domingo, 17 de abril de 2022

Humberto de Campos (As "meninas")

Há páginas de literatura tão de acordo com a verdade, com as lições severas e surpreendentes da vida, que a gente se fica, às vezes, a pensar horas e horas em semelhante duplicidade. Essa curiosa surpresa tenho-a eu tido de vez em quando, e tive-a ontem, mais uma vez, após uma leitura meticulosa da viagem feita por Stendhal à Suíça no ano de 1821.

Os jornais do Rio de janeiro aparecem, como é sabido, cheios, diariamente, de notícias de roubos, de assaltos audaciosos, à luz do dia ou no silêncio da noite, à propriedade alheia. Não se abre nesta capital uma folha da manhã, ou da tarde, sem encontrar a descrição da escalada de um muro ou de uma janela, por um dos numerosos ladrões que perturbam, zombando da policia, o sossego da cidade.

- É uma calamidade, conselheiro! - dizia-me, na tarde de ontem rumo da sua casa, onde íamos jantar com as suas exmas. filhas, o comendador Fulgêncio Gadelha da Cunha. - Raro é o mês em que me não penetra um gatuno no quintal, carregando-me com as galinhas, com os vasos de planta, com a roupa do tanque, enfim, com tudo que lhe fica ao alcance. Já não sei mais o que faça!

- O comendador não tem cachorros no quintal? - indaguei, penalizado daquela queixa.

O velho comerciante virou-se para mim e protestou, sacudindo a cabeça:

- Eu? Não!

- Pois, olhe, - insisti - se o senhor tivesse um ou dois cachorrões de raça, desses cães de guarda destinados a defender as habitações, ninguém lhe penetraria, sequer, no jardim, fora de horas.

- Deveras? - tornou o velho.

Eu confirmei, e ouvi, com espanto, esta resposta absolutamente inesperada:

- Nesse caso, não os quero.

- Nos os quer? - estranhei, arregalando os olhos.

- Absolutamente. Porque, se eu puser cachorros no quintal...

E concluiu, ao meu ouvido, rindo, e piscando um olho:

- As meninas... não se casam!

Nesse momento penetrávamos, os dois, no jardim da casa, onde uns pedreiros haviam deixado, por esquecimento, há seis meses, uma escada encostada ao prédio, ao lado, exatamente, da janela das "meninas"…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

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