sábado, 11 de março de 2023

Fabiane Braga Lima (Perdoar é necessário)

Encarei João Henrique profundamente nos olhos, eu estava nervosa ao extremo. Como de costume ele se escondeu em si. Vou dar-lhe uns bons tapas na cara, pensei. Ele se envolver com uma senhora de setenta anos? Não! Jamais ela poderia manter um caso com um adolescente. Logo o meu filho querido, que o criei como um príncipe.

— Deixe pra lá essa história, meu filho! — falei para ele, me referindo ao caso com Odete. E assim João Henrique, se afastou da mulher idosa que ele se envolveu. Mas me iludi, pois passaram uns dias e lá estava ele de caso com a libidinosa Odete. Eu soube por vias tortas, eu pressenti uma nuvem negra se formando no horizonte.

— Onde estava João Henrique? — perguntei desesperada, fazia um bom tempo que ele sairá de casa e eu não soube nada dele. Mesmo sabendo onde estava e o que estava fazendo.

— Acho que vai gostar, mamãezinha querida, e tenho uma surpresa para a senhora. — respondeu-me com um sorriso macabro, gelei o meu coração àquela hora.

— Parece que você arrumou uma namoradinha. — falei para o meu filho, mais uma vez me referindo do caso dele com Odete.

— Sim, mamãe arrumei uma namoradinha, que me ama e a amo muito! — achei estranho o tom de voz de João Henrique. Ele me deu as costas e foi para o quarto.

Ridículo, um garoto de dezessete anos, namorando uma senhora de setenta anos, isto tem um nome que é pedofilia. Agora, sim, encontrei a palavra certa, pedofilia.

Preocupada, com o meu filho, fui conversar com João Henrique. Urrei e bati na porta do quarto dele, esmurrei na verdade, até eu me lembrar que tinha a chave do quarto, no meu bolso. Ao abrir a porta me deparei com uma cena inusitada, os encontrei nus, João Henrique e Odete. Gelei e engoli em seco.

Depois só me lembro do meu vizinho, o Bastos, o policial militar me segurando, provavelmente, ele preocupado com os barulhos que vinham da minha casa, veio ver o que estava acontecendo. E só me lembro dos risos incontidos de João Henrique e de Bastos. Afinal, qual o motivo das risadas de ambos? Ainda no quarto do meu filho, com aquela cena obscena.

— Mamãe, não está bem, precisa urgentemente de um psiquiatra! — escutei o meu filho falar, parecia que ele estava a quilômetros de distâncias de mim.

Fiquei enfurecida, peguei o meu filho pelo cabelo, jogando-o contra a parede. Gritei o que Odete estava fazendo na minha casa.

— Calma, Margarete! A senhora não está bem, a dona Odete faleceu há cinco anos. — disse Bastos ainda me segurando pelos ombros.

— Mentira! — gritei a plenos pulmões.

— A senhora se lembra que vocês viviam discutiram por nada! E ela lhe pediu perdão, mas a senhora nunca a perdoou. — disse o policial Bastos em tom de conciliação.

De repente, me lembrei do trágico acidente de trânsito que vitimou Odete e o marido dela. Eu me lembrei da cena de Odete, tranquila, podando as rosas vermelhas no jardim bem cuidado do quintal da casa dela. Lembrei da cena de nós duas brigando, em vias de fato e os vizinhos vindos nos separar. Lembrei-me, também, do pedido de desculpas, de dona Odete e do perdão que eu a neguei.

O motivo de vê-la, em todos os lugares, foi porque a mágoa e o ódio permaneceram no meu âmago mais que profundo. E acredito que ela sempre estará presente, se não houver o meu perdão! Construí o meu próprio sepulcro árduo de um passado que não passou. Eu preciso buscar ajuda, ou dona Odete, ainda estará viva em minha memória. Perdoar é necessário!

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LI


 
“OSCILA O INCENSÓRIO ANTIGO“
 
Oscila o incensório antigo
Em fendas e ouro ornamental.
Sem atenção, absorto sigo
Os passos lentos do ritual.

