sábado, 16 de abril de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 23: Conversa de beira de piscina

Ananias (muito sério e com a fala compenetrada):

— Bertolto, meu amigo, deixa eu te contar, antes que me esqueça. Achei hilária a cena, até certo ponto. Depois cheguei a conclusão que a pessoa era completamente fora do juízo normal...

Bertolto (abrindo a caixa da abelhudice):

— Estou me mordendo de curiosidade. Vamos, canta a parada.

— No sábado fui almoçar na casa de um amigo meu, o Buferato, que não via há uns seis meses. Chegando lá, na hora dos comes e bebes, me deparei com um rapaz de modos estranhos. Fiquei passado como ele comia...

Bertolto (mostrando um espanto meio zombeteiro):

— Como assim passado, Ananias? Acaso o sujeito enfiava a comida pelos buracos do  nariz?

Ananias (furioso, com a observação maldosa):

— Fala sério, Bertolto. Tudo você leva na brincadeira... que saco!

Bertolto (apaziguando o amigo):

— Pra descontrair, meu prezado. Ok. Tá legal. Me perdoa. Por que ficou passado?

— Acredita que a criatura devorou, de uma só vez, na minha frente e diante de meus olhos esbugalhados e, claro, de outros figurões à mesa posta, dois bifes à milanesa sem fazer uso do garfo e da faca?

Bertolto (coçando o lóbulo da orelha direita e querendo rir):

— De que maneira? Com as mãos?  

Ananias (mais sério que lagartixa na parede):

— Com os cotovelos... e o mais espetaculoso. Com uma destreza jamais vista. Confesso à você, nunca me deparei com uma coisa igual. O sujeito é um gênio. Pelo menos eu o vi assim e o elegi herói. Não fosse estar envergonhado, e espantado, eu me levantaria do meu assento e daria os parabéns à ele.

Bertolto (novamente pretendendo cair na gargalhada e ponderando as palavras a serem ditas):

— Admiro você, meu caro Ananias, um homem viajado, chamar a isso, ou achar tal cena de comer fazendo uso dos cotovelos de modo estranho. Não vejo nada demais ou de anormal. Cada louco com a sua mania. Grosso modo, cada mania com seu louco. Eu mesmo adoro encher a barriga sem usar os apetrechos  normais. Você sabe disso. É feio? Sim!  É chato? Também! Pareço um neurastênico recém saído de algum manicômio. Entretanto, você que me conhece não é de hoje, tem pleno conhecimento de minha tara, e, inclusive, já cansou de me ver fazendo as refeições com os pés. Eu adoro comer com os pés...

— Concordo plenamente com você, Bertolto. Cada louco com a sua mania. Penso como você, ou seja, também sou adepto de comer dessa forma bem primitiva. Com os pés. Lembra meus pais e avós. Que Deus os tenha...

— Eles também comiam com os pés?

Ananias (rindo de maneira ponderada com a observação feita pelo amigo):

— Se liga, Bertolto. Eles nunca deixaram os pés em algum lugar escondido da casa, para se sentarem à mesa.

Bertolto (muito sério demonstrando não ter gostado nem um pouquinho da insinuação):

— Deixa de ser palhaço, Ananias. Não se faça de idiota. Você está mudando o rumo da prosa. Não respondeu ao que perguntei. E pior: por que todo esse espanto e alvoroço desnecessários com o pobre do indivíduo matando a sua fome com os cotovelos?

Ananias (voltando à seriedade e se fechando em copas):

— É que depois desse fato, o infeliz fez algo que considerei inusitado. Pasme, Bertolto. A figura mandou para dentro da barriga o garfo e a faca misturados com feijão  tropeiro, arroz, farinha de mandioca acompanhado de um copo de refrigerante.

Bertolto (desta feita, o olhar interrogativamente cético):

— Credo! Ai, realmente tenho que concordar com você. A coisa passou dos limites. Se você não estiver me sacaneando com suas pegadinhas... que situação incrível! Apenas uma pulguinha atrás da orelha me intriga. Peço que me esclareça esse pormenor. O abestalhado, em nenhum momento passou mal, ou, sequer se atrapalhou com essas peças?

— A certa altura, sim.

— Entendo!  E como foi?

— Imagine!

— Estou tentando desenhar um quadro da cena no interior de minha mente. Contudo,  realmente, não faço a mínima.

— Pense, Bertolto... cabeça não foi feita só pra usar chapéu... e juntar caspas...

— Sem chance. Fala de uma vez. Como o desajuizado se saiu dessa? Engasgou, se entalou, sei lá...?

— Na verdade, Bertolto, ele se sufocou. Igual quando uma espinha de peixe empaca no gogó. Começou a virar os olhos, ficou branco... passou a não respirar. Meu chapa, pensei com meus botões: esse doido varrido vai empacotar. Precisaram chamar o SAMU...

Bertolto (coçando a cabeça e tentando digerir aquele papo furado):

— Não enrola. Parta para os finalmentes, Ananias. Em consequência de todo esse vexame, como a confusão acabou...?

— Os socorristas conseguiram pinçar o garfo e a faca.

Bertolto (Soltando um suspiro de alívio):

— Graças à Deus! Dos males, o pior.

— Engano seu. Em questão de segundos tudo mudou da água para o vinho...

— Desenhe. Estou voando... acho que você está tirando uma com a minha cara...

— Jamais faria isso, Bertolto. O que estou lhe falando é a mais pura verdade.

— Ok. Então fale com mais clareza.

— Vou tentar...

— Estou esperando...

— No segundo à frente, Bertolto,  após um breve descuido dos socorristas, o maldito do rapaz engoliu o estetoscópio... e, de lambuja, o aparelho de medir pressão…

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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