

— Oi, filho. Tarde bonita, né?

O filho, da outra janela, concorda. Ficam os dois assim olhando o chão, a rua, o espaço.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 17

 

João Líbero (A Árvore e o Pàssaro)

Era uma árvore gigantesca! Devia estar ali, sei lá, há séculos, milhares de anos... Alguma coisa assim. Ela abrigava, às vezes, em seus galhos, ninhos, macacos e mesmo uma onça, mas pássaros, sempre!


Um dia sentou em um de seus galhos um pássaro, tão lindo e que ela nunca tinha visto!  Ela olhou o pássaro e falou:

- Pássaro, como você é bonito! Eu nunca vi algo parecido! Tão grande tão lindo!

- Sou um Gavião Real, o maior predador alado do mundo, e eu nunca tinha visto uma árvore assim, tão grande, tão frondosa. Eu te vi lá do alto e resolvi conhece-la!

- Ah! Pássaro, eu invejo você!

- Por quê?

- Porque você pode viajar pelo mundo, voar, ir para onde quiser, você é livre, voa... Eu não! Eu estou aqui, presa no chão, minhas raízes são profundas, não tenho pernas, não tenho asas. Fico aqui sonhando só. Não tenho histórias pra contar!

O Pássaro então retrucou:

- Não pense assim, você tem muita história pra contar. Quanta coisa passou por aqui, nos seus galhos! Perdeu folhagem, ganhou novas, flores... Muita história você tem para contar. Deve ter passado por terremoto!

- É diferente, ficar aqui parada vendo as coisas acontecerem e você não poder participar! Você não, você voa sobre mares, que eu nem sei o que é. Ouço falar, mas nem tenho noção do que possa ser. O rio eu sei o que é, pois eu o vejo lá embaixo no vale. Montanha também sei como é, tem uma grande lá, bem longe. Vejo animais, os mais diferentes passando por aqui, aves pousando nos meus galhos. Ouço conversas, das maravilhas que viram pelo mundo e eu fico aqui, não posso fazer nada!

O Pássaro então disse:

- Árvore imagine! Você está segura aqui, não tem risco nenhum para sua vida, não tem predador, não tem aquele ser humano que nos mata pelo prazer de matar.

- Engano seu, meu amigo Pássaro! Um dia desses veio um humano, chamado Lenhador, com uma máquina barulhenta e cortou uma árvore minha amiga que não tinha nem 100 anos, uma criança ainda, que não vai poder viver como eu! A mim ninguém ataca, pois sou velha, feia, toda enrugada. Não tenho utilidade para os humanos, minha madeira é bem ruim, diferente dessas árvores mais novas, cujas madeiras são tenras, são bonitas. Então eles vêm, destroem e levam embora. Já com você, se você se sentir ameaçado, você voa e você foge.

- É, nesse ponto sim, – disse o Pássaro – diferente de você, eu consigo fugir do perigo. Mas. não sei, Árvore, você tem sua parcela boa de vida. Viveu todos esses anos sem nunca ninguém te incomodar. Eu, se aparecer um inimigo e eu não tiver tempo de voar, tchau Gavião!

- Bem, – disse a Árvore – com a sabedoria do Senhor da Vida, todos nós temos prós e contras. Mas, foi ótimo te conhecer. Apareça!

- Com certeza. Até mais!

E o Gavião Real alçou voo graciosamente, deu uma volta sobre a Árvore, balançou as asas como se acenasse para Árvore, e esta, movimentou os galhos acenando de volta para o novo amigo!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Rascunhos Poéticos Potiguares I


Amir Mansud
Natal/RN

FULÔ DE MANDACARU


Bendita seja
a flor de Mandacaru
que mesmo nascendo na seca
no meio dos urubu
já vem cum gostinho de chuva
a chuva de Nosso Sinhô.

Num sei, meu Deus,
cumé qui pode
dum chão pegando fogo
nascer uma fulô.
É um mistério,
é um milagre,
é coisa de Nosso Sinhô.

A melhor fulô do mundo
escute bem, meu irmão
é a fulô de Mandacaru
a fulô do meu sertão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Diógenes da Cunha Lima
Nova Cruz/RN

PIRANGI

Água clara, mar azul,
suave ser, alegria contida,
moças florescem no azul
da manhã recém-nascida.

Voam velas, luze a luz,
gente e paisagem: harmonia.
Pirangi, praia do amor,
nos dá lição de alegria.

O coração ritmado
nos lábios sorriso breve,
o vento arrepia a pele,
respiro o ar leve, leve.

Nas casas cinzento
perde a sisudez merecida,
o sol dourando a manhã
limpa as vidraças da vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Esmeraldo Siqueira
Vila Nova, hoje Pedro Velho/RN, 1908 – 1987

REDIVIVO


Nenhum de vós me conhece.
Já morri muitas vezes!                     
O que vedes em mim,
Depois de tantas mortes sucessivas,
Não sou eu, mas o egresso de mim mesmo,
Por milagre extraordinário
Da vontade consciente de viver.
Rebentei, uma a uma, as paredes do túmulo
Onde haviam tentado sepultar-me,
E apareci ao sol, completamente outro,
Reafirmando aos brados
O desejo de ser.

 Minhas ressurreições passaram despercebidas
E ninguém duvidou de que eu fosse eu mesmo.
Não vi como nem para que provar
Aos cegos de nascença a existência da luz.
Meus amigos, eu trouxera do berço
Os estigmas negros do infortúnio.
— "Hás de ser infeliz! hás de ser infeliz!" —
Foi o refrão que ouvi durante anos e anos.
E realmente, fui um réprobo da sorte.

