Tem obsessão pelo filho, a quem chama de Júnior. Nada lhe nega, achando que age de modo correto ao lhe satisfazer os menores desejos.
— Pai, me dá uma prancha?
À tarde traz-lhe não apenas a prancha pedida, mas outras coisas que não tinham sido solicitadas. A mulher acha errado acostumar o filho desse modo.
— Presente, agora, só no aniversário e no Natal.
A promessa à mulher fica na promessa. Cada noite traz uma coisa para o garoto.
— Comprei um tênis lindo pro Júnior.
Quase ofende o garoto entregando-lhe um par de tênis de mau gosto.
— Que tal?
— Bacana.
O garoto põe o tênis a contragosto e sai, sem conseguir esquecer que se calça de azul. Depois que o garoto sai, vai para a janela esperar que ele apareça na calçada, lá embaixo.
— Está um homenzinho.
— É. Precisa é melhorar as notas.
— Paciência.
Poupa o menino de queixas e reclamações. Tem sempre uma explicação para os erros.
— Coisa de menino... é uma criança.
Aceita os defeitos e os rotula de "coisa natural da idade". É seu filho único e seu único amigo. A mulher, um pouco por ciúme, critica este modo de proceder.
— O Júnior está mal acostumado. E você...
— Eu sei o que estou fazendo, Petrônia.
Mudou, recentemente, para uma rua do Encantado. Quer que o filho cresça com a liberdade que ele tinha na idade do menino: jogando peladas na rua, soltando pipa, fazendo bucha para balão. Argumenta, explicando a mudança:
— Quero que o Júnior tenha uma infância feliz como a que eu tive.
A mulher não tem opinião. Quando tem, evita emiti-la. É dominada pelo dominante. No caso da mudança, nem ao menos foi consultada.
— Copacabana é uma perdição. Meu filho não vai ser criado neste inferno.
A mulher conformou-se. Arrumou as malas, encaixotou a louça e, submissa como sempre, trocou o apartamento da zona sul pela casa do Encantado, com 64 metros quadrados de terra mal cuidados a que ele chama de quintal.
— Copacabana era tão bom...
Foi a única ponderação da mulher. Inútil.
— Eu é que sei. Garoto gosta de espaço. Eu, que fui garoto, é que sei. Nada vale o que ele vai ter aqui na rua. Não é, Júnior? Espaço! — enche a boca.
Júnior, 14 anos, confirma sem palavras. Em cada casa da rua há, pelo menos, três meninos. O filho, agora, terá uma "turma", igual à do pai, no passado.
Ali estão há duas semanas. O menino ainda não fez amizades. Prefere a janela, de onde acompanha a pelada.
— Que tal morar aqui, Júnior?
Ele abraça o filho na janela, incomodando-o com o aperto. O menino demora a responder:
— Bom.
Bate nas costas do garoto, instigando-o a fazer amigos, na rua cheia de espaço e tristeza.
— Anda, Júnior. Vai brincar com a molecada.
O garoto não se move. Fica na janela. Dali ele vê o pai meter-se na pelada e conversar com o pretinho que joga melhor.
— Vem, filho. Tem vaga pra você.
O menino vai. Por obediência, apenas. A mulher, na cozinha, faz um bolo de chocolate, para encher o tempo. Agora é ele quem está na janela.
— Olha o ponta desmarcado. Levanta a cabeça quando pegar a bola, Júnior.
O garoto joga mal. É mantido no time pelos picolés que o pai compra para os 14 da pelada. Desembrulha o picolé do filho, dando-o já sem papel e sem perguntar se era de groselha que ele queria.
A televisão desligada aumenta as horas do domingo.
— Amanhã o homem vem instalar a antena.
A mulher gosta da notícia. Vai recomeçar a acompanhar a novela. Não têm mais telefone.
— Sem telefone é outra coisa, não é? Outro sossego...
A mulher olha a mesa onde, em Copacabana, havia um telefone e concorda. Ele senta na sala, no sofá forrado de plástico, com o rádio ligado no futebol. O filho volta com um pequeno corte na perna.
— O que foi isso?
— Nada.
— Nada, como? Está sangrando.
— Foi a unha de um garoto que...
A mulher consegue evitar que ele vá tomar satisfações. É difícil fazer com que ele não se meta nos problemas dos garotos. Demora, mas convence. Ele fica, porém, visivelmente aborrecido. Faz curativo na perna do Júnior.
— Está ardendo?