Mas são os braços invisíveis
E são os cantos que não são
E os incensórios de outros níveis
Que vê e ouve o coração.

Ah, sempre que o ritual acerta
Seus passos e seus ritmos bem,
O ritual que não há desperta
E a alma é o que é, não o que tem.

Oscila o incensório visto,
Ouvidos cantos ‘stão no ar,
Mas o ritual a que eu assisto
É um ritual de relembrar.

No grande Templo antenatal,
Antes de vida e alma e Deus...
E o xadrez do chão ritual
É o que é hoje a terra e os céus…
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“O SOL QUE DOURA AS NEVES AFASTADAS”

O sol que doura as neves afastadas
No inútil cume de altos montes quedos
Faz no vale luzir rios e estradas
E torna as verdes árvores brinquedos...

Tudo é pequeno, salvo o cume frio,
De onde quem pensa que do alto não vê
Vê tudo mínimo, num desvario
De quem da altura olhe quanto é.
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O sol queima o que toca.
O verde à luz desenverdece.
Seca-me a sensação da boca.
Nas minhas papilas esquece.
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“O SOM DO RELÓGIO”
 
O som do relógio
Tem a alma por fora,
Só ele é a noite
E a noite se ignora.

Não sei que distância
Vai de som a som
Pegando, no tique,
Do taque do tom.

Mas ouço de noite
A sua presença
Sem ter onde açoite
Meu ser sem ser.

Parece dizer
Sempre a mesma coisa
Como o que se senta
E se não repousa.
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“OUÇO SEM VER, E ASSIM, ENTRE O ARVOREDO”

Ouço sem ver, e assim, entre o arvoredo,
Vejo ninfas e faunos entremear
As árvores que fazem sombra ou medo
E os ramos que sussurram de eu olhar.

Mas que foi que passou? Ninguém o sabe.
Desperto, e ouço bater o coração -
Aquele coração em que não cabe
O que fica da perda da ilusão.

Eu quem sou, que não sou meu coração?
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“OUTROS TERÃO”

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.
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“O VENTO SOPRA LÁ FORA”

O vento sopra lá fora.
Faz-me mais sozinho, e agora
Porque não choro, ele chora.

É um som abstrato e fundo.
Vem do fim vago do mundo.
Seu sentido é ser profundo.

Diz-me que nada há em tudo.
Que a virtude não é escudo
E que o melhor é ser mudo.
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UNS VERSOS QUAISQUER

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo...
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos...

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma coisa que nada já deseja...

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo...

Porque o que importa é que já nada importe...
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento...
Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
Poesias em Domínio Público

Samuel da Costa (Clarisse Cristal em noites de tempestades e frio)

Em noites de tempestade e frio
Vagueio solitária e languidamente
Pelo mítico vergal em dor
Choro e sofro
Todas as dores do mundo
Pelo amor que se foi
Por tudo que não veio
E por tudo que nunca virá

Agora, com a cidadania das nuvens totalmente revogada, em definitivo, era premente viver e viver ao máximo do possível e para além do inimaginável. E Clarisse Cristal tinha em mente o livro, “A cinza das horas”. Era pela “A cinza das horas”, que tudo tinha começado afinal de contas, pois ali seria o seu derradeiro recomeçar. A bibliotecária foi em busca do livro raro como se fosse o seu próprio Santo Graal, ou melhor, o livro seria o seu A leste do Éden?

Mas antes ela, Clarisse Cristal, queria e precisava sentir o ar fresco da luz do dia, era preciso ganhar as ruas, ela precisava sentir a leveza da claridade da luz do dia. Naquela hora extrema, a moça pouco se importou, com as muitas dúvidas e as várias e infindáveis incertezas que os novos desafios impostos diante dela naquele momento.

Ela foi até o cabideiro antigo, de imbuia cor de ébano, ao lado da porta, pegou um sobretudo preto godê inverno masculino, que estava ali, esquecido há muitas eras glaciais. Vestiu a peça que ela nem sabia de quem era, de fato e de direito, a peça estava tanto tempo ali estática, que ninguém sabia de quem era ou como foi parar ali.