 Vieram não sei de onde algozes misteriosos,
Arautos de sinistras potestades,
Cada um com seu suplício original.
Havia três bilhões e meio de outras almas
E era tão grande a terra!
Por que seria eu o eleito supremo,
Justamente eu, meus amigos?
Devo calar em meu próprio respeito.
Por mais que vos falasse,
Não terieis tempo de entender-me.
Gritarei, apesar de tudo,
A plenos pulmões e em tom desafiador:
— Eu sou o liberto! eu sou o liberto!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Felipe Garcia de Medeiros
Caicó/RN

3G (Última Geração)


A esta hora
em que te escrevo
tarda
qualquer expressão.
Se existir na boca
uma sobra de verbo,
ou bafo,
não saberei te dizer
com as mesmas palavras
de Eliot ou Svevo.
Chorei ao ver e ouvir Le Bateau Ivre
de Rimbaud no youtube
e o vídeo colorido
e animado
parecia a realidade
da poesia na realidade
em que eu vivo.

Tem dia que penso em deixar a fantasia
(não pensar no cosmo à noite
e deixar de sonhar
de dia).

encerrar a história sem fim
que tantas vezes
me iluminou na infância.
- Bobagem, ou não.
Ontem passei o dia em vão
como se a alegria
se esgotasse na viagem.

 Aonde
fui me meter
ninguém me esconde.

 Sabia: hoje, ser poeta
é não ser conde
nem santo
nem padre
nem cristo.

 Fiz o plano 3G
e tenho, durante 24h,
noticias filmes poemas
o diabo-a-sete
por apenas 89 reais mensais
acesso à Internet.
Imagina como está minha nova
vida: madrugadas,
estranhas covas,
o silêncio — e a solidão.

 Quando, de repente,
eu ouço rap
me anima
qualquer rima
do Emicida:
ele também é um da gente,
cara ferida.
O que são nossos versos
e essa missão
a que o profeta alude?

 Um dia farão a minha biografia
o documentário
começará com a chamada

 o poeta
e será válida a vida.

 Mas que ritmo robusto
pode aparecer nos meus braços
quando eu abrir as pernas
diante de um site
para ver os filmes mais quentes
não, não sei se vou aguentar
passar a vida inteira
fingindo
como uma Pessoa
boa
ou fingindo
ser uma Pessoa
má - ou rindo
dizendo
que não sou
isto
nem aquilo.

 Ganharia bem mais
se adquirisse um estilo
lucrativo
clonando
ao invés de criar.

 A maior obra está por vir.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ferreira Itajubá
Natal/RN, 1877 – 1912, Rio de Janeiro/RJ

SOMBRAS DA NOITE


Eu amo as sombras que tremulosas
Descem, de luto cobrindo as leiras,
– Ora perdidas nas capoeiras,
– Ora nas vargens silenciosas.

Sombras de longe, sombras saudosas,
Sobre colinas, sombras ligeiras,
Aves noturnas pelas esteiras
Da imensidade de nebulosas.

Nos dilatados, bravios mares,
Sombras inquietas e viajantes,
Iguais às sombras dos meus pesares.

Na praia algente de branca areia,
– Sombras que eu amo, sombras errantes
Das noites claras de lua cheia!

A. A. de Assis (A Terra da Gente)

Sua terra tem palmeiras?... Pois a minha também tem. Palmeiras e sabiás. Tem um rio, o Paraíba do Sul, que algumas léguas adiante se junta ao mar. Tem montanhas, tem coreto com banda-retreta-discursos, tem uma igreja bonita que os capuchinhos ergueram quando há mais de duzentos anos descanoaram no lugar. Tem seresta a noite inteira quando é noite de luar. Tem festa do padroeiro – 24 de abril. E como se não bastasse se apelida e é conhecida como “Cidade Poema”, por conta das coisas belas e dos poetas que nascem muitos por lá.

Por falar nisso, me deem licença para brincar um pouco de saudade. Afinal, se todos cantam sua terra, posso também cantar a minha. E aposto que em quase tudo ela é igualzinha à sua, se é que você viu pela primeira vez o mundo num lugarinho sereno, cheiroso, limpinho, em qualquer um dos tantos charmosos rincões deste gostoso Brasil.

Minha terra tem nome de santo – São Fidélis, alegre cidadezinha crescida (graças a Deus não muito) no norte/noroeste do estado do Rio. Bem no ponto onde termina a planície de Campos dos Goytacazes e começa a subir a serra de Nova Friburgo.

A cidade tem também os seus orgulhos: lá nasceram algumas pessoas importantes que o Paraná conheceu, como o ex-governador José Richa; o craque de futebol Nilo, que nos bons tempos jogou pelo Grêmio de Maringá; o engenheiro Teixeira Soares, que dirigiu a construção da ferrovia Curitiba-Paranaguá. Também deixou lá o umbigo o pintor Pereira da Silva. Lá morou por vários anos o escritor Euclides da Cunha. E houve até um nobre ilustre, o Barão de Villa Flor, que em seu solene casarão, até hoje existente na praça principal, hospedou por duas ou três vezes o imperador Pedro 2º.

Quando José Richa era governador, foi convidado a visitar a terrinha onde nasceu. Aceitou e foi. Fizeram uma festa enorme para recebê-lo. Seu pai, um libanês muito simpático, começou a vida no Brasil em São Fidélis, onde tinha uma bicicletaria. Vendia e alugava bicicletas. Numa das vezes em que voltei lá, veio conversar comigo um senhor de cabelos bancos que levantou a calça e mostrou uma cicatriz que carregava como um troféu na perna direita. Era a marca de um tombo que ele levara de uma bicicleta alugada na loja do velho Richa.

