Ele era um velho forte, apesar da idade avançada. Seus amigos, coabitantes do Lar Torres de Melo, faziam roda para ouvi-lo. Grande proseador, gabava-se por ter sido um exímio caçador de calangos e bem-te-vis. Cedo, aos quatorze anos, foi pai, fruto de aventuras amorosas infanto-juvenis. Responsabilidade contraída, súbito, torna-se um adulto com cabeça de menino. Foram-se as bolas de gude e a baladeira. Os calangos, com desdém, meneavam em desafio. Os bem-te-vis não mais se esvoaçavam. Precoce aposentadoria para um jovem caçador de sonhos. A lagoa esquivou-se de lhe dar banhos e cangapés*. Não se fizeram valer os sábios conselhos maternos. O menino mostrava-se com a mesma aptidão sexual do avô paterno.
— "Parece que tô é vendo o garanhão do teu avô... Não sei por que não puxaste ao teu pai"... Os conselhos da Dona Santa não ecoavam aos ouvidos de Quintino.
Choro novo com nove meses de preparo. Vagido de quem já nasce prepotente. Um novo homem. E que homem!
A vida continuava que nem antes para os Caetanos. Não houve alvoroço. O filho de Quintino era um Caetano por parte de mãe. Os Caetanos eram a terra, a água, o ar e o fogo do pedaço, Quintino era um sem-terra, sedento, asmático... Mas tinha fogo. Não pôde conhecer o filho. Castigo lhe imposto sem apelação. Humilhado pelos "de posse", tomou o expresso rumo à cidade grande sem nem mesmo se despedir de Quitéria, mãe do seu filho.
A revolta que sentia apagou seu passado. Nem de Dona Santa se lembrava. Morando com um primo bem mais velho, logo se interessou em trabalhar. O primo conseguiu-lhe uma colocação nos serviços gerais na empresa da qual era funcionário. Com o passar do tempo, Quintino decidiu estudar de noite. Esperto, disciplinado, tornou-se querido entre os colegas de turma. Seu interesse no aprendizado era motivo de contentamento entre seus professores. Cada período de estudo era vencido com louvor pelo Quintino. A solenidade de conclusão do nível médio estava para acontecer, Quintino não parou por aí, não! Foi promovido na empresa, teve aumento de salário e continuou mais um período de estudo. Em três anos, concluiria o Segundo Grau.
Resolveu escrever para a mãe convidando-a para visitá-lo. Nunca mais poria os pés naquela terra que foi seu berço. Ainda amargava a dor daquela humilhação, Nem mesmo se lembrava de que era pai. O castigo como que diminuiu sua libido. Já não era mais aquele Quintino que quanto mais comia mais sentia fome. Parece até que se tornara usuário de cilício.
Numa das viagens que Dona Santa fazia para renovar as bênçãos ao filho distante, trouxe-lhe um presente especial... O neto veio para acompanhá-la e conhecer o pai, enfim.
— Oi de casa!... Nenhuma resposta. — Tu estás aí, Tino? E só se ouvia o silêncio vindo de dentro da casa.
Lá pelo cair da tarde, com passos largos de quem tem pressa, chega Quintino. Sua mãe o aguardava pacientemente no banco da pracinha que fazia frente à casa do sobrinho.
— A bênção, mãe! Quintino saudava-a enquanto corria para o rumo da praça. Depois dos longos abraços e beijos saudosos, Quintino muda a vista para o garoto, e se vê como aos dez anos de idade. O recordar daquela humilhação eriça-lhe os pelos. A lembrança de Quitéria adocica-lhe o peito. Seus braços se laçam em torno do filho que herdara seu nome por imposição materna. Direito de posse, de posse roubada.
— E meu... E só meu! Gritava Quintino, perdendo seu tino que não era seu.
E a vida seguiu como de costume. Três dias bastaram para que Quintino tomasse pé do que é a sensação de ser pai. Avô e neto tomaram o caminho de volta à Vila. O aceno incontido de dor de um pai que fica, e a lágrima nos olhos de um filho que se vai... Outro encontro, até quando, só Deus sabe.