Então a bibliotecária começou a saga, foi no encalço de Anna Victória, com faro apurado de uma loba faminta. Clarisse Cristal tinha o corpo em chamas e estava também em alerta total. A então obscura funcionária de uma pequena livraria e editora independente, era responsável pelo setor de avaliações e reparos de livros antigos e raros.

A bibliotecária lânguida andou até a escada, que dava acesso ao primeiro piso do prédio que abrigava a livraria e editora. Parada na beira do abismo negro, da álgida fossa abissal, ela estava estática, na segurança da continuidade mais que tranquila, da rotina imutável, em oposição atribulada vida real cotidiana, das pessoas comuns. Ali na parte superior da livraria, o seu Éden particular, a sua hierática torre de marfim. Lugar ermo onde Clarisse Cristal, desfrutava da companhia solitária, de gente inacessível, gente velha e gente morta, ela cerda de raridades caras, há muito esquecidas. A jovem bibliotecária ali estava cercada por todos os lados, ilhada de grimórios, de itens exclusivos de poucos e para poucos indivíduos privilegiados e privilegiadas. Em suma, ali estava em total segurança, longe das instabilidades do mundo liquefeito e fugaz de avalanches tecnológicas da era digital.

Clarisse Cristal, por fim, tomou fôlego e desceu as escadas de forma intempestiva e sem olhar para o que ficou para trás. A avaliadora e restauradora de livros raros geralmente evitava usar as escadas, que agora encarava com força e com coragem. Ela, a complexa bibliotecária reclusa, preferencialmente usava o elevador privativo, do prédio em anexo, onde ficava o calmo escritório da livraria e editora. Clarisse Cristal, só usava a entrada frontal da livraria, quando a loja estava para encerrar ou começar o expediente. E sempre em momentos raros, que os demais colegas de trabalho, ou poucos clientes ocasionais, a viam circular pela pequena livraria e editora independente. Só nesses raros momentos, assim por dizer, davam pela existência da jovem bibliotecária especialista, em obras antigas e raras.

Os barulhos das botas batendo com força nos degraus chamaram a atenção de todos e todas, que estavam no primeiro piso da livraria. O espanto maior foi quando Clarisse Cristal percorreu a corredor principal da livraria.

— Aonde será que vai, a nossa lacrimosa princesinha gótica? E com tanta pressa assim? A nossa querida Rapunzel, enclausurada na torre ebúrnea! — disse entre dentes Anna Victória, que estava parada debruçada no frio balcão, de mármore Carrara, no setor de embrulhos para presentes ao ver Clarisse passar.

Clarisse parou e viu o livro “A cinza das horas”, postado no meio da gélida bancada de mármore, enquanto a funcionária do setor de embrulhos tomava sem pressa um cafezinho, a embrulhadora estava atrás de Anna Victória. Clarisse notou que Anna Victória se comportava de forma afetada, como se fosse uma sofisticada e deslocada europeia, em trânsito, perdida nos suarentos trópicos, exilada em um mundo em desenvolvimento, por algum acidente do desígnio destino.

Clarisse Cristal ficou parada olhando para frente, a poucos metros da porta de entrada, esperando e esperando o que nem ela sabia, o que ao certo estava esperando. Se ela olhasse para trás, poderia ver todo o estafe (grupo de funcionários) da pequena livraria parado, sem nada entender a repentina quebra da rotina da jovem bibliotecária. Da simpática senhora negra que servia café, vestida elegantemente, passando pelo bem alinhado operador da fotocopiadora, o pequeno agrupamento de uniformizados vendedores e vendedoras e indo terminar no sofisticado subgerente da livraria, com seu paletó impecável feito sob medida. Não haviam fregueses na livraria naquele início de semana, naquele início de manhã sonolenta e outonal.

