segunda-feira, 18 de abril de 2022

Hans Christian Andersen (O jardim do paraíso)


Era uma vez um príncipe que tinha a maior e mais linda coleção de livros do que qualquer outra pessoa no mundo, e cheio de belíssimas gravuras reproduzidas em placas de cobre.

Ele podia ler e conseguir informações sobre os povos de todos os países, mas ele não encontrava nenhuma palavra para explicar a situação do jardim do paraíso, e isto era exatamente o que ele mais queria saber. Quando ele era ainda um belo garotinho, mas com idade suficiente para ir à escola, a avó dele havia lhe dito que cada flor no jardim do paraíso era um bolo doce, e que os pistilos das plantas eram ricos em sucos, onde a história da vida de uma flor estava escrita, numa outra a geografia ou as tabelinhas de fazer multiplicação, de modo que aqueles que queriam aprender suas lições tinham apenas de comer alguns pedaços de bolos, e quanto mais comiam, mais sabiam sobre história, geografia ou tabelas de multiplicação.

Ele acreditava em tudo até então, mas conforme ele foi crescendo, e aprendia cada vez mais, ele ficou sábio o bastante para entender que a beleza do jardim do paraíso deveria ser muito diferente de tudo aquilo. "Oh, porquê Eva teria colhido o fruto da árvore do conhecimento? Porquê Adão teria comido o fruto proibido?” - pensava o filho do rei: "Se eu estivesse lá isso jamais teria acontecido, e não haveria pecado no mundo."

O jardim do paraíso era a sua maior preocupação até que ele completou dezessete anos. Um dia, ele estava caminhando sozinho na floresta, o que ele gostava muito de fazer, quando de repente ficou noite. As nuvens ficaram mais densas, e a chuva começou a cair como se o céu fosse uma imensa tromba d’água, e à meia noite tudo estava tão escuro como o fundo de um poço, algumas vezes ele escorregava sobre a relva lisa, e caía sobre pedras que se projetavam sobre o chão rochoso. Em todos os lugares a água pingava, e o pobre do príncipe não tinha um único fio de cabelo seco. Ele era obrigado a subir grandes blocos de pedra, com água vertendo dos musgos espessos. Ele começou a se sentir muito fraco, quando ouviu um barulho muito estranho, e viu diante dele uma imensa caverna, de onde vinha um clarão de luz.

No meio da caverna um fogo imenso estava queimando, e um cervo nobre, com seus chifres em formato de galhos, estava entre os troncos de dois pinheiros. Ele se movimentava lentamente diante da fogueira, e uma velhinha, tão grande e forte como se fosse um homem disfarçado, se sentou perto da fogueira, e jogava um pedaço de madeira atrás do outro dentro das chamas. "Aproxime-se," disse ela para o príncipe, "sente-se perto do fogo e seque-se um pouquinho."

"Aqui tudo está seco," disse o príncipe, enquanto procurava um lugar no chão para sentar.

"Vai piorar quando os meus filhos chegarem," respondeu a mulher, "você está agora na caverna dos Ventos, e os meus filhos são os quatro Ventos do céu: você consegue entender isto?"

"Onde estão os teus filhos?" perguntou o príncipe.

"É difícil responder perguntas bobas," disse a mulher. "Meus filhos são pessoas muito ocupadas, eles estão brincando de jogar peteca com as nuvens lá em cima no salão do rei," e ela apontava para cima.

"Oh, é verdade," disse o príncipe, "mas a senhora fala de uma maneira bruta e não é tão gentil como as mulheres com que estou acostumado."

“Sim, isso acontece porque não tenho nada para fazer, e sou obrigada a ser dura, para poder educar os meus filhos, e estou conseguindo, porque eles são cabeças-dura. Você está vendo aqueles quatro sacos pendurados na parede? Bem, eles tem muito medo daqueles sacos, como você costumava ter do rato que ficava atrás do espelho.

“Pois fique sabendo que eu consigo dobrar os garotos, e os coloco dentro dos sacos sem qualquer resistência da parte deles. Eles ficam lá dentro, e não ousam sair até que eu permita que eles façam isso. E aí está chegando um deles."