Se algum dia você passar lá por perto, dê uma entradinha na cidade. Vai comer uma deliciosa lagosta ou robalo do rio Paraíba; saborear na sobremesa uma fatia de banacaxi da fábrica de doces Passarinho, com um bom pedaço do melhor requeijão do mundo; ou, se preferir, poderá experimentar o irresistível sorvete do Luizinho Maia. Vai também ter o privilégio de conhecer a belíssima igreja de São Fidélis de Sigmaringa e, se ficar para dormir, terá a chance de ouvir uma serenata no capricho. Foi nesse cenário que passou a infância e parte da juventude um menino até hoje lá conhecido como Gutinho.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 21-4-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (“O Demônio e a Srta. Prym”, de Paulo Coelho)


Quando menos esperamos, a vida coloca diante de nós um desafio para testar nossa coragem e nossa vontade de mudança; nesse momento, não adianta fingir que nada acontece ou dar a desculpa de que ainda não estamos prontos.” ― Paulo Coelho

O demônio e a srta. Prym é o último livro da trilogia que Paulo Coelho chamou de “E no sétimo dia…” ― antes dele vieram “Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei” e “Veronika decide morrer”. Essas três histórias acompanham uma semana na vida de pessoas comuns que de repente se veem diante de um enorme desafio. É justamente isso que os habitantes do pequeno vilarejo de Viscos vão enfrentar.

SINOPSE

Viscos é uma pequena aldeia de 281 habitantes, um lugar separado do mundo onde todos olham a vida com alegria, tranquilidade e compaixão. Todos os que moram ali sabem que estão insistindo em viver em um mundo à parte; não lhes é fácil aceitar que fazem parte da última geração de agricultores e pastores que há séculos povoavam aquelas montanhas.

O Demônio e a Srta. Prym começa com a velha Berta, a mais antiga moradora do lugarejo, repetindo sua rotina de quinze anos - sentada diante de sua porta, observando o dia passar. No entanto, aquele não seria um dia igual a tantos outros. Berta pressente isso quando vê o estrangeiro subir a ladeira íngreme que levava ao único hotel da aldeia. Usava roupas gastas, tinha cabelos compridos e barba por fazer - um homem comum, alguns diriam, mas Berta vê que ele não está sozinho. O demônio o acompanha.

Foi longa a viagem do homem até chegar a Viscos. Esquecida dos mapas, um lugar onde o tempo parece não passar, o estrangeiro pressente que Viscos é o lugar ideal para obter a resposta que procura o homem é bom ou mau em sua essência? Ali, em uma cidade de homens e mulheres honestos, cumpridores de seus deveres, pessoas que caminham de cabeça erguida e são respeitadas em toda a região. Seria possível levar essa comunidade exemplar a infringir alguns dos mandamentos essenciais da lei de Deus?

O estrangeiro usará todos os seus trunfos para provar que sim, mas para isso, precisa de aliados. Chantal Prym, uma jovem órfã que passa os dias entre sonhos e o trabalho rotineiro no bar do hotel, é a escolhida. A proposta do estrangeiro é capaz de transformar para sempre sua vida, no entanto, para isso, ela terá de romper com alguns valores em que acredita. A srta. Prym está dividida entre o anjo e o demônio que, como todo mundo, traz dentro de si. A quem caberá a palavra final, decidindo o destino da Srta. Prym e de toda a comunidade de Viscos?

A velha Berta sabe que algo precisa ser feito não há muito tempo. Se o Mal vence, nem que seja numa pequena e esquecida cidade de três ruas, uma praça e uma igreja, ele pode contagiar o vale, a região, o país, o continente, os mares, o mundo inteiro.

Numa trama instigante e envolvente, Paulo Coelho conduz o leitor por uma vertiginosa batalha entre a luz e as trevas travada na alma dos homens.

RESENHA

Em O Demônio e a Srta. Prym, Paulo Coelho nos traz uma discussão de valores, de ética daquelas que podem levar a longas e acaloradas discussões. Para a nossa jovem protagonista, Chantal Prym, ser uma das últimas jovens do vilarejo de Viscos é algo realmente desanimador, nada para fazer e nenhum futuro promissor a espera naquele lugar. Todos os seus sonhos giram em torno de sair dali e a única forma que ela vê na sua situação de órfã, trabalhando no bar do hotel da cidade, é que alguém a leve embora dali.

Quando o estrangeiro chega à cidade, ela vê mais uma chance e arruma uma maneira de se aproximar, porém o encontro não foi bem como ela esperava e o homem faz uma proposta muito tentadora à Chantal. Ela pode mudar de vida e finalmente realizar o seu sonho de sair dali, mas o custo para outras pessoas vai ser muito alto. É complicado e tentador.

Esse dilema permeia toda a história da obra onde o estrangeiro tenta provar que não existe bem em mais nenhum lugar do mundo, que todos são egoístas e em algum momento abrem mão das suas convicções. A vida de Chantal, que tem uma semana para decidir o que responder para a tal proposta, se torna uma verdadeira agonia. Sonhos, ressentimentos, pesadelos, recaídas. Muitas coisas se misturam antes que ela possa tomar a decisão e sair desse beco sem saída.

Então, a Srta. Prym, se vê apertada e, mais uma vez o tema levantado por Paulo Coelho, é real e muito digno de reflexão. As nossas questões éticas e o que consideramos certo e errado cabem muito bem para serem pensados durante e após a leitura dessa obra. Vemos, ainda mais nesse momento de pandemia, como realmente nossos pesos e medidas são bem variados. Somos flexíveis e menos empáticos quando a situação nos favorece e encontramos muitas formas de justificar o errado que fazemos quando é para o nosso “bem”.