Não está, mas ele sopra forte, segurando a perna do garoto onde colocara o mertiolate. Atribui à contusão a tristeza do filho.
— Vamos fazer um galinheiro? — propõe.
O garoto consegue evitar o convite que lhe soara como determinação. Mete-se no quarto e se deita sem intenção de dormir. Chega da cozinha o ruído do liquidificador.
— Em Copacabana mora-se em gavetas. Aqui, mora-se no chão. Aqui há chão. O Júnior gosta de espaço.
A mulher não responde. Ele recebe o silêncio como concordância.
— Daqui a uma semana está enturmado...
Vai ao portão. O paletó de pijama aberto permite que ele acaricie os pêlos do peito, fazendo círculos com a mão aberta. Quase se felicita pela ideia de mudar para aquela rua.
— Boa tarde.
O vizinho que passa não responde.
— Não ouviu. — diz-se, explicando.
Os dedos, livres dentro do chinelo folgado, abrem-se confortavelmente. O palito do fósforo passeia nos lábios, vez por outra chupado, quase sempre mordido.
Petrônia põe o bolo no forno, faz um café. A tarde entra em coma, o domingo prepara-se para dormir.
— Cafezinho, Haroldo.
— Opa. Chegou na hora; estava pensando nele.
A mulher serve o café na bandeja, como se ele fosse patrão.
— O Júnior não quer um cafezinho?
— Ele não gosta, Haroldo.
— Quem disse? Põe uma xicrinha pra ele...
A mulher faz.
— Cafezinho, filho?
Estende a bandeja para o garoto, onde a xícara fumaça. O rapaz bebe, sem o menor desejo. Chega a repudiar o último gole. Apressa a explicação, temeroso.
— Tinha pouco açúcar.
— Sua mãe ainda não aprendeu que...
Júnior não escuta a acusação que Haroldo faz. Volta a se enfiar no travesseiro. Está quente, abafado. A mulher vigia o bolo. Haroldo, da janela, olha a única árvore da rua, defronte à sua casa, tentando adivinhar que árvore é aquela. Júnior, no quarto, expira forte o ar quente que engolira. O calor das quatro e meia convida a uma praia. Mas a praia está tão longe do chão onde hoje mora... Vai para a janela.
— Oi, filho. Tarde bonita, né?
O filho, da outra janela, concorda. Ficam os dois assim olhando o chão, a rua, o espaço.
— Pai, me dá uma prancha?
À tarde traz-lhe não apenas a prancha pedida, mas outras coisas que não tinham sido solicitadas. A mulher acha errado acostumar o filho desse modo.
— Presente, agora, só no aniversário e no Natal.
A promessa à mulher fica na promessa. Cada noite traz uma coisa para o garoto.
— Comprei um tênis lindo pro Júnior.
Quase ofende o garoto entregando-lhe um par de tênis de mau gosto.
— Que tal?
— Bacana.
O garoto põe o tênis a contragosto e sai, sem conseguir esquecer que se calça de azul. Depois que o garoto sai, vai para a janela esperar que ele apareça na calçada, lá embaixo.
— Está um homenzinho.
— É. Precisa é melhorar as notas.
— Paciência.
Poupa o menino de queixas e reclamações. Tem sempre uma explicação para os erros.
— Coisa de menino... é uma criança.
Aceita os defeitos e os rotula de "coisa natural da idade". É seu filho único e seu único amigo. A mulher, um pouco por ciúme, critica este modo de proceder.
— O Júnior está mal acostumado. E você...
— Eu sei o que estou fazendo, Petrônia.
Mudou, recentemente, para uma rua do Encantado. Quer que o filho cresça com a liberdade que ele tinha na idade do menino: jogando peladas na rua, soltando pipa, fazendo bucha para balão. Argumenta, explicando a mudança:
— Quero que o Júnior tenha uma infância feliz como a que eu tive.
A mulher não tem opinião. Quando tem, evita emiti-la. É dominada pelo dominante. No caso da mudança, nem ao menos foi consultada.
— Copacabana é uma perdição. Meu filho não vai ser criado neste inferno.
A mulher conformou-se. Arrumou as malas, encaixotou a louça e, submissa como sempre, trocou o apartamento da zona sul pela casa do Encantado, com 64 metros quadrados de terra mal cuidados a que ele chama de quintal.
— Copacabana era tão bom...
Foi a única ponderação da mulher. Inútil.
— Eu é que sei. Garoto gosta de espaço. Eu, que fui garoto, é que sei. Nada vale o que ele vai ter aqui na rua. Não é, Júnior? Espaço! — enche a boca.
