sexta-feira, 15 de abril de 2022

Sílvio Romero (Cova da Linda Flor)

Folclore do Rio de Janeiro.

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HOUVE NOUTRO TEMPO um rei que tinha o hábito de jogar, e todos com quem jogava perdiam. Uma vez convidou a um outro rei para jogar, e, no dia marcado, este se apresentou; mas perdeu todas as mãos do jogo, até que se desenganou e despediu-se para se ir embora. O dono da casa, que o desejava matar, marcou-lhe um outro dia para ir a palácio, o que era seu costume fazer com todos com quem jogava.

O outro foi avisado disto, e dirigiu-se a um ermitão para lhe aconselhar o que havia de fazer para evitar a morte. Este, não sabendo o conselho que lhe havia de dar, mandou que fosse ter com outro segundo seu irmão, que ainda o enviou para terceiro. Este último aconselhou ao rei que se pusesse debaixo de uma árvore, que lhe indicou, e que tivesse cuidado nos pássaros que nela se assentassem, afim de apanhar um escrito que um deles levaria no bico e largaria no chão, e que ele seguisse o que o tal escrito ensinasse.

Assim fez. Encaminhou-se à árvore indicada, sentou-se debaixo, e daí a uma hora vieram chegando os pássaros, até que também chegou um que tinha o peito amarelo que trazia o escrito, e o largou. O rei apanhou o papel, e leu as seguintes palavras: “O rei com quem jogaste tem três filhas encantadas, que hão de ir se lavar no rio, virando-se em três patas. Põe-te escondido na beira do rio até que elas cheguem; depois que elas tirarem a roupa para se banharem, deves apanhar a roupa da última que se despir e esconder-te com ela. Depois do banho as princesas hão de procurar a sua roupa, e a mais moça, não encontrando a sua, há de ficar muito aflita e prometer livrar de todo o mal a quem lha restituir.”

Assim fez. Seguindo para a beira do rio, se escondeu até que chegaram as três princesas irmãs; tiraram todas três as suas roupas, puseram-se nuas, viraram-se em três patas e atiraram-se ao rio. Depois que se fartaram de banhar-se saíram da água para se vestirem e tornarem para o palácio.

As duas que tinham roupa vestiram-se; a mais moça, como faltasse a sua para fazer o mesmo, ficou desesperada por não poder seguir suas irmãs. Como desconfiasse que lhe tinham escondido a roupa, e não enxergando pessoa alguma, pediu a quem lhe a tivesse tirado que lhe entregasse; porém o rei se fez surdo e não apareceu. Pediu a princesa pela segunda vez e nada; pediu pela terceira, prometendo a quem lha entregasse de livrar do mal que tivesse de lhe acontecer.

Então saiu o rei do esconderijo onde estava e dirigiu-se para a princesa, dizendo: “Aqui está a vossa roupa que eu tinha escondido afim de me livrar, por vossos conselhos, da morte que vosso pai me quer dar.”

A moça respondeu: “Tenho por costume cumprir o que prometo, e disto não me afasto; meu nome é Cova da Linda Flor; hoje é o dia que tendes de ir à casa do rei meu pai; chegando lá batei na porta, ela vos será aberta; assobiareis até chegardes à porta da sala, a qual achareis também fechada; batei, por dentro vos abrirão, ao abrir encostai-vos na parede para vos esconder a dita porta; não vos assusteis com um foguetão que há de sair da sala, que é para dar fim à vossa vida; passando o foguetão, entrai na sala e falai com o rei, meu pai”.

Assim fez. Quando o rei julgava que o foguetão tinha dado cabo do outro, foi que este se apresentou em sua frente. Ficou o pai das princesas muito chateado por ser aquele o primeiro que tinha escapado daquele trama. Ordenou-lhe então que fizesse amanhecer o seu palácio no meio do mar, sob pena de perder a vida. O rei jurado recolheu-se ao seu aposento no palácio muito triste e pensativo, temendo perder a vida no dia seguinte.

Dirigindo-se então a princesa para onde estava ele, perguntou-lhe a causa da sua tristeza. Respondeu que tinha de perder a vida no dia seguinte, se não fizesse aparecer o palácio no meio do mar, conforme seu pai lhe tinha ordenado.

Ela  lhe prometeu que dessa vez ainda não morreria; que dormisse descansado, que quando amanhecesse estaria no meio do mar. O que tudo aconteceu com admiração de todos.

Como o pai da Cova da Linda Flor não pudesse desta segunda vez matar o rei, seu companheiro, ordenou-lhe que desse conta dum anel que sua mulher tinha perdido no mar, com pena de perder a vida no dia seguinte.

Retirou-se o hóspede ao seu aposento outra vez triste e pensativo; o que sabendo a princesa, para lá se dirigiu e perguntou-lhe o motivo. “Tenho de morrer amanhã se não der conta de um anel que a rainha vossa mãe perdeu no mar.” A moça prometeu-lhe que estivesse descansado, que tinha de achar o anel. Deu então ao rei uma varinha, indicando-lhe uma laje que havia no mar, que, quando amanhecesse, se dirigisse à dita laje e batesse com a varinha, que havia de começar a sair os peixes que estavam no fundo da laje, que havia de ver um de papo amarelo, que o agarrasse e o abrisse que dentro encontraria o anel.