Vemos como no mundo “lá fora” falta empatia e é muito bom aproveitar esse momento que nos é tão exigido para ficar em casa para olhar para dentro de nós mesmos e fortalecermos a bondade que existe aqui. Muitas vezes ela fica adormecida quando vemos alguma injustiça ou porque podemos achar que não vale a pena se envolver ou que outra pessoa vai fazer o que é certo e eu vou garantir o que é meu.

Está mais do que na hora de entendermos o quanto somos pequenos e quanto, mesmo assim, nossas atitudes podem fazer toda a diferença, para o bem ou para o mal, na vida das outras pessoas. Já parou para pensar que até quando você faz coisas ruins para si mesmo você está machucando e preocupando quem te ama? Mesmo em casa e mesmo distantes, somos parte de um todo e estamos todos ligados de uma forma ou de outra.

Fontes:

– Tayla Quadros, em Resenha sobre o livro O Demônio e a Srta. Prym. Disponível em Prateleira Sem Fim
Amazon

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 3

Montagem com trovas nas imagens obtidas no facebook da trovadora.
  
 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 52

NOSSA QUERIDA LYGIA !

Sempre que falo do Érico lembro da Lygia, sempre que falo da Lygia lembro do Érico. Quando se fala dos queridos a gente costuma juntá-los nas ideias, nos pensares, na lembrança. Caminheiros das mesmas trilhas. Vinhos da  mesma pipa.

E recordo do volume "40 ANOS DE VIDA LITERÁRIA" do ex-farmacêutico na sua Cruz Alta dos anos '20, século passado. O livro tem textos especiais de vários - Walmir Ayala, Antônio Cândido, Lygia Fagundes Teles, Guilhermino Cesar, Tristão de Ataíde, Moisés Velinho...  Enfoques diversos no homem e na obra.

E a gente se envolve, se agarra, a gente se gruda nestas criaturas inolvidáveis, tanto e tanto, que quer tê-las ao alcance perenemente.

Por que será que os Mestres costumam ter um olhar sereno, de bonomia na intimidade, que captura os olhares cautos e os incautos, tal o inefável de bondade e candura constantes que transmitem?

E o espírito de generosidade, de envolvência, de leveza do ser? Assim foi, assim será para todo o sempre nossa querida Lygia Fagundes Teles.

As coisas da Razão, as coisas do coração, essas coisas...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Altino Afonso Costa (Fazenda Santa Rosa)


Terra dos meus sonhos que me viu nascer, com minha própria mãe fazendo o parto; sentiste meus pés descalços nas incansáveis caminhadas de moleque, caçador de passarinhos, com estilingue no pescoço e bornal repleto de bolas de argila secadas ao sol.

As andanças à toa, cavalgando a mula Roseira, sem arreios, com o espírito povoado de temores de almas de outro mundo, quando eu atravessava na frente do cemitério...

Como eras o meu mundo de fantasia, quando à noite ia dormir na casa grande de madeira, coberta de folhas de zinco, cheias de buracos e que nos dias de chuva enchia as salas e os quartos de goteiras compassadas.

E o barulho monótono da chuva no telhado e o terror de ouvir os trovões que sacudiam o chão e os raios que riscavam o céu, em tons ameaçadores.

O colchão de palha de milho, desfiada, que fazia um barulho inesquecível quando movia o nosso corpo para acomodá-lo no sono que custava a chegar.

E o cheiro de urina de moleque mijão...

E as pulgas que incomodavam à noite, mesmo com os galhos de erva santa maria, que minha mãe jogava sob a cama rústica.

A lamparina a querosene, o fogão caipira de lenha; a linguiça portuguesa defumada e exalando um cheiro de carne de porco, temperada com vinho tinto.

E a carne de porco cozida, mergulhada em lata de gordura.

E a broa sobre a mesa, e o aroma de vinho tinto que vinha da adega... e o caldo verde transbordando da tigela...

Minha velha Fazenda Santa Rosa, quanta saudade da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos.

E os assados na noite de Natal e as fogueiras de S. João, S. Pedro e Santo Antônio, com o estouro dos rojões, busca-pés, e o amendoim, batata doce e mandioca assados na brasa tardia da fogueira...

Quanta lembrança e saudades me trazes, terra da minha infância feliz…

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro enviado por Dinair Leite.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 20


BRAVURA


Para bem exercer a cidadania é necessário bravura. E bravura nada tem a ver com agressividade ou violência. Eventualmente, por exemplo, numa guerra, pode-se esperar do soldado a bravura ou coragem física, mas esta nunca deve estar dissociada da ética. Como diz o Tao, o grande guerreiro não é violento. Bravura significa também coragem e ousadia. Na busca de um ideal tudo isto é necessário.

A bravura, bem ou mal,
pode assim ser resumida:
- Colocar-se um ideal
acima da própria vida!
Luiz Otávio
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

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Sempre acaba a tirania
- entre firmes desagravos -
na força da rebeldia
e na ousadia dos bravos!
Hermoclydes Siqueira Franco
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ

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Enfrente a luta e persista
se acaso a vitória tarde...
Não há troféus de conquista
nas estantes do covarde!
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

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Bravura é viver sorrindo,
embora seja evidente
que a vida é dor insistindo
em ser mais forte que a gente.
Thalma Tavares
São Simão/SP

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Num mundo de tanta usura,
tanta desonestidade,
precisamos de bravura
pra combatera maldade.
Gonzaga da Silva
Natal/RN

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CIÊNCIA e ÉTICA

A ciência é importante, sem dúvida, mas o cidadão deve estar atento ao que ela produz. Nem sempre os feitos da ciência são a verdade pela verdade. Muitos cientistas estão comprometidos com grupos econômicos, que visam unicamente ao lucro e à acumulação de capital. Alguns cientistas, dignos desta expressão, têm denunciado fatos que o cidadão deve tomar em consideração. Vejamos como se expressa um deles:

Tal como o ser humano, e exatamente como fruto do ser humano, a ciência nada tem de neutra. O mito da ciência neutra é muito conveniente àqueles que a manipulam e que, com ela, manipulam a outros (Souza, 2005 p.l8).