Estavam todos estáticos, esperando o desenrolar daquela cena inusitada. Clarisse Cristal então olhou para trás e se voltou lentamente para Anna Victória. A jovem bibliotecária, não estava interessada em mais ninguém, nada importava para Clarisse Cristal àquela hora extrema. A bibliotecária andou em direção da outra de forma bem lenta, levou a mão ao ar indo parar próximo ao rosto de Anna Victória. Com o dedo em riste, a jovem bibliotecária Clarisse Cristal, delicadamente afastou os longos cabelos trigais da orelha esquerda e levou os seus lábios carnudos até o ouvido, da atônita promotora sênior de vendas. Anna Victória, a vendedora sênior, era toda arrepios, naquela derradeira hora extrema, naquele momento confuso.

— Eu, minha querida, definitivamente, não tenho vocação nenhuma para as danças das aranhas! — Soprou de forma álgida e sensual, para dentro da mente da frágil Anna Victória, que corou. Clarisse voltou para sua marcha, seguiu andando de forma teatral, como se estivesse encenando, uma opereta bufa chinfrim, encenada em uma tasca qualquer.

A bibliotecária foi até a saída da livraria e foi tragada pela luz do dia, sob os olhares atônitos de todos e todas. Clarisse gostaria àquela hora que estivesse recoberta pelo manto escuro, da mais negra noite fria de inverno, banhada pela lua em sangue. Mas, o prazer do inesperado, de sentir a claridade da luz do dia, começava a atrair a antiga cidadã das nuvens. Um novo mundo se descortinava, bem diante dela, naquele exato momento, agora tudo era possível, para a jovem e corajosa Clarisse Cristal. A antiga cidadã das nuvens, a chorosa e tímida princesa gótica enclausurada na segurança da ebúrnea torre de marfim, já não existia mais. Era mesmo hora de mudar de vida, passou da hora na verdade, de experimentar novos sabores, novas sensações, respirar novos ares, sentir novos olhares e em outros lugares. A Bibliotecária sentia que tinha passado da hora, de experimentar novos cenários, com as suas mais que infinitas possibilidades.

Foi assim que Clarisse Cristal passou a pensar e agir, naquele que seria o seu ponto de virada na vida, no íntimo e na mente da jovem bibliotecária.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Michelle Golden (Como Escrever Histórias Tristes) Começando a História


1. Pense numa boa frase para começar a história.

Ela é essencial para qualquer conto e deve captar a atenção do leitor instantaneamente, deixando-o curioso e mais disposto a investir seu tempo no enredo.

Comece com uma frase que mostre a força do enredo e dê uma noção do que a história vai tratar. Se quiser tratar temas tristes, por exemplo, já deixe isso implícito no início.

Se estiver sem ideias, leia algumas das introduções das suas histórias favoritas ou faça uma pesquisa no Google, usando temos como "Introduções mais famosas de histórias e contos". Leia vários exemplos e reflita como eles funcionam: por que são eficazes? Por que despertam o interesse do leitor?

Pense, mais uma vez, no exemplo deste artigo: na narrativa, cedo ou tarde, Maria vai ter que aceitar a morte do seu cachorro. Digamos que o seu pai tenha morrido de câncer e que ela não saiba lidar com a perda e o luto. Pensando assim, escreva uma introdução que dê uma sensação de perda iminente, mas sem deixar de lado as tristezas do passado. Assim: "Maria não queria começar a chorar na aula, mas não conseguia parar de pensar que estava perdendo tudo à sua volta".

2. Crie laços afetivos estreitos na história.

Os leitores ficam mais tocados por esse tipo de relação — o que faz sentido, já que todo mundo é próximo de alguém na vida real. Quando uma história se trata da relação entre personagens, o leitor sente uma maior conexão com o texto.

Mostre quão próximos são os personagens: eles podem terminar as frases um do outro e ter uma relação de apoio mútuo em qualquer situação. Ainda seguindo o exemplo deste artigo, imagine três personagens principais: Maria, sua mãe, e o cachorro. Você pode escrever cenas nas quais Maria cuide do bichinho e mostre o quanto o ama, além de descrever a relação complicada (mas amorosa) que ela tem com a mãe.

Depois, pode mostrar um flashback breve do velório do pai da personagem, com ela ajudando a mãe a enfrentar o luto.

3. Progrida a história até chegar ao principal acontecimento triste.


Vá criando o clima para o grande evento — se for brusco demais, o leitor não vai sentir qualquer apelo emocional, já que não vai ter se "aproximado" dos personagens o bastante.

Cada cena deve ajudar na progressão da história como um todo. Quando tiver dúvidas, consulte o esboço: qual o seu clímax? Como pode levar os personagens a ele?

No exemplo do artigo, pode ser que o cachorro tenha uma crise epiléptica e precise de atendimento veterinário urgente. Nessa situação, Maria descobre que o câncer se espalhou para o cérebro. Não se concentre nas ações, e sim na história emocional. A protagonista acaba discutindo com a mãe; nesse momento, você pode mostrar a senhora ajudando a filha a se preparar para a pior das hipóteses, com a jovem evitando a verdade.

Conforme escreve as cenas, pense no cerne da história: qual o motivo da existência dos seus personagens? Cada cena deve aproximar o leitor da resposta a essa pergunta. Maria, por exemplo, pode ter que aceitar que a morte faz parte da vida. Nesse caso, tente mostrar sinais de perda e deterioração em todos os momentos.

4. Escreva o clímax depois de escrever a armação da história.

O clímax é o ponto alto da narrativa, e deve ser intenso sem parecer forçado ou
melodramático.

Lembre-se das esperanças e dos sonhos dos personagens para entender o que está em jogo. Nesse momento, por que os protagonistas estão lutando? O que acontece se eles fracassarem?

As melhores histórias envolvem momentos de descoberta, o que deveria ser universal: a personagem vai descobrir algo a respeito de si mesma ou a situação em que se encontra pode levar a um tema ou mensagem que se aplique a tudo e todos.

No exemplo do artigo, o clímax pode acontecer quando Maria e sua mãe brigarem sobre a decisão de sacrificar ou não o cachorro. À primeira vista, o que está em jogo é a vida do animal; após uma análise mais profunda, é o senso de propósito da garota. Ajudar o bichinho dá a ela uma sensação de controle sobre a inevitabilidade da morte — o que vai acabar fazendo-a entender que morrer é natural. Talvez a mãe possa dizer algo sobre essa questão durante a discussão.

Essas diferentes "camadas" podem ser excelentes para histórias tristes: além de deixarem momentos infelizes mais intensos, os leitores acabam se aproximando emocionalmente dos personagens. Assim, vai aprender algo enquanto mergulha na narrativa.

5. Escolha um final adequado para a história.

Depois do clímax, é hora de encerrar a narrativa, dando certa resolução ao enredo. O leitor precisa se sentir satisfeito com essa conclusão, mesmo que ela seja infeliz. Não deixe nenhuma pergunta em aberto e nem crie novos problemas.

Desenvolva o enredo até chegar ao final. O personagem deve aceitar o seu destino. Além disso, todas as cenas do clímax devem levar a uma resolução, diminuindo a tensão — nunca aumentando.

No exemplo, Maria  pode chorar e dizer à mãe que está pronta para aceitar a morte do cão.

Histórias tristes não precisam ter finais tristes. Porém, se você der uma guinada repentina nos eventos que acometem os personagens, pode dar uma sensação de inverossimilhança à narrativa. Caso queira mesmo escolher um final feliz, desenvolva-o aos poucos.

No exemplo, não diga  que o cachorro sobreviveu à doença; isso não é nada realista. Em vez disso, você pode, por exemplo, avançar a história em alguns meses e mostrar que, embora sinta falta do bicho, Maria está superando a perda e até adotou um cachorrinho novo.

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Continua… Deixando a história mais triste
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Michelle Golden, Ph.D., professora de inglês em Athens, Georgia. Conquistou seu Mestrado em Educação para Professores nas Artes da Linguagem em 2008 e recebeu seu título de Doutora em Inglês pela Georgia State University em 2015.