Se a vida nos mostra hiatos, é para que possamos construir ditongos. Na antiga Vila dos Caetanos, corria o ano da graça de 2008. Um grande vazio havia entre a vida de Quintino e a de seu filho, que o vira por uma única vez.
O progresso é de uma velocidade tão medonha que já nem tinha jeito de Vila as terras dos Caetanos. Duas Igrejas disputavam dízimos dos que ansiavam por salvação.
Os jegues se aposentaram do serviço de botar água, pois, sob as ruas da Vila, ela corria encamisada em tubos enormes... Promessa de campanha cumprida.
O rádio perdeu terreno para a televisão. As cachimbeiras vestiram brancas batas, pois, uma casa de parto havia sido inaugurada. A Vila crescia sem rédeas. O nome da banca de sanduíches da Dona Mazé mudou para "mequidonalde", A internet sem pedir permissão dava um "enter" nas casas da Vila. E haja progresso!
Os Caetanos, cabisbaixos, apreciavam o desbotar do seu brasão. Famílias abastadas de cidades vizinhas proprietárias de muitas léguas de terra ofuscavam-lhes o poder. Quintino das Chagas Filho, homem dos seus trinta anos, pequeno proprietário, dono de uma nesga de terra molhada que ainda lhe dava sessenta anos de vida. Aquele mundão de terra que era só seu, se encolhera.
Nas caladas da noite, resolve fugir da escravidão que o mantivera até então vassalo nas suas próprias terras.
Toma o rumo da cidade grande, sozinho, pois, sua mãe há dois anos falecera. Não tivera irmãos. Sua mãe nunca se casara. Seu pai havia tempos, poucas lembranças lhe deixara nos seus longínquos dez anos de idade.
Procura um canto onde se fizesse ouvir seu cantar triste, o acauã sofrido. Lar Torres de Melo... eis sua nova gaiola de portas sempre abertas.
Lá, um velho proseador rodeado por seus pares, protegido pela sombra de uma mangueira centenária, sombreia os olhos com a mão direita para enxergar melhor quem se aproxima. Todos se viram na direção do novo hóspede.
“Seja bem-vindo!” Diz Quintino, o pai… – Cante seu canto!... Eu lhe ouço!
— "Parece que tô é vendo o garanhão do teu avô... Não sei por que não puxaste ao teu pai"... Os conselhos da Dona Santa não ecoavam aos ouvidos de Quintino.
Choro novo com nove meses de preparo. Vagido de quem já nasce prepotente. Um novo homem. E que homem!
A vida continuava que nem antes para os Caetanos. Não houve alvoroço. O filho de Quintino era um Caetano por parte de mãe. Os Caetanos eram a terra, a água, o ar e o fogo do pedaço, Quintino era um sem-terra, sedento, asmático... Mas tinha fogo. Não pôde conhecer o filho. Castigo lhe imposto sem apelação. Humilhado pelos "de posse", tomou o expresso rumo à cidade grande sem nem mesmo se despedir de Quitéria, mãe do seu filho.
A revolta que sentia apagou seu passado. Nem de Dona Santa se lembrava. Morando com um primo bem mais velho, logo se interessou em trabalhar. O primo conseguiu-lhe uma colocação nos serviços gerais na empresa da qual era funcionário. Com o passar do tempo, Quintino decidiu estudar de noite. Esperto, disciplinado, tornou-se querido entre os colegas de turma. Seu interesse no aprendizado era motivo de contentamento entre seus professores. Cada período de estudo era vencido com louvor pelo Quintino. A solenidade de conclusão do nível médio estava para acontecer, Quintino não parou por aí, não! Foi promovido na empresa, teve aumento de salário e continuou mais um período de estudo. Em três anos, concluiria o Segundo Grau.