Um dos aspectos a ser considerado, não só pela própria ciência, mas sobretudo pelos cidadãos, é a questão da clonagem.

A ciência, sem suspeita,
será no mundo aplaudida
se a clonagem só for feita
em benefício da vida.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Ciência de mais beleza,
de um momento eterno e lindo,
é a da própria natureza
mostrando uma flor se abrindo.
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

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Criador ou criatura,
eis o mistério, afinal:
será um sonho, ou loucura,
fazer um clone imortal?...
Gonzaga da Silva
Natal/RN


Infelizmente, como todo fazer humano, a ciência também está sujeita ao oportunismo e à maledicência de inescrupulosos e antiéticos. Também na ciência nos deparamos com a fraude. A ciência sem ética deve ser rejeitada.

A ciência que eu rejeito
é a que tem a insensatez
de explicar o que foi feito
e afirmar que ninguém fez!
Pedro Ornellas
São Paulo

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A ciência me conduz
a pensar desta maneira:
do excesso, às vezes, de luz
pode nascer a cegueira...
Milton Nunes Loureiro
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ

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DESIGUALDADE e INJUSTIÇA

Desigualdade e injustiça estão definitivamente entrelaçadas. Causa espanto ver tanta desigualdade no mundo. O cidadão minimamente consciente sente-se injuriado ao assistir impotente a este desprezo pela vida do outro. Por trás da desigualdade crescente no mundo está a ambição, o egoísmo e a indiferença pelo outro,

Aumentam minhas descrenças,
nestes tempos humilhantes,
ao ver tantas diferenças
entre tantos semelhantes...
Heitor Práguer Fróes
Cachoeira/BA, 1900 – 1987, Salvador/BA

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A desigualdade é fruto
do egoísmo e da cobiça!
Quem mal reparte o produto
comete grande injustiça.
Djalma Alves da Mota
Caicó/RN

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A indiferença é que explica
esta injusta distorção:
caviar em mesa rica
e na do pobre nem pão!
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG

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Eu suponho que a riqueza
que sobra dos poucos nobres,
seja o que falta na mesa
dos muitos que vivem pobres.
Clarindo Batista de Araújo
Jardim do Piranhas/RN, 1929 – 2010, Natal/RN

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Dói-me saber que a riqueza,
que é por todos construída,
por ambição e torpeza
não seja distribuída!
Gonzaga da Silva
Natal/RN

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FAMÍLIA

A família é o esteio da sociedade. É o núcleo a partir do qual se pode antever que sociedade teremos. Uma família bem estruturada vai gerar pessoas e cidadãos mais conscientes, capazes de exercer bem o seu dever, e também seu direito, de cidadania.

Uma sociedade forte
é que constrói um país
e nela, como suporte,
tem na família: a raiz.
Roberto Tchepelentyky
São Paulo/SP

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Na família, pais e filhos
são vagões de um mesmo trem,
Quando um deles sai dos trilhos
arrasta os outros também.
Sérgio Bernardo
Rio de Janeiro/RJ

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Para que o lar seja um templo,
pleno de amor e de paz,
faça o caminho do exemplo,
que é sempre o mais eficaz.
Neoly de Oliveira Vargas
Araricá/RS, 1926 – 2016, Sapucaia do Sul/RS

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Numa estrada colorida,
ou na trilha empoeirada,
se a família segue unida,
é suave a caminhada.
Istela Marina Gotelipe Lima
Bandeirantes/PR

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Procuro sempre crescer
mesmo enfrentando empecilhos,
mostrando em meu proceder,
exemplos para os meus filhos...
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

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Família exemplar, unida,
que busca honrar seus valores,
enaltece a própria vida
e a vida entoa louvores...
Joamir Medeiros
Natal/RN

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Seja um palácio ou tapera,
piso de pedra ou de argila,
no lar onde o amor impera
até cascalho cintila.
Francisco Luzia Netto
São Paulo/SP, 1922 – 1998, Amparo/SP


Desgraçadamente, a sociedade, ela própria desestruturada como se encontra, contribui para a desestruturação das famílias.

Quando a família é rompida
por atos cegos, tiranos,
deixa destroços na vida,
restos de seres humanos...
Manoel Cavalcante de S. Castro
Pau dos Ferros/RN
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Triste fato que deprime
num mundo fora dos trilhos:
pai na vereda do crime
em prol do pão de seus filhos!...
Antônio Juraci Siqueira
Belém/PA

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Eu vi um pai sendo preso
por furtar um simples pão:
- é mais um pobre indefeso
no caos da corrupção.
Gonzaga da Silva
Natal/RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Hans Christian Andersen (O Sino)


Isto se passou em uma grande cidade de ruas estreitas.

À hora do lusco-fusco, em que as nuvens brilhavam como ouro entre as chaminés, algumas pessoas ouviam um som singular, como o de um sino de igreja. Ora um, ora outro o  ouvia, mas sempre durava apenas um momento, porque era tanto o estrépito dos carros e o barulho das vozes , que os ruídos mais leves eram abafados. E o povo dizia:

– O sino da tarde está tocando. O sol vai entrar.

Os que andavam pelos arredores da cidade, onde as casas eram mais raras e tinham jardins e quintaizinhos de permeio, podiam apreciar melhor a beleza e a amplidão do céu à hora do crepúsculo e ouvir o sino muito mais distintamente. O som parecia vir de uma igreja escondida nas profundezas da floresta, e o povo olhava naquela direção, sentindo que a hora era solene.

Passou-se algum tempo, e as pessoas diziam muitas vezes:

- Haverá alguma igreja no meio do mato? O sino tem um som tão suave e tão lindo... E se fossemos escutá-lo de mais perto?

E foram.

Os ricos iam de carro, os pobre a pé, mas parecia-lhes que o caminho não acabava nunca. E quando alcançaram um grupo de salgueiros que ficavam na orla da mata, sentaram-se para descansar e, olhando para aqueles longos galhos pendentes, pensavam que já  estavam no coração da floresta.

Um confeiteiro da cidade foi também, e armou ali uma tenda, veio um rival e armou também a sua, pendurando no alto uma sineta, previamente alcatroada, por causa da chuva - mas não tinha badalo. E quando toda aquela gente voltou para casa dizia que tudo era muito romântico e que não era apenas um piquenique, era uma coisa muito melhor do que tomar chá no campo, simplesmente. Três pessoas declararam que tinham explorado a floresta até o outro lado, e que sempre ouviam o som peculiar daquele sino, mas que agora parecia vir da cidade. Um deles escreveu um poema, dizia que o sino parecia a voz de uma mãe falando a um filho bem-amado, e que não havia no mundo melodia mais suave do que o som daquele sino.

Até o imperador começou a interessar-se por aquele caso, e declarou que daria o título de "Sineiro Universal" a quem descobrisse de onde procedia o estranho som, ainda que não houvesse sino algum no caso.

Muita gente correu para a floresta, na esperança de obter a nomeação, mas só um apresentou uma espécie de explicação do mistério. Nenhum deles tinha ido até o interior do mato - nem ele próprio, ainda assim, podia dizer que o som provinha de uma grande coruja que vivia no oco de uma árvore. Era  uma coruja sábia, que batia continuamente a cabeça na árvore. Contudo se o som resultante vinha da cabeça da ave ou do tronco oco, era coisa que ele não pudera distinguir. Foi, então, nomeado "Sineiro Universal", e todos os anos escrevia um tratado sobre a coruja. Mas ninguém se achou mais esclarecido com isso.

Chegara o dia da confirmação. O pastor falou com muita eloquência e os que se confirmaram ficaram muito impressionados - porque era um dia solene para todos. Era como se aquelas crianças se tivessem transformado de repente em gente grande, como se  dissesse que seus espíritos infantis assumiam de um instante para outro os atributos de pessoas de juízo maduro. Transformavam-se assim em seres responsáveis.

Era um dia de sol ardente. Os jovens que haviam confirmado, foram dar um passeio fora da cidade, e ouviram o som do grande sino desconhecido que vinha da floresta. Tinha um cunho de solenidade excepcional. Sentiram-se as crianças tomadas do desejo de ouvi-lo de mais perto, e assim resolveram ir lá – todas, menos três.

Uma destas tinha de ir para casa para provar o vestido de baile, porque o único motivo que a levara à confirmação fora justamente esse: a festa e o traje de baile. A não ser por isso, não teria tomado parte na cerimônia desta vez.

Outro - um menino pobre - tinha pedido emprestados o casaco e os sapatos do filho do senhorio, para a confirmação, e tinha de devolvê-los a uma hora determinada.

O terceiro declarou que nunca ia a lugares estranhos sem os pais, que sempre fora menino obediente, e agora, que estava confirmado, assim queria permanecer, e que ninguém devia rir dele por isso - o que não impediu, afinal, que todos os outros se divertissem à sua custa.

Houve três, portanto, que desistiram de ir, mas os outros empreenderam a jornada fatigante. O sol brilhava no firmamento, os passarinhos cantavam, e as crianças recém-confirmadas também cantavam, e iam de mãos dadas, porque nenhuma delas tinha ainda emprego importante, e todas eram de igual categoria aos olhos de Deus.

Aconteceu, porém, que dois dos meninos menores cansaram e voltaram para cidade. Duas meninas sentaram-se para tecer grinaldas e não continuaram a viagem. E quando os outros chegaram aos salgueiros, onde ficava a tenda do confeiteiro, disseram:

- Chegamos à floresta! Não há aqui sino nenhum, era apenas ilusão daquela gente!

Mas naquele mesmo instante o sino tangeu no mais profundo da floresta, e o som era tão lindo, tão solene, que cinco ou seis crianças resolveram penetrar mais adentro. As árvores eram tão copadas e tão juntas que se tornava difícil andar entre elas; os narciso e as anêmonas cresciam a grande altura, e as ipomeias floridas e as framboesas pendiam em longos festões, unindo entre si as árvores, em cujos galhos brincavam os raios do sol e cantavam os rouxinóis. Era muito lindo, tudo aquilo, sim - mas não era lugar para  as meninas, que iriam rasgar os vestidos a cada passo. Grandes blocos de pedra cobertos de musgo de variadas cores, surgiram por toda a parte; e o fresco arroio murmurava, parecendo cantarolar um gorjeio.

- Será isto o sino, afinal? - disse uma das crianças, deitando-se para escutar. - Creio que vale a pena estudar isto!

E ali ficou, enquanto os outros continuavam a andar .

Chegaram a uma cabana, feita de galhos e de casca de árvores. Uma grande macieira silvestre estendia os galhos por cima do chalézinho, como se quisesse chover bênçãos sobre o teto, coberto por uma roseira em flor. Os galhos floridos enroscavam-se no beiral, onde estava amarrada uma sineta.

