quinta-feira, 28 de abril de 2022

Hans Christian Andersen (O Sino)


Isto se passou em uma grande cidade de ruas estreitas.

À hora do lusco-fusco, em que as nuvens brilhavam como ouro entre as chaminés, algumas pessoas ouviam um som singular, como o de um sino de igreja. Ora um, ora outro o  ouvia, mas sempre durava apenas um momento, porque era tanto o estrépito dos carros e o barulho das vozes , que os ruídos mais leves eram abafados. E o povo dizia:

– O sino da tarde está tocando. O sol vai entrar.

Os que andavam pelos arredores da cidade, onde as casas eram mais raras e tinham jardins e quintaizinhos de permeio, podiam apreciar melhor a beleza e a amplidão do céu à hora do crepúsculo e ouvir o sino muito mais distintamente. O som parecia vir de uma igreja escondida nas profundezas da floresta, e o povo olhava naquela direção, sentindo que a hora era solene.

Passou-se algum tempo, e as pessoas diziam muitas vezes:

- Haverá alguma igreja no meio do mato? O sino tem um som tão suave e tão lindo... E se fossemos escutá-lo de mais perto?

E foram.

Os ricos iam de carro, os pobre a pé, mas parecia-lhes que o caminho não acabava nunca. E quando alcançaram um grupo de salgueiros que ficavam na orla da mata, sentaram-se para descansar e, olhando para aqueles longos galhos pendentes, pensavam que já  estavam no coração da floresta.

Um confeiteiro da cidade foi também, e armou ali uma tenda, veio um rival e armou também a sua, pendurando no alto uma sineta, previamente alcatroada, por causa da chuva - mas não tinha badalo. E quando toda aquela gente voltou para casa dizia que tudo era muito romântico e que não era apenas um piquenique, era uma coisa muito melhor do que tomar chá no campo, simplesmente. Três pessoas declararam que tinham explorado a floresta até o outro lado, e que sempre ouviam o som peculiar daquele sino, mas que agora parecia vir da cidade. Um deles escreveu um poema, dizia que o sino parecia a voz de uma mãe falando a um filho bem-amado, e que não havia no mundo melodia mais suave do que o som daquele sino.

Até o imperador começou a interessar-se por aquele caso, e declarou que daria o título de "Sineiro Universal" a quem descobrisse de onde procedia o estranho som, ainda que não houvesse sino algum no caso.

Muita gente correu para a floresta, na esperança de obter a nomeação, mas só um apresentou uma espécie de explicação do mistério. Nenhum deles tinha ido até o interior do mato - nem ele próprio, ainda assim, podia dizer que o som provinha de uma grande coruja que vivia no oco de uma árvore. Era  uma coruja sábia, que batia continuamente a cabeça na árvore. Contudo se o som resultante vinha da cabeça da ave ou do tronco oco, era coisa que ele não pudera distinguir. Foi, então, nomeado "Sineiro Universal", e todos os anos escrevia um tratado sobre a coruja. Mas ninguém se achou mais esclarecido com isso.

Chegara o dia da confirmação. O pastor falou com muita eloquência e os que se confirmaram ficaram muito impressionados - porque era um dia solene para todos. Era como se aquelas crianças se tivessem transformado de repente em gente grande, como se  dissesse que seus espíritos infantis assumiam de um instante para outro os atributos de pessoas de juízo maduro. Transformavam-se assim em seres responsáveis.

Era um dia de sol ardente. Os jovens que haviam confirmado, foram dar um passeio fora da cidade, e ouviram o som do grande sino desconhecido que vinha da floresta. Tinha um cunho de solenidade excepcional. Sentiram-se as crianças tomadas do desejo de ouvi-lo de mais perto, e assim resolveram ir lá – todas, menos três.

Uma destas tinha de ir para casa para provar o vestido de baile, porque o único motivo que a levara à confirmação fora justamente esse: a festa e o traje de baile. A não ser por isso, não teria tomado parte na cerimônia desta vez.

Outro - um menino pobre - tinha pedido emprestados o casaco e os sapatos do filho do senhorio, para a confirmação, e tinha de devolvê-los a uma hora determinada.

O terceiro declarou que nunca ia a lugares estranhos sem os pais, que sempre fora menino obediente, e agora, que estava confirmado, assim queria permanecer, e que ninguém devia rir dele por isso - o que não impediu, afinal, que todos os outros se divertissem à sua custa.

Houve três, portanto, que desistiram de ir, mas os outros empreenderam a jornada fatigante. O sol brilhava no firmamento, os passarinhos cantavam, e as crianças recém-confirmadas também cantavam, e iam de mãos dadas, porque nenhuma delas tinha ainda emprego importante, e todas eram de igual categoria aos olhos de Deus.

Aconteceu, porém, que dois dos meninos menores cansaram e voltaram para cidade. Duas meninas sentaram-se para tecer grinaldas e não continuaram a viagem. E quando os outros chegaram aos salgueiros, onde ficava a tenda do confeiteiro, disseram:

- Chegamos à floresta! Não há aqui sino nenhum, era apenas ilusão daquela gente!

Mas naquele mesmo instante o sino tangeu no mais profundo da floresta, e o som era tão lindo, tão solene, que cinco ou seis crianças resolveram penetrar mais adentro. As árvores eram tão copadas e tão juntas que se tornava difícil andar entre elas; os narciso e as anêmonas cresciam a grande altura, e as ipomeias floridas e as framboesas pendiam em longos festões, unindo entre si as árvores, em cujos galhos brincavam os raios do sol e cantavam os rouxinóis. Era muito lindo, tudo aquilo, sim - mas não era lugar para  as meninas, que iriam rasgar os vestidos a cada passo. Grandes blocos de pedra cobertos de musgo de variadas cores, surgiram por toda a parte; e o fresco arroio murmurava, parecendo cantarolar um gorjeio.

- Será isto o sino, afinal? - disse uma das crianças, deitando-se para escutar. - Creio que vale a pena estudar isto!

E ali ficou, enquanto os outros continuavam a andar .

Chegaram a uma cabana, feita de galhos e de casca de árvores. Uma grande macieira silvestre estendia os galhos por cima do chalézinho, como se quisesse chover bênçãos sobre o teto, coberto por uma roseira em flor. Os galhos floridos enroscavam-se no beiral, onde estava amarrada uma sineta.

- Seria aquele o sino que as pessoas ouviam? Sim! Todos concordaram, exceto um, que achou a sineta muito pequena e muito frágil para ser ouvida a tão grande distância. E disse ainda que o som era muito diferente daquele outro, que tocava, que tocava tão profundamente o coração humano.

Era um principezinho o que falara, e os outros disseram que aquela espécie de gente sempre quer ser mais entendida do que as outras pessoas.

Deixaram-no, pois, prosseguir sozinho, e quanto mais se internava na floresta, tanto mais o impressionava aquela solidão. Mas ainda ouvia a sineta que tanto tinha agradado aos outros. De vez em quando o vento soprava do lado da tenda do confeiteiro, ouvia, também os cantos dos que ficara lá tomando chá. Mas o som profundo do sino elevava-se, mais alto, parecia que havia um órgão a acompanhá-lo. E aqueles sons vinham do lado esquerdo, quer dizer, do lado em que fica o coração.

Ouviu-se um rumor nos arbustos e um menino parou na frente do filho de rei, um menino de tamanquinhos e com um  casaco tão curto, que deixava aparecer todo o punho da camisa.   Ambos se conheciam: o que trajava modestamente era aquele que não pode reunir-se aos outros, porque tinha  de voltar para restituir o casaco e os sapatos que lhe emprestara o filho do dono da casa. Feito isto, voltara, com seus tamanquinhos e a roupa surrada, porque o sino estava tocando com um som tão profundo e com tamanho poder que ele não pode resistir.

- Pois então, - disse o filho de rei – podemos agora ir juntos.

Mas o menino pobre estava muito envergonhado; olhou para os pés, puxou as mangas da jaqueta e disse que talvez não pudesse caminhar mais longe, além disso achava que o sino devia ser procurado para o lado direito, porque naquela direção ficava a parte mais bela da floresta.

- Então provavelmente não tornaremos a nos encontrar. - disse o filho de rei, cumprimentando o menino pobre.

Este entranhou-se nas profundezas do mato, onde os espinhos lhe rasgavam a roupinha pobre, arranhando-lhe o rosto, as mãos e os pés, até fazer sangue. O filho de rei também não se livrou de algum arranhão, mas o sol brilhava no caminho, e vamos segui-lo, porque é um rapaz excelente e resoluto.

- Eu tenho de achar, e hei de achar o sino! - disse ele. - Nem que precise ir ao fim do mundo!

Uns macacos muito feios, que estavam encarrapitados nas árvores, fizeram-lhe caretas, dizendo uns para os outros:

- Nós não vamos dar-lhe pancadas? Não vamos dar nele? É o filho de rei!

Mas ele continuou a andar, destemeroso, cada vez mais para o interior da floresta, onde vicejavam as mais estranhas flores. Ali havia lírios alvos, com estames vermelhos como sangue; tulipas da cor do céu, que brilhavam , quando a brisa as roçava; e macieiras, cujas frutas pareciam grandes e brilhantes bolhas de sabão. Imagine como não cintilavam aquelas árvores ao sol! Ao redor de lindos prados verdes, onde os veados brincavam, erguiam-se carvalhos e faias magníficos, e nas fendas da casca das mais antigas brotavam trepadeiras e aninhavam-se musgo. Haviam ainda lagos serenos, onde nadavam cisnes brancos, que batiam as asas no ar. O filho de rei parou muitas vezes, ficando quieto, a escutar. Julgava que o som do sino vinha daqueles lagos, mas verificou então que procedia de muito mais longe, do fundo da mata.

Já o sol declinava. O ar era agora flamejante e a floresta profundamente silenciosa, ele caiu de joelhos, fez a sua oração da noite e disse:

- Nunca acharei o que procuro! A noite, a noite escura se aproxima. Mas... quem sabe se ainda poderei ver por um instante o sol vermelho antes que se suma no horizonte! Vou subir aquele rochedo, que é tão alto como as árvores mais altas.

Segurou-se, conforme pode, às raízes e trepadeiras, e foi escalando as pedras escorregadias; viu ali cobras-d'água enroladinhas e sapos do mato que pareciam coaxar para ele. Mas alcançou o pico antes  que o sol mergulhasse no horizonte.

E que vista magnífica daquela altura! O mar, o mar imenso, sem limites, que atirava suas ondas à praia, estendia-se diante dele. E além, no ponto onde mar e céu se encontram, o sol, como um grande altar resplandecente, fundia tudo quanto o cercava em cores maravilhosas. A floresta cantava, o oceano cantava, e o coração do menino juntou também o seu cântico aqueles hinos de louvor.

Toda a natureza era como um vasto templo sagrado: pilares eram as árvores, e as nuvens flutuantes, o musgo e as flores, magníficas tapeçarias de veludo, abóbada, o céu sem limites. Agora as cores brilhantes iam desmaiando, mas milhões de estrelas se acendiam - milhões de lâmpadas de diamante, iluminado a cúpula gloriosa.

E o filho do rei estendeu os braços para o céu, e para o mar, e para a floresta.

Justamente nesse instante, do caminho que ficava à direita, surgia o rapaz pobre, o das mangas curtas e dos tamanquinhos. Viera por outro caminho, mas chegara ao mesmo tempo que o filho de rei.

Correram então um para o outro, e ali ficaram, de mãos dadas, no vasto templo da natureza e da poesia. E acima deles, e por toda a parte, soava o sino invisível e solene. Espíritos sagrados flutuavam ao redor deles, erguendo suas vozes em um cântico de aleluia!

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