Resolveu escrever para a mãe convidando-a para visitá-lo. Nunca mais poria os pés naquela terra que foi seu berço. Ainda amargava a dor daquela humilhação, Nem mesmo se lembrava de que era pai. O castigo como que diminuiu sua libido. Já não era mais aquele Quintino que quanto mais comia mais sentia fome. Parece até que se tornara usuário de cilício.
Numa das viagens que Dona Santa fazia para renovar as bênçãos ao filho distante, trouxe-lhe um presente especial... O neto veio para acompanhá-la e conhecer o pai, enfim.
— Oi de casa!... Nenhuma resposta. — Tu estás aí, Tino? E só se ouvia o silêncio vindo de dentro da casa.
Lá pelo cair da tarde, com passos largos de quem tem pressa, chega Quintino. Sua mãe o aguardava pacientemente no banco da pracinha que fazia frente à casa do sobrinho.
— A bênção, mãe! Quintino saudava-a enquanto corria para o rumo da praça. Depois dos longos abraços e beijos saudosos, Quintino muda a vista para o garoto, e se vê como aos dez anos de idade. O recordar daquela humilhação eriça-lhe os pelos. A lembrança de Quitéria adocica-lhe o peito. Seus braços se laçam em torno do filho que herdara seu nome por imposição materna. Direito de posse, de posse roubada.
— E meu... E só meu! Gritava Quintino, perdendo seu tino que não era seu.
E a vida seguiu como de costume. Três dias bastaram para que Quintino tomasse pé do que é a sensação de ser pai. Avô e neto tomaram o caminho de volta à Vila. O aceno incontido de dor de um pai que fica, e a lágrima nos olhos de um filho que se vai... Outro encontro, até quando, só Deus sabe.
Se a vida nos mostra hiatos, é para que possamos construir ditongos. Na antiga Vila dos Caetanos, corria o ano da graça de 2008. Um grande vazio havia entre a vida de Quintino e a de seu filho, que o vira por uma única vez.
O progresso é de uma velocidade tão medonha que já nem tinha jeito de Vila as terras dos Caetanos. Duas Igrejas disputavam dízimos dos que ansiavam por salvação.
Os jegues se aposentaram do serviço de botar água, pois, sob as ruas da Vila, ela corria encamisada em tubos enormes... Promessa de campanha cumprida.
O rádio perdeu terreno para a televisão. As cachimbeiras vestiram brancas batas, pois, uma casa de parto havia sido inaugurada. A Vila crescia sem rédeas. O nome da banca de sanduíches da Dona Mazé mudou para "mequidonalde", A internet sem pedir permissão dava um "enter" nas casas da Vila. E haja progresso!
Os Caetanos, cabisbaixos, apreciavam o desbotar do seu brasão. Famílias abastadas de cidades vizinhas proprietárias de muitas léguas de terra ofuscavam-lhes o poder. Quintino das Chagas Filho, homem dos seus trinta anos, pequeno proprietário, dono de uma nesga de terra molhada que ainda lhe dava sessenta anos de vida. Aquele mundão de terra que era só seu, se encolhera.
Nas caladas da noite, resolve fugir da escravidão que o mantivera até então vassalo nas suas próprias terras.
Toma o rumo da cidade grande, sozinho, pois, sua mãe há dois anos falecera. Não tivera irmãos. Sua mãe nunca se casara. Seu pai havia tempos, poucas lembranças lhe deixara nos seus longínquos dez anos de idade.
Procura um canto onde se fizesse ouvir seu cantar triste, o acauã sofrido. Lar Torres de Melo... eis sua nova gaiola de portas sempre abertas.
Lá, um velho proseador rodeado por seus pares, protegido pela sombra de uma mangueira centenária, sombreia os olhos com a mão direita para enxergar melhor quem se aproxima. Todos se viram na direção do novo hóspede.
“Seja bem-vindo!” Diz Quintino, o pai… – Cante seu canto!... Eu lhe ouço!
------------------------------------------------
* Cangapé = Ato de mergulhar e dar uma cambalhota com uma das pernas batendo sobre a superfície da água.
Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário