sábado, 2 de abril de 2022

Mia Couto ( Francolino e Lucinha)

Sentada na varanda, Dona Lucinha acerta agulha e pano, em infinita costura. Há tantos anos que redige tais bordados que ela já nem sabe o que está criando. O gato é testemunha daquele inartefato, enroscado em falso ponto de interrogação. Afinal, o tempo é quem nos vai alinhavando. Demasiado tarde: a vida coloca o dedal no dedo onde o amor já fez a ferida.

Recuado na sombra da varanda, o marido, Francolino Vicente, se balança na cadeira, espapançudo* ante um idoso jornal. É uma publicação remota, dos tempos em que ele, realmente, lia jornais. Ele prefere assim, entre bafo e desabafo:

— Só leio jornal desses tempos em que apenas havia boas notícias.

O copo está vazio, mas ele, de quando em quando, o leva aos lábios e faz estalar um gozo. Francolino é como a aranha que encontra alimento sem procurar comida. Sua teia é ali, nos invisíveis fios da varanda. O tempo, para ele, se indefine:

— Hoje é terça-feira em ponto.

O homem sabe os segredos do mundo: o rio, verdadeiro, não mexe. Flui, deixado e desleixado. Quem faz mover suas águas são os rabos dos peixes, inumeráveis leques que nunca pausam. Como nós. Deixemo-nos quietos como pedras e o tempo não anda.

Francolino pousa, com vasta cerimônia, o pregueado jornal:

— Lucinha?

— Diga, marido.

— Você gosta de mim?

Ela abana a cabeça, negativamente. Responde sempre assim, despalavrada, subterfugidía. Voltando a desfranzir o jornal, ele relança a atenção na leitura, enquanto diz:

— Há-de gostar.

Desde que juntaram suas vidas é sempre assim. Todos os dias a cena se repete, incluindo o gato que, com a amealhada preguiça, já nem espreguiça. Tem sido assim desde que Francolino a raptou de uma companhia de dançarinas que passara pela cidadezinha. Aconteceu há quarenta anos. Perante juízos ele, na hora, se defendeu:

— Ser roubada é um destino para mulher afortunada. Ainda calha bem que fui eu quem deu andamento a esse rapto.

Que a dançarina correspondesse àquela paixão isso o imperturbava. O sal é que faz o maduro da manga verde. Assim, o amor havia de chegar. Que ela tivesse sido arrancada de uma paixão, a dança, isso nem comichava a consciência de Francolino.

Foram somando filhos, perdendo tempos. Nunca ela lhe entregou ternura, nem adocicou palavra. Sempre distante, desacontecida. Sentada nos degraus da tarde, ela bordava como se remendasse a sua existência.

— Lucinha?

— Diga.

— Você me gosta?

— Já sabe que não.

E logo o homem garantia: ela haveria de gostar. No enquanto, o tempo ia visitando aquela varanda, deitando por ali mais poente que manhãs.

— Estamos envelhecendo — dizia Francolino. — Estamos para aqui nos carcaçando. Sabe como é que a gente nota que estamos a envelhecer?

— Deixe-me bordar em sossego.

— Sabemos que estamos velhos porque nos começam a nascer ossos e mais ossinhos. Nunca reparou, Lucinha?

— Leia o seu jornal, homem.

O homem prossegue: é isso a velhice, como se o corpo se preparasse para caixa, todo ele gradeado a ossos, inorgânico. Francolino não pretende dizer nada. Simplesmente quer desviar Lucinha a favor de sua atenção. Mas a mulher continua toda nos lavores. Tudo em redor são insignificâncias. Principalmente, ele, o sentadiço marido. Aquele desprezo seria vingança da sua condição de roubada? Soubesse se e não haveria estória.

— Lucinha? Você...

— Não.

Até que, certa semana, ele deixou de proceder à sacramental pergunta. No início, Dona Lucinha nem notou diferença. Bordava seu longo tecido, a costura e as mãos dela já tornadas simbióticas, amparadas no entretecer recíproco. Aos poucos, porém, aquele silêncio do homem lhe foi roendo o coração. Já não dava nem ponto nem nó. Até que ela se extroverteu:

— Francolino?

— Sim...

— Já não fala comigo?

Ele sacudiu a cabeça, embrenhado na leitura de nenhuma página. Seus olhos se adesivaram no jornal, parecia que ele estudava modo de escapar entre as letrinhas, dissolvido em pontos e vírgulas.

A esposa, com os tempos, se foi acrescentando de impaciências. Até que, certa tarde, ela renovou a pergunta. Sua voz se estica em corda de angústia:

— Já não me pergunta nada, Francolino?

Francolino nem tuge nem ruge. Então, ela se levanta e lhe entrega o pano que se desenrola em infinitas desvoltas. O tecido se enrosca no colo do homem e, aos poucos, vai ocultando o jornal. Por desatenção de suas mãos ou por demasia de peso as páginas se rasgam, abrindo se um abismo como se ao próprio tempo faltasse o chão. Se vê, então, que aquilo que ela vem bordando, desde há anos, é um repetido e sucessivo vestido de dança, adornado de mil folhos e plissados. Parecia dessas roupas que só servem para despir.

Francolino olhou o suspiro dos panos sobre o chão. E lembrou como, em tempos, a vira no palco estreando luzes, vestida só com a nudez dela. Memória desembrulhada, bordado tombado, jornal rasgado: o velho suspende um gemido, quase uma lágrima.

Visse ele quanto uma vida inteira pode tombar assim num desembrulho. A voz em riachinho:

— Que lindo esse vestido, Lucinha!

Debruçando se sobre a cadeira do marido, Lucinha beija lhe longamente a testa. Tão longamente que ele adormece, se afundando no rio do tempo, mais denso que a própria vida.
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* Espapançudo = Não encontrei sinônimo para esta palavra, mas pelo texto creio que seria como “pança arriada”.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

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