Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranquila, dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.
As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.
Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.
A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.
- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.
- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.
Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.
- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.
- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.
- Que moléstia é essa?
- A minha? Eu sofro de pele curta.
- Pele curta? - estranhou o morador.
Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:
- Entre pra cá. A casa é sua.
E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.
Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.
- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?
- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...
- Você está roncando como um trovão. Que é isso?
- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.
O outro não compreendeu, e ele explicou:
- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!
E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.
As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.
Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.
A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.
- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.
- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.
Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.
- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.
- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.
- Que moléstia é essa?
- A minha? Eu sofro de pele curta.
- Pele curta? - estranhou o morador.
Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:
- Entre pra cá. A casa é sua.
E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.
Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.
- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?
- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...
- Você está roncando como um trovão. Que é isso?
- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.
O outro não compreendeu, e ele explicou:
- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!
E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
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