Era o Vento Norte que estava chegando, trazendo com ele o frio, numa rajada cortante, grandes pedras de granizo faziam estrondos ao tocar o chão, e flocos de neve espalhavam-se em todas as direções. Ele usava trajes e um manto feito com pele de urso, seu boné de pele de foca cobria as orelhas, longos pingentes de gelo caíam de sua barba, e um granizo após o outro rolavam do colarinho de sua jaqueta.

"Não chegue muito perto do fogo," disse o príncipe, "ou as suas mãos e o rosto ficarão queimados pelo gelo."

"Queimados pelo gelo!" disse o Vento Norte, dando uma forte gargalhada, "Ora, o gelo é o meu maior prazer. Que coisa mais insignificante você é, e como você encontrou o caminho para a Caverna dos Ventos?"

"Ele é meu convidado," disse a velhinha, "e se você não ficou satisfeito com a explicação, pode entrar dentro do saco. Está me entendendo?"

Isso resolveu a situação. Então, o Vento Norte começou a contar suas aventuras, de onde ele tinha vindo, e onde ele tinha estado o mês inteiro.

"Venho dos mares polares," disse ele, "Estive na ilha dos Ursos com os caçadores de morsa da Rússia. Sentei-me e dormi ao comando do navio, quando eles navegaram do Cabo Norte. Algumas vezes quando eu acordava, os pássaros da tempestade voavam agarrados nas minhas pernas. Eles são pássaros curiosos, eles fazem um movimento com suas asas, e lá vão eles com suas asas estendidas voando cada vez mais alto."

"Não fique aí inventando histórias," disse a mãe dos ventos, "que tipo de lugar é essa Ilha dos Ursos?"

"Um lugar muito lindo, com uma pista de dança tão lisa e plana como se fosse uma placa. Neve meio derretida, parcialmente coberta de musgo, pedras afiadas, com esqueletos de morsas e ursos polares, espalhados por toda parte, com seus braços e pernas cobertos por uma vegetação verde. Parecia que o sol jamais havia estado naquelas paragens. Soprei suavemente, para desfazer a névoa, e de repente encontrei uma pequena cabana, que havia sido construída com a madeira de uma destruição, e era coberta com as peles de morsas, com o lado da carne voltado para fora, tinha uma aparência verde e vermelha, e no teto estava sentado um urso rosnando. Depois eu fui para o litoral, para procurar os ninhos das aves, e vi os filhotinhos ainda pequeninos abrindo suas bocas e gritando por comida.

"Soprei dentro de suas pequenas gargantas, e rapidamente eles pararam de gritar. Mais adiante, estavam as morsas com cabeças de porco, e com dentes que tinham um metro de comprimento, rolando em cima de enormes micróbios."

"Você sabe contar histórias muito bem, meu filho," disse a mãe, "quando escuto você, fico morrendo de curiosidade."

"Depois disso, – continuou o Vento Norte, – começou a temporada de caça. O arpão penetrou o peito da morsa, de modo que um pequeno jato de sangue jorrava como uma fonte, respingando sobre o gelo. Então eu pensei nas brincadeiras que gostava, e comecei a soprar, e movimentar meus próprios navios, balançar os enormes icebergs, para que eles esmagassem os barcos.

"Oh, como os navegantes gritavam e reclamavam! Mas eu gritava mais alto que eles. Eles eram obrigados a jogar fora suas cargas, e jogar fora suas caixas e morsas mortas no gelo. Depois eu espalhava neve em cima deles, e os deixava em seus barcos destruídos à deriva para o vento sul, bebendo água salgada. Eles jamais retornarão para a Ilha dos Ursos."

"Então você tem agido mal," disse a mãe dos Ventos.

"Mas eu deixei que outros vivessem para contarem as coisas boas que eu fiz. – respondeu ele - Mas aí vem o meu irmão do Oeste, eu gosto mais dele, porque ele traz consigo o cheiro de mar, e o ar fica fresco e gelado quando se aproxima."

"Seria ele o pequeno Zéfiro?" perguntou o príncipe.

"Sim, ele é o pequeno Zéfiro, – disse a velhinha,  – mas agora ele não é mais pequeno. Em anos passados ele era um lindo garoto, agora, tudo isso já passou."

Ele entrou, parecia um homem selvagem, e usava um chapéu velho para proteger a cabeça de ferimentos. Nas mãos ele trazia um açoite, feito de um pé de mogno retirado das florestas americanas, ele não levava qualquer açoite.

