sexta-feira, 29 de abril de 2022

Rascunhos Poéticos Potiguares I


Amir Mansud
Natal/RN

FULÔ DE MANDACARU


Bendita seja
a flor de Mandacaru
que mesmo nascendo na seca
no meio dos urubu
já vem cum gostinho de chuva
a chuva de Nosso Sinhô.

Num sei, meu Deus,
cumé qui pode
dum chão pegando fogo
nascer uma fulô.
É um mistério,
é um milagre,
é coisa de Nosso Sinhô.

A melhor fulô do mundo
escute bem, meu irmão
é a fulô de Mandacaru
a fulô do meu sertão.
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Diógenes da Cunha Lima
Nova Cruz/RN

PIRANGI

Água clara, mar azul,
suave ser, alegria contida,
moças florescem no azul
da manhã recém-nascida.

Voam velas, luze a luz,
gente e paisagem: harmonia.
Pirangi, praia do amor,
nos dá lição de alegria.

O coração ritmado
nos lábios sorriso breve,
o vento arrepia a pele,
respiro o ar leve, leve.

Nas casas cinzento
perde a sisudez merecida,
o sol dourando a manhã
limpa as vidraças da vida.
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Esmeraldo Siqueira
Vila Nova, hoje Pedro Velho/RN, 1908 – 1987

REDIVIVO


Nenhum de vós me conhece.
Já morri muitas vezes!                     
O que vedes em mim,
Depois de tantas mortes sucessivas,
Não sou eu, mas o egresso de mim mesmo,
Por milagre extraordinário
Da vontade consciente de viver.
Rebentei, uma a uma, as paredes do túmulo
Onde haviam tentado sepultar-me,
E apareci ao sol, completamente outro,
Reafirmando aos brados
O desejo de ser.

 Minhas ressurreições passaram despercebidas
E ninguém duvidou de que eu fosse eu mesmo.
Não vi como nem para que provar
Aos cegos de nascença a existência da luz.
Meus amigos, eu trouxera do berço
Os estigmas negros do infortúnio.
— "Hás de ser infeliz! hás de ser infeliz!" —
Foi o refrão que ouvi durante anos e anos.
E realmente, fui um réprobo da sorte.

 Vieram não sei de onde algozes misteriosos,
Arautos de sinistras potestades,
Cada um com seu suplício original.
Havia três bilhões e meio de outras almas
E era tão grande a terra!
Por que seria eu o eleito supremo,
Justamente eu, meus amigos?
Devo calar em meu próprio respeito.
Por mais que vos falasse,
Não terieis tempo de entender-me.
Gritarei, apesar de tudo,
A plenos pulmões e em tom desafiador:
— Eu sou o liberto! eu sou o liberto!
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Felipe Garcia de Medeiros
Caicó/RN

3G (Última Geração)


A esta hora
em que te escrevo
tarda
qualquer expressão.
Se existir na boca
uma sobra de verbo,
ou bafo,
não saberei te dizer
com as mesmas palavras
de Eliot ou Svevo.
Chorei ao ver e ouvir Le Bateau Ivre
de Rimbaud no youtube
e o vídeo colorido
e animado
parecia a realidade
da poesia na realidade
em que eu vivo.

Tem dia que penso em deixar a fantasia
(não pensar no cosmo à noite
e deixar de sonhar
de dia).

encerrar a história sem fim
que tantas vezes
me iluminou na infância.
- Bobagem, ou não.
Ontem passei o dia em vão
como se a alegria
se esgotasse na viagem.

 Aonde
fui me meter
ninguém me esconde.

 Sabia: hoje, ser poeta
é não ser conde
nem santo
nem padre
nem cristo.

 Fiz o plano 3G
e tenho, durante 24h,
noticias filmes poemas
o diabo-a-sete
por apenas 89 reais mensais
acesso à Internet.
Imagina como está minha nova
vida: madrugadas,
estranhas covas,
o silêncio — e a solidão.

 Quando, de repente,
eu ouço rap
me anima
qualquer rima
do Emicida:
ele também é um da gente,
cara ferida.
O que são nossos versos
e essa missão
a que o profeta alude?

 Um dia farão a minha biografia
o documentário
começará com a chamada

 o poeta
e será válida a vida.

 Mas que ritmo robusto
pode aparecer nos meus braços
quando eu abrir as pernas
diante de um site
para ver os filmes mais quentes
não, não sei se vou aguentar
passar a vida inteira
fingindo
como uma Pessoa
boa
ou fingindo
ser uma Pessoa
má - ou rindo
dizendo
que não sou
isto
nem aquilo.

 Ganharia bem mais
se adquirisse um estilo
lucrativo
clonando
ao invés de criar.

 A maior obra está por vir.
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Ferreira Itajubá
Natal/RN, 1877 – 1912, Rio de Janeiro/RJ

SOMBRAS DA NOITE


Eu amo as sombras que tremulosas
Descem, de luto cobrindo as leiras,
– Ora perdidas nas capoeiras,
– Ora nas vargens silenciosas.

Sombras de longe, sombras saudosas,
Sobre colinas, sombras ligeiras,
Aves noturnas pelas esteiras
Da imensidade de nebulosas.

Nos dilatados, bravios mares,
Sombras inquietas e viajantes,
Iguais às sombras dos meus pesares.

Na praia algente de branca areia,
– Sombras que eu amo, sombras errantes
Das noites claras de lua cheia!

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