Assim foi. Tudo se passou como a princesa ensinou; arranjado o anel o rei foi levá-lo ao outro que logo o reconheceu e percebeu que isto eram artes da Cova da Linda Flor, e resolveu acabar também com ela. Porém a moça adivinhando isto foi ter ao aposento do seu protegido e lhe disse que fosse à estrebaria de seu pai, que lá encontraria três cavalos, um muito gordo e grande que andava como a água, outro mais abaixo na figura que andava como o vento, e outro ainda mais abaixo que andava como o pensamento, que ele pegasse neste e viesse para fugirem ambos.

Indo o rei à estrebaria, não encontrou o que lhe disse a moça e pegou no cavalo do meio, que andava como o vento, o que desagradou bastante a princesa. Como já fosse perto do dia, montaram-se ambos no cavalo, e fugiram.

Amanhecendo, o rei achou falta de sua filha e indo ao quarto do outro rei, também o não encontrou, indo também à estrebaria não encontrou o cavalo que andava como o vento. Mandou aparelhar o cavalo que andava como o pensamento, e seguiu atrás dos fugitivos. Quando os estava para alcançar, a princesa fez virar o cavalo em que fugia num estaleiro, a sela num toro de pau, o freio numa serra, o rei em cima do estaleiro e ela embaixo, ambos com a serra na mão a serrar.

Chegando o rei,  perguntou se tinham visto passar um homem com uma moça na garupa. A resposta que teve foi: “Serra, serra, serrador. Eu também sei serrar.”

Cansado de perguntar e sem ter uma resposta, o rei voltou desapontado. Chegando contou à rainha o que tinha encontrado, ao que ela disse: “És muito inocente; o estaleiro é o cavalo, o toro a sela, o freio a serra, e os dois eram o rei e a nossa filha.”

O rei volta para ver se os pegava; no caminho já não encontrou mais os serradores. Seguiu, e quando já estava a pegar os fugitivos, estes se viraram numa ermida, dentro dela um altar, no altar uma imagem, ao pé do altar um ermitão rezando em um rosário. Perguntando-lhe o rei se tinha visto passar um homem com uma moça na garupa, a resposta do frade era: “Padre Nosso, Ave Maria.”

Cansado o rei de perguntar, voltou de rédea, e foi-se embora. Chegando à casa contou à rainha o acontecido, ao que esta respondeu: “És muito tolo; a ermida era o cavalo, o altar a sela, a imagem a princesa, o ermitão o rei, que voltes quanto antes.” O rei partiu, e pelo caminho não encontrou mais ermida, nem ermitão.

Depois de muito andar encontrou num cercado uma roseira com uma rosa, e uma mamangaba beijando a rosa; perguntou à mamangaba se tinha visto passar por ali um homem a cavalo com uma moça na garupa. A mamangaba voou em torno da rosa; assim uma segunda vez. Na terceira pergunta ela voou em cima do rei e deu-lhe uma ferroada.

O rei voltou desapontado, contou à rainha o que se tinha passado, e ela lhe respondeu: “És ainda muito tolo; a roseira era a sela, a rosa nossa filha, o cercado o cavalo, a mamangaba o rei, portanto volta quanto antes.”

O rei não quis voltar, e a rainha de zangada pediu a Deus que o rei fugitivo fosse ingrato com sua filha e a desprezasse.

Assim aconteceu. Depois que estiveram residindo numa cidade por algum tempo se separaram, e o rei esqueceu de todo a Cova da Linda Flor. Então ele contratou casamento com outra princesa, e quinze dias antes do casamento mandou fazer anúncios para se apresentarem as pessoas que melhores doces soubessem fazer. Entre as que se apresentaram apareceu uma moça que se encarregou de fazer um casal de pombas que falassem, com a condição de serem postas em cima de uma mesa diante de todo o povo na véspera do casamento.

O rei concordou e no dia marcado mandou chamar todo o povo da cidade para presenciar aquela fonção*. Estando todos presentes, disse a pomba para o pombo: “Pombo, não te lembras quando o rei, meu pai, te convidou para jogar, para procurar um meio de te matar, e tu para te livrares escondeste a minha roupa, quando fui me banhar no rio, e eu te prometi livrar de todo o perigo se me desses a roupa? Pombo, não te lembras quando meu pai te chamou ao seu palácio para te tirar a vida, e te salvaste por meus conselhos? Não te lembras quando ele te ordenou que fizesses amanhecer seu palácio no meio do mar, e depois que lhe desses conta de um anel que minha mãe tinha perdido também no mar, sob pena de perderes a vida, o que tudo conseguiste por meus conselhos? Não te lembras quando fugimos, para escapar da morte, no cavalo que corria tanto como o vento, e, sendo perseguido por meu pai, nos salvamos por meus encantos? Não te lembras que isto aconteceu por três vezes, que na última nos viramos numa roseira com uma rosa, e uma mamangaba, que tudo fiz para te salvar a vida, e tu ingrato me esqueceste e vais te casar com outra?”

O pombo ia levantando a cabeça à proporção que o rei se ia lembrando do que se tinha passado com ele, e o rei desfez o trato do casamento e recebeu por mulher aquela que o tinha livrado da morte.
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* Função, no sentido de festa, brincadeira, pagode. [N. do A.]

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

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