"De onde você vem vindo?" perguntou a mãe.

"Estou vindo do coração das florestas, onde as sarças espinhosas formam cercas vivas densas por entre as árvores, onde as cobras d’água serpenteiam entre a relva úmida, e as pessoas jamais ouviram falar."

"O que você estava fazendo lá?"

"Eu estava olhando o rio profundo, e ficava olhando quando ele jorrava no meio das rochas. As gotas d'água subiam até as nuvens e ficavam brilhando no arco-íris. Vi o búfalo selvagem nadando no rio, mas a maré forte o levou embora misturado com um bando de patos, que voaram pelos ares quando as águas avançavam com força, deixando que o búfalo fosse arremessado sobre a catarata. Isso me deixava tão feliz, então eu provoquei uma tempestade, que arrancava as árvores mais velhas pela raiz, e elas iam flutuando rio abaixo."

"E o que mais você fez?" perguntou a velhinha.

"Corri que nem louco pelas savanas, fiz carinhos nos cavalos selvagens, e sacudi os cocos derrubando-os de cima das árvores.

"Sim, eu tenho muitas histórias para contar, mas eu não preciso dizer tudo o que sei. A senhora sabe disso muito bem, não sabe, minha velhinha?"

E ele beijou a sua mãe de uma maneira tão bruta, que ela quase caiu para trás. Oh, ele era, de fato, um bom menino. Agora, quem se aproximava era o Vento Sul, usando um turbante e um roupa de beduíno flutuante.

"Como está frio aqui! – disse ele, jogando mais lenha na fogueira - É fácil perceber que o Vento Norte chegou aqui antes de mim."

"Porque aqui está quente o bastante para assar um urso," disse o Vento Norte.

"Você é mesmo um urso," disse o outro.

"Vocês querem ser colocados dentro do saco, vocês dois?" disse a velhinha. "Sente-se, agora, sobre aquela pedra que está ali, e me conte por onde você tem andado."

“Estive na África, mãe. Passeei com os hotentotes, que eram caçadores de leões na terra do Kaffir, onde as planícies são cobertas por uma vegetação da cor verde da oliva, e lá eu apostei corridas com os avestruzes, mas logo eu os superei em agilidade. Finalmente, cheguei ao deserto, onde ficam as areias douradas, que se parecem com o fundo do mar. E lá eu encontrei uma caravana, e os viajantes tinham acabado de matar o último camelo, para conseguirem água, eles eram um grupo muito pequeno, e continuaram sua jornada dolorosa sob o sol escaldante, caminhando sobre as areias quentes, que se estendiam diante deles, em meio ao deserto vasto e infinito.

"Depois rolei nos lençóis de areia, e rodopiei em colunas de fogo acima da cabeça deles. Os dromedários paravam assustados, ao passo que os mercadores tiravam as cafetãs por cima de suas cabeças, e se atiravam no chão diante de mim, assim como fazem diante de Allah, o deus deles. Depois, eu os sepultei debaixo de uma pirâmide de areia, cobrindo todos eles. Quando eu soprar desse jeito na minha próxima visita, o sol alvejará os ossos deles, e os viajantes saberão que outros estiveram ali antes deles, caso contrário, no deserto árido, eles não conseguiriam acreditar que isso fosse possível."

"Então, você não tem feito outra coisa além de maldades," disse mãe. "Já para dentro do saco," e, antes que ele percebesse, ela já tinha agarrado o Vento Sul, e o colocado dentro do saco. Ele ficou rolando pelo chão, até que ela sentou em cima dele, para que ficasse parado.

"Esses seus filhos são muito ativos," disse o príncipe.

"Sim," respondeu ela, "mas eu sei como corrigi-los, quando necessário, e aí vem o quarto deles."

De repente chegou o Vento Leste, vestido como se fosse um chinês.

"Oh, você vem vindo de lá, não vem?" disse ela, "Eu pensei que você tivesse ido até o jardim do paraíso."

“Estou indo para lá amanhã. - disse ele - Faz mais de cem anos que não vou lá. Acabo de chegar da China, onde fui dançar ao redor da torre de porcelana até que todos os sinos voltassem a tocar. Nas ruas havia um açoitamento público oficial, e canas de bambus eram quebradas nas costas das pessoas de todas as hierarquias sociais, da primeira até a última classe. Eles gritavam, "Muito obrigado, meu benfeitor paterno," mas eu tinha certeza de que suas palavras não vinham do coração, então eu tocava os sinos até que eles soassem: "ding, ding-dong."

