domingo, 10 de abril de 2022

Renato Frata (Um pensamento, uma viagem)

O mormaço da tarde varou a noite em plantão à minha janela, talvez para que não me esquecesse de que é verão, aliás, dos mais quentes que se tem notícia. Empurrado pelo vento morno, passou a noite a escorregar de manso pelas gretas da veneziana e com isso aqueceu meu quarto.

Na madrugada, com a fronha umedecida de suor, depois de revirar na cama qual bife em frigideira quente, me acomodei; e quietinho esperando pelo sono, um pensamento saído de não sei onde me alcançou; e com ele tomado de um quase êxtase, pude enxergá-la.

Olhos fechados na noite, a vi deitada em sua cama, emoldurada pela penumbra silenciosa do quarto sob olhares cuidadosos dos móveis que como vigilantes imobilizados, faziam a vigília.

Nesse passeio rápido de pensamento, atrevi movimentar-me pelo seu aposento. Aliás, reputo mais à curiosidade que me impulsionou que ao atrevimento propriamente dito. Tateei as paredes velando não esbarrar nos móveis-sentinelas e a passo de gato com gestos medidos, levantei do chão uma ponta caída do lençol. Aproveitei e a estendi sobre seu corpo, preocupado em não acordá-la, momento em que se mexeu e melhor se aninhou como a agradecer pela gentileza. Olhei-a com atenção apreciando sua face que estava tranquila, o que me deixou satisfeito porque seus lábios descontraídos quase sorriam. Parecia feliz no descanso após o dia de trabalho.

Não sei por que, mas da mesma forma que havia entrado, saí. Quando me vi lá fora, porém, senti-me vazio e temeroso, momento em que a sombra da solidão se aproximou com sua cara horrenda e desdentada a querer me absorver como faz todos os dias. Seus dedos finos e magros empunhavam unhas compridas que riscavam o ar em minha direção como garras de animal feroz. Como enfrentá-la se ela é muito mais forte? Inquiri.

Num lapso de covardia (ou de sabedoria?) fugindo dela, expugnei as paredes e voltei ao quarto, sondei o ambiente envolvido pelo aroma gostoso de seu perfume, aliás, que enebria e encanta, voltando a percorrê-lo devagar. O corpo, meio encolhido, parecia se comprazer sob o lençol. Talvez se deliciasse com os feixes de sonhos bons da noite.

Em pé ao seu lado, conjecturei sobre a graça e a tristeza da vida, quando uma sempre compensa a outra: não fosse o calor e a insônia, não teria havido o pensamento. Não fosse o pensamento, não teria havido a aventura noturna; e nem a consciência da necessidade de fugir do sentimento da solidão. Não fosse a aventura imaginada, perigosa, imprópria e arriscada, não teria havido o encontro, mesmo que de maneira sorrateira.

Como o pensamento viaja sem se importar com barreiras e limites e nem com acidentes geográficos, a invasão, por si só deixa de ser pecado, afinal, ninguém consegue segurá-lo.

O fato é que passei ali tempão aos pés do leito a cuidar de seu sono, querendo e não podendo me aproximar, sofrendo com a impossibilidade e me deliciando com a presença, até quando o sol se infiltrou também pelas frestas e trouxe a realidade de um novo dia.

Sorri sabendo que a solidão se afugentou com a claridade e se misturou às pouquíssimas gotículas de orvalho que a noite de verão permitiu formar.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

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