Júnior, 14 anos, confirma sem palavras. Em cada casa da rua há, pelo menos, três meninos. O filho, agora, terá uma "turma", igual à do pai, no passado.
Ali estão há duas semanas. O menino ainda não fez amizades. Prefere a janela, de onde acompanha a pelada.
— Que tal morar aqui, Júnior?
Ele abraça o filho na janela, incomodando-o com o aperto. O menino demora a responder:
— Bom.
Bate nas costas do garoto, instigando-o a fazer amigos, na rua cheia de espaço e tristeza.
— Anda, Júnior. Vai brincar com a molecada.
O garoto não se move. Fica na janela. Dali ele vê o pai meter-se na pelada e conversar com o pretinho que joga melhor.
— Vem, filho. Tem vaga pra você.
O menino vai. Por obediência, apenas. A mulher, na cozinha, faz um bolo de chocolate, para encher o tempo. Agora é ele quem está na janela.
— Olha o ponta desmarcado. Levanta a cabeça quando pegar a bola, Júnior.
O garoto joga mal. É mantido no time pelos picolés que o pai compra para os 14 da pelada. Desembrulha o picolé do filho, dando-o já sem papel e sem perguntar se era de groselha que ele queria.
A televisão desligada aumenta as horas do domingo.
— Amanhã o homem vem instalar a antena.
A mulher gosta da notícia. Vai recomeçar a acompanhar a novela. Não têm mais telefone.
— Sem telefone é outra coisa, não é? Outro sossego...
A mulher olha a mesa onde, em Copacabana, havia um telefone e concorda. Ele senta na sala, no sofá forrado de plástico, com o rádio ligado no futebol. O filho volta com um pequeno corte na perna.
— O que foi isso?
— Nada.
— Nada, como? Está sangrando.
— Foi a unha de um garoto que...
A mulher consegue evitar que ele vá tomar satisfações. É difícil fazer com que ele não se meta nos problemas dos garotos. Demora, mas convence. Ele fica, porém, visivelmente aborrecido. Faz curativo na perna do Júnior.
— Está ardendo?
Não está, mas ele sopra forte, segurando a perna do garoto onde colocara o mertiolate. Atribui à contusão a tristeza do filho.
— Vamos fazer um galinheiro? — propõe.
O garoto consegue evitar o convite que lhe soara como determinação. Mete-se no quarto e se deita sem intenção de dormir. Chega da cozinha o ruído do liquidificador.
— Em Copacabana mora-se em gavetas. Aqui, mora-se no chão. Aqui há chão. O Júnior gosta de espaço.
A mulher não responde. Ele recebe o silêncio como concordância.
— Daqui a uma semana está enturmado...
Vai ao portão. O paletó de pijama aberto permite que ele acaricie os pêlos do peito, fazendo círculos com a mão aberta. Quase se felicita pela ideia de mudar para aquela rua.
— Boa tarde.
O vizinho que passa não responde.
— Não ouviu. — diz-se, explicando.
Os dedos, livres dentro do chinelo folgado, abrem-se confortavelmente. O palito do fósforo passeia nos lábios, vez por outra chupado, quase sempre mordido.
Petrônia põe o bolo no forno, faz um café. A tarde entra em coma, o domingo prepara-se para dormir.
— Cafezinho, Haroldo.
— Opa. Chegou na hora; estava pensando nele.
A mulher serve o café na bandeja, como se ele fosse patrão.
— O Júnior não quer um cafezinho?
— Ele não gosta, Haroldo.
— Quem disse? Põe uma xicrinha pra ele...
A mulher faz.
— Cafezinho, filho?
Estende a bandeja para o garoto, onde a xícara fumaça. O rapaz bebe, sem o menor desejo. Chega a repudiar o último gole. Apressa a explicação, temeroso.
— Tinha pouco açúcar.
— Sua mãe ainda não aprendeu que...
Júnior não escuta a acusação que Haroldo faz. Volta a se enfiar no travesseiro. Está quente, abafado. A mulher vigia o bolo. Haroldo, da janela, olha a única árvore da rua, defronte à sua casa, tentando adivinhar que árvore é aquela. Júnior, no quarto, expira forte o ar quente que engolira. O calor das quatro e meia convida a uma praia. Mas a praia está tão longe do chão onde hoje mora... Vai para a janela.
— Oi, filho. Tarde bonita, né?
O filho, da outra janela, concorda. Ficam os dois assim olhando o chão, a rua, o espaço.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
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