“Você é um garoto malvado, – disse a velhinha – ainda bem que amanhã você estará indo para o jardim do paraíso, você melhora sempre com a sua educação quando vai lá. Beba bastante da fonte da sabedoria quando você estiver lá, e traga para mim uma garrafa bem cheia."

"Pode deixar, - disse o Vento Leste – mas, porquê você colocou o meu irmão do Sul dentro do saco? Solte-o, porque eu quero contar para ele sobre o pássaro fênix. A princesa sempre gosta de ouvir sobre este pássaro quando eu a visito a cada cem anos. Se você abrir o saco, minha mãezinha querida, eu lhe darei dois sacos cheios de chá verde e fresco que eu colhi do lugar onde ele nasceu."

"Bem, por causa do chá, e porque você é meu filhinho, eu vou abrir o saco e soltá-lo."

Ela fez isso, e o Vento Sul foi saindo devagar, parecendo muito abatido, porque o príncipe tinha visto o que ela tinha feito com ele.

"Trouxe aqui uma folha de palmeira para entregar para a princesa. - disse ele – O velho fênix, que é o único no mundo, trouxe ele mesmo para mim. Ele escreveu com seu bico toda a história durante os cem anos que ele viveu. Ela então poderá saber como o velho fênix tocou fogo no próprio ninho, e sentou nele enquanto estava queimando, como uma viúva hindu. Os galhos secos em torno do pescoço crepitavam até que as chamas surgiram e consumiram o fênix até as cinzas. No meio do fogo estava um ovo, vermelho como o fogo, que estourou fazendo um barulho estrondoso, e um pássaro saiu voando. Ele é o único fênix do mundo, e é o rei de todos os outros pássaros. Ele fez um buraco na folha que eu dei para você, e essa é a saudação dele para a princesa."

"Agora, vamos comer alguma coisa," disse a mãe dos Ventos.

Então, todos se sentaram para comemorar comendo veado assado, e como o príncipe estava sentado ao lado do Vento Leste, eles logo se tornaram bons amigos.

"Por favor, me diga," disse o príncipe, "quem é essa princesa de quem vocês estão falando! e onde fica o jardim do paraíso?"

"Ho! ho!" disse o Vento Leste, "Você gostaria de ir lá? Bem, você poderia ir voando comigo amanhã, mas eu devo lhe dizer uma coisa — nunca, nenhum ser humano esteve lá desde o tempo de Adão e Eva. Eu suponho que você tenha lido sobre eles na sua Bíblia."

"Lógico que li," disse o príncipe.

"Bem, – continuou o Vento Leste – quando eles foram expulsos do jardim do paraíso, ele veio parar aqui na Terra, mas o jardim manteve o calor do sol, o seu ar balsâmico e todo o seu esplendor. A rainha das fadas vive lá, na ilha da Felicidade, onde a morte nunca vai, e tudo é muito lindo. Eu posso levar você até lá amanhã, se você se sentar nas minhas costas. Mas, agora não diga mais nada, porque eu quero dormir." E então todos dormiram.

Quando o príncipe acordou bem cedo, de manhã, ele não ficou nada surpreso quando se viu lá no alto acima das nuvens. Ele estava sentado nas costas do Vento Leste, que o segurava com firmeza, e eles estavam tão altos no espaço que as florestas e campos, os rios e os lagos, que estavam debaixo deles, pareciam os pontos de localização de um mapa.

"Bom dia. - disse o Vento Leste – Você deve ter dormido bastante, pois há muito pouco para ver nesta região plana que estamos atravessando agora a menos que você goste de contar igrejas, elas se parecem com palitos de giz sobre um quadro verde."

Quadro verde era o nome que ele dava para os campos e prados repletos de vegetação.

"Foi muito rude de minha parte não me despedir de sua mãe e de seus irmãos," disse o príncipe.