- Seria aquele o sino que as pessoas ouviam? Sim! Todos concordaram, exceto um, que achou a sineta muito pequena e muito frágil para ser ouvida a tão grande distância. E disse ainda que o som era muito diferente daquele outro, que tocava, que tocava tão profundamente o coração humano.

Era um principezinho o que falara, e os outros disseram que aquela espécie de gente sempre quer ser mais entendida do que as outras pessoas.

Deixaram-no, pois, prosseguir sozinho, e quanto mais se internava na floresta, tanto mais o impressionava aquela solidão. Mas ainda ouvia a sineta que tanto tinha agradado aos outros. De vez em quando o vento soprava do lado da tenda do confeiteiro, ouvia, também os cantos dos que ficara lá tomando chá. Mas o som profundo do sino elevava-se, mais alto, parecia que havia um órgão a acompanhá-lo. E aqueles sons vinham do lado esquerdo, quer dizer, do lado em que fica o coração.

Ouviu-se um rumor nos arbustos e um menino parou na frente do filho de rei, um menino de tamanquinhos e com um  casaco tão curto, que deixava aparecer todo o punho da camisa.   Ambos se conheciam: o que trajava modestamente era aquele que não pode reunir-se aos outros, porque tinha  de voltar para restituir o casaco e os sapatos que lhe emprestara o filho do dono da casa. Feito isto, voltara, com seus tamanquinhos e a roupa surrada, porque o sino estava tocando com um som tão profundo e com tamanho poder que ele não pode resistir.

- Pois então, - disse o filho de rei – podemos agora ir juntos.

Mas o menino pobre estava muito envergonhado; olhou para os pés, puxou as mangas da jaqueta e disse que talvez não pudesse caminhar mais longe, além disso achava que o sino devia ser procurado para o lado direito, porque naquela direção ficava a parte mais bela da floresta.

- Então provavelmente não tornaremos a nos encontrar. - disse o filho de rei, cumprimentando o menino pobre.

Este entranhou-se nas profundezas do mato, onde os espinhos lhe rasgavam a roupinha pobre, arranhando-lhe o rosto, as mãos e os pés, até fazer sangue. O filho de rei também não se livrou de algum arranhão, mas o sol brilhava no caminho, e vamos segui-lo, porque é um rapaz excelente e resoluto.

- Eu tenho de achar, e hei de achar o sino! - disse ele. - Nem que precise ir ao fim do mundo!

Uns macacos muito feios, que estavam encarrapitados nas árvores, fizeram-lhe caretas, dizendo uns para os outros:

- Nós não vamos dar-lhe pancadas? Não vamos dar nele? É o filho de rei!

Mas ele continuou a andar, destemeroso, cada vez mais para o interior da floresta, onde vicejavam as mais estranhas flores. Ali havia lírios alvos, com estames vermelhos como sangue; tulipas da cor do céu, que brilhavam , quando a brisa as roçava; e macieiras, cujas frutas pareciam grandes e brilhantes bolhas de sabão. Imagine como não cintilavam aquelas árvores ao sol! Ao redor de lindos prados verdes, onde os veados brincavam, erguiam-se carvalhos e faias magníficos, e nas fendas da casca das mais antigas brotavam trepadeiras e aninhavam-se musgo. Haviam ainda lagos serenos, onde nadavam cisnes brancos, que batiam as asas no ar. O filho de rei parou muitas vezes, ficando quieto, a escutar. Julgava que o som do sino vinha daqueles lagos, mas verificou então que procedia de muito mais longe, do fundo da mata.

Já o sol declinava. O ar era agora flamejante e a floresta profundamente silenciosa, ele caiu de joelhos, fez a sua oração da noite e disse:

- Nunca acharei o que procuro! A noite, a noite escura se aproxima. Mas... quem sabe se ainda poderei ver por um instante o sol vermelho antes que se suma no horizonte! Vou subir aquele rochedo, que é tão alto como as árvores mais altas.

Segurou-se, conforme pode, às raízes e trepadeiras, e foi escalando as pedras escorregadias; viu ali cobras-d'água enroladinhas e sapos do mato que pareciam coaxar para ele. Mas alcançou o pico antes  que o sol mergulhasse no horizonte.

E que vista magnífica daquela altura! O mar, o mar imenso, sem limites, que atirava suas ondas à praia, estendia-se diante dele. E além, no ponto onde mar e céu se encontram, o sol, como um grande altar resplandecente, fundia tudo quanto o cercava em cores maravilhosas. A floresta cantava, o oceano cantava, e o coração do menino juntou também o seu cântico aqueles hinos de louvor.

Toda a natureza era como um vasto templo sagrado: pilares eram as árvores, e as nuvens flutuantes, o musgo e as flores, magníficas tapeçarias de veludo, abóbada, o céu sem limites. Agora as cores brilhantes iam desmaiando, mas milhões de estrelas se acendiam - milhões de lâmpadas de diamante, iluminado a cúpula gloriosa.

E o filho do rei estendeu os braços para o céu, e para o mar, e para a floresta.

Justamente nesse instante, do caminho que ficava à direita, surgia o rapaz pobre, o das mangas curtas e dos tamanquinhos. Viera por outro caminho, mas chegara ao mesmo tempo que o filho de rei.

Correram então um para o outro, e ali ficaram, de mãos dadas, no vasto templo da natureza e da poesia. E acima deles, e por toda a parte, soava o sino invisível e solene. Espíritos sagrados flutuavam ao redor deles, erguendo suas vozes em um cântico de aleluia!

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 06

 

Machado de Assis (Uma Visita de Alcibíades)

Carta do Desembargador X... ao chefe de polícia da corte

Corte, 20 de setembro de 1875.

Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entende-los-á daqui a pouco.

Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária.

Foi o que se deu hoje. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loquela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo:

— Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno?

Sou espírita desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são puras niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha própria habilidade. Determine portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.

E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembleias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus (ignorantes). V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...

— Que me queres? — perguntou ele.

Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a confiança.

Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, de um incêndio.

Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da ideia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem “de verdade”, como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris nem lord Byron — em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro etc. Em seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder e, assim, como estes, a golpes de discurso.

Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:

— Bravo, atenienses!

Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho (malandro), note V. Ex.ª, tão gamenho como outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de certas atitudes esculturais.

— Vá, continua — dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.

Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.

Se pudesses fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.

— Um baile? Que coisa é um baile?

Expliquei-lhe.

— Ah! Ver dançar a pírrica*!

— Não — emendei eu —, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, como os homens de Plutarco e os numes de Hesíodo.

— Com os numes?

Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,

Evohé! padre Bassaréu!
Evohé! etc. 
 
honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.

— Morto Zeus?

— Morto.

— Dionísios, Afrodite?...

— Tudo morto.

O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: — Ah! se lá estou com os meus atenienses! Zeus, Dionísios, Afrodite... — murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me — um devoto do grego! —, esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente declarou-me que iria ao baile comigo.

— Ao baile? — repeti atônito.

— Ao baile, vamos ao baile.

Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele traje; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século.

— Quero ir ao baile. — repetiu ele. — Já agora não vou sem comparar as danças.

— Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível.

— Por quê?

— Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa roupa...

— Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me emprestes?

Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.

— Pois bem — tornou ele levantando-se —, irei à maneira do século. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.

Levantei-me também, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado. Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano. Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.

— Enfim!

Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros. — Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi que passasse...

— Canudos pretos! — exclamou ele.

Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex.ª, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...

— Feia, mas séria — disse-lhe. — Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.

E vendo que ele abanava a cabeça:

— Meu caro — disse-lhe —, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodos (poetas, vates) recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...

— Desgraçado! — bradou ele atirando-se a mim.

Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue (pálido de susto). A causa era uma ilusão. Como se passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata, e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-me. Atei-a enfim, depois vesti o colete.

— Por Afrodite! — exclamou ele. — És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite, uma noite com três estrelas apenas — continuou apontando para os botões do peito. — O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...

Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de apressar ainda mais a saída.

— Estás completo? — perguntou-me ele.

— Não! Falta o chapéu.

— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! — tornou Alcibíades com voz suplicante. — Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que falta, dizes tu?

— O chapéu.

— Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pus-o na cabeça.

Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito, revelando-me de não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.
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* Pirricas = nas antigas Atenas e Esparta, dança guerreira de origem dórica realizada com armas na mão, e na qual os homens se exercitavam desde cedo.

Fonte:
Publicado no Jornal das Famílias, outubro de 1882.  In Machado de Assis. Papéis Avulsos. 1882.

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 6 =

CAMPO


CAMPO da minha saudade:
vai crescendo, vai subindo,
de tanto jazer sem nada.

Desvelo mudo e contínuo
que vai revestido os montes
e estendendo outros caminhos.

Mergulhada em suas frondes,
a tristeza é uma esperança
bebendo a vazia sombra.

Águas que vão caminhando
dispersam nos mares fundos
mel de beijo e sal de pranto.

Levam tudo, levam tudo
agasalhado em seus braços

Campo imenso — com o meu vulto...

E ao longe cantam os pássaros.
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DISTÂNCIA

QUANDO o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve seco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria…
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GUITARRA

PUNHAL de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
— no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.
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RENÚNCIA

RAMA das minhas árvores mais altas,
deixa ir a flor! que o tempo, ao desprende-la,
roda-a no molde de noites e de albas
onde gira e suspira cada estrela.

Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espaço,
ritmo, desenho, música absoluta,
dando e recuperando o corpo esparso
que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta...

Falo-te, por saber o que é perder-se.
Conheço o coração da primavera,
e o dom secreto do seu sangue verde,
que num breve perfume existe e espera.

Verti para infinitos desamparos
tudo que tive no meu pensamento.
Por onde anda? No abismo. Dada ao vento...
Era a flor dos instantes mais amargos.
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RIMANCE*

ONDE é que dói na minha vida,
para que eu me sinta tão mal?
quem foi que me deixou ferida
de ferimento tão mortal?

Eu parei diante da paisagem:
e levava uma flor na mão.
Eu parei diante da paisagem
procurando um nome de imagem
para dar à minha canção.

Nunca existiu sonho tão puro
como o da minha timidez.
Nunca existiu sonho tão puro,
nem também destino tão duro
como o que para mim se fez.

Estou caída num vale aberto,
entre serras que não têm fim.
Estou caída num vale aberto:
nunca ninguém passará perto,
nem terá notícias de mim.

Eu sinto que não tarda a morte,
e só há por mim esta flor:
eu sinto que não tarda a morte
e não sei com é que suporte
tanta solidão sem pavor.

E sofro mais ouvindo um rio
que ao longe canta pelo chão,
que deve ser límpido e frio,
mas sem dó nem recordação,
como a voz cujo murmúrio
morrerá com o meu coração.
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* Rimance = pequeno canto épico. xácara, seguidilha
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 SOM

ALMA divina,
por onde me andas?
Noite sozinha,
lágrimas, tantas!

Que sopro imenso,
alma divina,
em esquecimento
desmancha a vida!

Deixa-me ainda
pensar que voltas,
alma divina,
coisa remota!

Tudo era tudo
quando eras minha,
e eu era tua,
alma divina!
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VINHO


A TAÇA foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.

Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci,
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.

Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste, à minha procura.

A taça foi brilhante e rara:
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebo
se originou minha loucura.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.