"Eles perdoarão você, porque você estava dormindo," disse o Vento Leste, e então ele continuaram voando mais rápidos do que antes. As folhas e os galhos das árvores assobiavam quando eles passavam. Quando eles voavam sobre os mares e os lagos, as ondas subiam mais altas, e os enormes navios afundavam no meio da água como se fossem cisnes mergulhando. Quando tudo ficou escuro, ao anoitecer, as grandes cidades pareciam encantadoras, luzes jorravam por todos os lados, ora eram vistas, ora se apagavam, assim como as fagulhas desaparecem umas depois das outras em um pedaço de papel queimado.

O príncipe batia palmas de alegria, mas o Vento Leste o alertou para que não expressasse sua alegria dessa maneira, porque ele poderia cair, e de repente poderia ficar pendurado no campanário de uma igreja. A águia nas florestas escuras voava com agilidade, porém, ele voava mais rápido com o Vento Leste. O cossaco, em seu pequeno cavalo, cavalgava levemente sobre as planícies, mas, com mais leveza ainda passava o príncipe sobre os ventos do vento.

"Veja lá o Himalaia, a montanha mais alta da Ásia. - disse o Vento Leste – Logo vamos chegar no jardim do paraíso."

Então, eles viraram para o sul, e o ar ficou cheiroso com os perfumes das especiarias e das flores. Aqui, figos e romãs cresciam livremente, e as parreiras estavam cobertas com uvas azuis e púrpuras. Nesse instante, os dois desceram em direção à terra, e se deitaram na grama macia, enquanto as flores se curvavam sob o sopro do vento como se dessem as boas vindas para eles.

"Já chegamos no jardim do paraíso?" perguntou o príncipe.

"Não, ainda, – respondeu o Vento Leste - mas logo estaremos lá. Você está vendo aquela muralha de pedras, e a caverna debaixo dela, onde as parreiras de uvas ficam suspensas como se fossem uma cortina verde? É através daquela caverna que temos que passar.

"Enrole o manto ao redor do seu corpo, pois embora o sol aqui seja escaldante, mais alguns passos e ele estará frio como o gelo. O pássaro que entra voando pela porta da caverna sente como se uma asa estivesse na estação do verão, e a outra nas profundezas do inverno."

"Então, seria este o caminho para o jardim do paraíso?" perguntou o príncipe, enquanto adentravam a caverna.

Estava de fato muito frio, mas o frio logo passou, pois o Vento Leste abriu as suas asas, e elas brilharam como o fogo mais quente. E a medida que atravessavam a maravilhosa caverna, o príncipe podia ver grandes blocos de pedras, de onde escorria as águas, suspensas acima de suas cabeças, criando formatos estupendos.

Algumas vezes, o caminho era tão estreito, que eles tinham de rastejar usando as mãos e os joelhos, ao passo que outras vezes, era largo e alto, permitindo a livre passagem do ar. A aparência era o de uma capela para os mortos, coberta com organismos petrificados e órgãos silenciosos.

"Parece que estamos atravessando do vale da morte para o jardim do paraíso," disse o príncipe.

Mas o Vento Leste não dizia nenhuma palavra, somente apontava para a frente em direção a uma luz azul clara que brilhava ao longe. Os blocos de pedras criavam uma aparência nebulosa, até que finalmente pareciam com nuvens brancas ao luar.

O ar era fresco e balsâmico, como a brisa das montanhas perfumada com flores de um vale de rosas. Um rio, muito cristalino, cintilava aos seus pés, enquanto que em suas claras profundezas podiam ser vistos peixes dourados e prateados brincando nas águas brilhantes, e enguias púrpuras emitiam fagulhas de fogo a todo instante, enquanto que as folhas gigantescas dos lírios d'água, que flutuavam na superfície, tremulavam com todas as cores do arco-íris. A flor com suas cores ígneas pareciam receber o alimento da água, assim como o lampião é alimentado pelo combustível.

Uma ponte de mármore, com acabamento tão requintado, que parecia ter sido construída de laços e pérolas, conduzia até a ilha da felicidade, onde resplandecia o jardim do paraíso. O Vento Leste pegou o príncipe nos braços, e passeava com ele, enquanto as flores e as folhas cantavam canções dulcíssimas da sua infância em acordes completos e sonoros que nenhuma voz humana poderia se arriscar a imitar. Dentro do jardim cresciam árvores imensas, cheias de seiva, mas se eram palmeiras ou plantas d'água gigantescas, o príncipe não sabia.

As plantas trepadeiras penduravam-se em guirlandas verdes e douradas, como as iluminuras nas margens dos velhos missais ou retorcidas por entre as letras iniciais. Pássaros, flores, e ramalhetes pareciam entrelaçados em aparente confusão. Ao redor, sobre a relva, havia um bando de pavões, com suas caudas radiantes estendidas ao sol. O príncipe tocou neles, e descobriu, para sua surpresa, que eles não eram pássaros de verdade, mas folhas do pé de bardana, que brilhavam com as cores do rabo do pavão. O leão e o tigre, gentis e mansos, brincavam ao redor como se fossem gatos travessos entre os arbustos verdejantes, cujo aroma era como a flor perfumada da oliveira.

As plumas do pombo-torcaz brilhavam como pérolas, quando eles tocavam com suas asas a juba do leão, e o antílope, normalmente tão arredio, ficava por perto, balançando a cabeça como que desejando participar da brincadeira. A fada do paraíso, em seguida, fez questão de marcar presença. Suas roupas eram brilhantes como o sol, e seu semblante sereno explodia de felicidade, assim como uma mãe se alegra com seu filho. Ela era jovem e linda, e um séquito de garotas adoráveis seguiam atrás dela, cada uma delas usando uma estrela brilhante no cabelo. O Vento Leste ofereceu a ela a folha da palmeira, onde estava grafada a história do fênix, e os olhos dela resplandeceram de alegria.

Nesse momento, ela pegou o príncipe pela mão, e o conduziu até o palácio, cujas paredes eram ricamente coloridas, como a folha da tulipa quando está voltada para o sol. O teto tinha o aspecto de uma flor invertida, e as cores ficavam mais fortes e mais brilhantes para quem olhava. O príncipe caminhou até uma janela, e viu o que parecia ser a árvore do conhecimento do bem e do mal, com Adão e Eva passeando nos arredores, e a serpente deitada ao lado deles.

"Eu achei que eles tinham sido expulsos do paraíso," disse ele. O príncipe sorriu, e lhe falou que o tempo havia gravado cada acontecimento em um painel da janela sob a forma de uma imagem, mas, ao contrário das outras imagens, tudo o que ela representava tinha vida e movimento, — as folhas tremulavam, e as pessoas iam e vinham, como se estivessem num espelho.

Ele olhou através de um outro painel, e viu a escada do sonho de Jacó, onde os anjos subiam e desciam com suas asas abertas. Tudo o que já tinha acontecido aqui no mundo tinha vida e movimentos nos painéis de vidro, com imagens que somente o tempo conseguiria produzir. A fada agora levou o príncipe até uma sala grande e alta com paredes transparentes, através das quais a luz brilhava. Ali haviam muitos retratos, cada um parecendo mais belo que o outro — milhões de seres felizes, cujo riso e canção se misturavam com uma doce melodia: alguns deles estavam numa posição tão elevada que pareciam menores do que o menor botão de rosa, ou como os pontos de um lápis no papel.

No meio do salão havia uma árvore, com galhos suspensos, onde ficavam penduradas maçãs douradas, grandes e pequenas, que pareciam laranjas no meio das folhas verdes. Essa era a árvore do conhecimento do bem e do mal, de onde Adão e Eva haviam colhido e comido o fruto proibido, e de cada folha escorria uma gota de orvalho brilhante e vermelho, como se a árvore estivesse derramando lágrimas de sangue por causa do pecado que eles haviam cometido.

"Vamos agora pegar um barco, - disse a fada - um passeio de barco pelas águas frias irá nos refrescar. Mas nós não sairemos do lugar, embora o barco possa balançar sobre as ondas das águas, os países do mundo irão desfilar diante de nossos olhos, mas ainda assim estaremos parados."

Era realmente maravilhoso ver tudo aquilo.

Primeiro apareceram os altíssimos Alpes, cobertos de neve, e escondido pelas nuvens e os pinheiros escuros. A corneta voltou a tocar, e os pastores cantavam alegremente nos vales. Os pés de bananeiras faziam reverências com seus galhos dobrando-se sobre o barco, cisnes negros flutuavam em cima da água, e animais e flores singulares surgiam à distância na praia. A Nova Holanda, a quinta divisão do mundo, desfilava agora ao nosso lado, cheia de montanhas em segundo plano, que de longe pareciam azuis. Eles ouviram o canto dos sacerdotes, e assistiram a dança livre dos selvagens ao som de tambores e trombetas feitas de osso, as pirâmides do Egito subindo até as nuvens, colunas e esfinges, que tinham sido derrubadas e estavam sepultadas nas areias, seguiram-se por sua vez, enquanto as luzes boreais piscavam sobre os vulcões extintos do norte, num espetáculo com fogos de artifícios que jamais poderiam ser imitados.

O príncipe estava encantado, contudo, ele ainda viu centenas de outras coisas maravilhosas que poderiam ser contadas.

"Posso ficar aqui para sempre?" perguntou ele.

"Isso depende de você mesmo. - respondeu a fada – Se você não desejar o que é proibido, como fez Adão, você pode ficar aqui para sempre."

"Eu não tocaria no fruto da árvore do conhecimento, – disse o príncipe – há aqui uma abundância de frutas igualmente belas."

"Consulte o seu coração, – disse a princesa - e se você não tiver certeza da sua vontade, volte com o Vento Leste que o trouxe até aqui. Ele está prestes para voltar, e retornará para cá somente depois de cem anos. O tempo para você não parecerá maior que cem horas, mesmo assim, é um tempo bastante longo para tentações e resistências. Todas as noites, que eu me despeço de você, terei de dizer: "Venha comigo," e acenarei para você com a minha mão. Mas você não deve ouvir, nem se mover do lugar para me seguir, pois a cada etapa você achará que a sua vontade de resistir ficará mais fraca. Se uma única vez você tentar me seguir, você se veria no salão, onde cresce a árvore do conhecimento, porque eu durmo debaixo de seus galhos perfumados.

"Se você se curvar sobre mim, eu seria forçada a sorrir. Caso você beije os meus lábios, o jardim do paraíso apareceria na terra, e para você ele não existiria mais. O vento agudo do deserto ficaria uivando perto de você, a chuva gelada cairá na sua cabeça, e a tristeza e a aflição seriam a sua sorte futura."

"Eu ficarei," disse o príncipe.

Então o Vento Leste o beijou na fronte, e disse: "Seja resistente, pois somente assim nos encontraremos novamente quando cem anos tiverem passados. Adeus, adeus."

Então, o Vento Leste abriu suas asas enormes, que brilhavam como o relâmpago durante a colheita, ou como as luzes boreais de um inverno gelado.

"Adeus, adeus," repetiram as árvores e as flores. Cegonhas e pelicanos voaram atrás dele como um bando de aves, e o acompanharam até as fronteiras do jardim.

"Agora, vamos começar o baile, - disse a fada – e quando o por do sol estiver quase terminando, e eu estiver dançando com você, eu farei um sinal, e pedirei para você me seguir: mas você não deve obedecer. Eu serei forçada a repetir a mesma coisa durante cem anos, e cada vez que você passar no teste, e se você resistir, você ganhará forças, até que resistir será fácil, e finalmente a tentação será totalmente dominada.

"Esta noite, como será a primeira vez, eu alertei você."

Depois disto, a fada o levou até um salão imenso, repleto de lírios transparentes. O estame amarelo de cada flor formava uma minúscula harpa dourada, de onde vinham os acordes musicais como os tons misturados da flauta e da lira. Belas donzelas, esbeltas e graciosas na forma, e vestidas com gaze transparente, flutuavam pela dança, cantando a vida feliz no jardim do paraíso, onde a morte não podia entrar, e onde tudo florescia eternamente numa juventude imortal.

E enquanto o sol ia descendo, todo o céu ficava vermelho e dourado, manchando os lírios com tons de rosa. Então, as belas donzelas ofereceram ao príncipe vinho cintilante, e depois que ele bebeu, ele sentiu uma felicidade maior do que jamais havia sentido antes. Nesse instante, o fundo do salão se abriu e a árvore do conhecimento apareceu, rodeada por um halo de glória que quase o deixou cego. Vozes, suaves e melodiosas, como as de sua mãe, soaram-lhe aos ouvidos, como se ela estivesse cantando para ele, "Meu filho, meu filho querido." Então a fada fez sinal para ele, e disse com doce encantamento: "Venha comigo, venha comigo." Esquecendo a promessa, esquecendo-a mesmo na primeira noite, ele correu em direção a ela, enquanto ela continuava a acenar para ele e a sorrir.

A fragrância ao seu redor tomou conta dos seus sentidos, a música das harpas soavam mais fascinantes, enquanto que em torno da árvore surgiam milhões de faces sorridentes, acenando e cantando. "O homem deve saber tudo, o homem é o senhor da terra." A árvore do conhecimento não chorava mais lágrimas de sangue, pois as gotas de orvalho brilhavam como estrelas cintilantes. "Venha, venha," continuava aquela voz emocionante, e o príncipe seguia o chamado. A cada passo suas faces brilhavam, e o sangue desenfreadamente afluía-lhe pelas veias.

"Eu devo seguir," exclamava ele, "não é pecado, não pode ser, seguir a beleza e a alegria. Eu apenas quero vê-la dormir, e nada acontecerá a menos que eu a beije, e isso eu não farei, porque eu tenho força para resistir, e firmeza em meus desejos."

A fada jogou fora seus trajes deslumbrantes, dobrou os galhos para trás, e num instante escondeu-se entre eles.

"Eu não pequei ainda," disse o príncipe, "e não irei pecar," e nesse momento ele empurrou de lado os galhos para continuar seguindo a princesa. Ela estava deitada e já dormia, linda como somente uma fada do paraíso poderia ser. Ela sorriu quando ele se inclinou sobre ela, e viu que lágrimas tremulavam de seus lindos cílios.

"Você está chorando por minha causa? - murmurou  – Oh, não chores, pois és a mais bela das mulheres. Agora, começo a compreender a felicidade do paraíso, sinto isso no íntimo de minha alma, em cada pensamento. Uma vida nova nasceu dentro de mim. Um minuto de tão grande felicidade vale por uma eternidade de trevas e aflição."

Ele se curvou e beijou as lágrimas que caíam de seus olhos, e tocou os lábios dela com os seus. O ribombar de um trovão, alto e assustador, ressoou aos ecos pelo ar. Tudo ao redor dele caiu em ruína. A bela fada, o jardim encantador, tudo desabava para além das profundezas.

O príncipe percebeu que tudo desaparecia na escuridão da noite até que toda aquela beleza brilhou como se fosse uma estrela na distância diante dele. Depois, ele sentiu o frio, como se fosse a morte, avançando sorrateiramente sobre ele, seus olhos se fecharam, e ele perdeu toda a sensibilidade. Quando ele acordou, uma chuva refrescante caía sobre o seu corpo, e um vento cortante batia em sua cabeça.

"Oh, meu Deus! o que foi que eu fiz? - suspirou – Pequei como Adão, e o jardim do paraíso veio parar na terra."

Ele abriu os olhos, e viu a estrela à distância, mas era a estrela da manhã no céu que brilhava na escuridão.

Nesse momento, ele se levantou e percebeu que estava nas profundezas da floresta, perto da caverna dos Ventos, e a mãe dos Ventos estava sentado ao lado dele. Ela parecia nervosa, e levantava o braço para o ar enquanto falava:

"Bem na primeira noite! - disse ela – Na verdade, eu esperava isso! Se você fosse meu filho, eu o colocaria dentro do saco." 
 
"E lá ele teria de ficar afinal. - disse um homem velho e forte, com enormes asas negras, e uma foice na mão, e cujo nome era Morte – Ele será colocado no caixão, mas, não ainda. Deixarei que vagueie pelo mundo durante algum tempo, para expiar os seus pecados, e para dar-lhe tempo de se melhorar. Porém, retornarei quando ele menos esperar. E o deitarei num caixão preto, o colocarei sobre minha cabeça, e voarei com ele para além das estrelas. Lá também floresce o jardim do paraíso, e se ele for bom e piedoso ele será admitido, mas, se seus pensamentos forem maus, e seu coração estiver cheio de pecado, ele irá afundar com seu caixão para regiões mais profundas do que o jardim do paraíso. Uma vez a cada mil anos eu irei buscá-lo, onde ele será condenado a afundar ainda mais, ou será alçado para uma vida mais feliz no mundo além das estrelas.”

Fonte:
Wikisource. Contos de Andersen. Publicado originalmente em 1838.

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