Fonte:
Wikihow.  
https://pt.wikihow.com/Escrever-Hist%C3%B3rias-Tristes

sexta-feira, 10 de março de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 36

 

Francisco José Pessoa (Tamanho não é documento… nem sempre)

Zé Pequeno era tratado assim mesmo, carinhosamente, pelos amigos do bairro em que morava. Dentro dos seus 1 metro e vinte, rara vez fazia-se tristonho. Um sorriso ingênuo era ponto final das inúmeras saudações que respondia no seu caminhar diário como cobrador de uma loja de confecções,

Honesto e afável no tratamento com clientes devedores, quase sempre retornava ao local de trabalho com os carnes em dia.

Numa de suas abordagens para fins laborais, bate à porta de uma cliente cujo nome não sabia pronunciar. Senhora Anneken, uma holandesa com respeitável "pé direito" - 1 metro e oitenta era pouco - após saber o porquê daquela visita, fez sala ao dócil cobrador. Justificativas dadas, carnê quitado, Zé Pequeno despede-se com um tímido cumprimento e um sorridente obrigado.

A mesma cena se repete no mês seguinte. A estrangeira, divorciada, mãe de cinco filhos, morava sozinha e sentia necessidade de conversar com alguém. Pergunta vai, resposta vem, faz com que o nosso Zé se solte mais. Foi convidado para retornar àquela casa sempre que quisesse tomar um chazinho com biscoitos.

Entusiasmado com aquele pedaço grande de mulher, Zé Pequeno não só se viciou do chá, mas também do biscoito. Embora sem estatura para tal, assumiu as funções de vigilante noturno da residência da gringa. Daí, para fazê-la companhia no leito, foi um nadinha. Tornou-se um cão de guarda da metade inferior da cama da Sra. Anneken, Trabalhava segundo sua estatura.

Depois de um ano, o modus operandi do vigilante era o mesmo. Tal fato faz lembrar a alegoria de certo filósofo. Nessa nossa república, só o rosto do Zé alcançava a entrada da caverna. Para ele, a realidade do prazer. Para Anne, sombras, nada mais. Desfaz-se o namoro.

O Bairro dos Prazeres é sacudido com a chegada de um circo mambembe. Miúda, anã graciosa, faz par artístico com o atirador de facas. O ingresso das segundas-feiras a preço popular atrai Zé Pequeno, que é atraído por aquela estrela circense de quem não tira os olhos. Encerrado o espetáculo, o cobrador, também estrela na arte de abordagem, procura Miúda que se trocava em sua tenda. Não podia bater na porta como fazia em suas cobranças. Chama-a pelo nome. Um "quem é" de espanto atravessa a lona um tanto surrada e faz eco com o nome do cobrador. Abre-se o véu.

- Sim, pois não!

- Boa noite... como já disse, chamo-me Zé... chamam-me Zé Pequeno!

Não sei se com chá e biscoitos, o certo, é que Zé Pequeno achou na medida o que queria. Até a cama de dormir. Acertou na mosca. Passou a sentir o gosto de outros lábios... o de Miúda. Deu adeus aos carnês, seguiu com a trupe, e foi pai de cinco filhos. Em cada caverna, um mistério!

Fonte:
Enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.

Luiz Otávio (Um coração em ternura…) 10


BOA FÉ

Creio em ti e sem favor…
Sabes bem que é mesmo assim!
E em mim tu crês, meu amor,
bem mais do que creio em mim!...
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COMISERAÇÃO

Poupou-me, Deus não querendo
que eu filhos viesse a ter,
pois não quis me ver sofrendo,
vendo os meus filhos sofrer...
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DESINTERESSADO

Glórias, riqueza, esplendor,
nunca te dei... e nem tive...
Porém, mais dura um amor
quando com pouco ele vive…
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DEVOÇÃO

Com tanta pureza, tanta
bondade em teu coração,
não és rainha, mas santa,
no altar da minha Paixão...
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"DIA SANTO''

Se teu amor é perfeito,
outro não vás procurar...
O "dia-santo" foi feito
para a gente o bem guardar...
= = = = = = = = =

DIAS FELIZES

Dias felizes assim,
jamais, amor, eu passei…
Valem tanto para mim
que nunca os esquecerei….
= = = = = = = = =

DÚVIDA

O que meu filho herdará?
(Esta dúvida me atrai...)
— Da mãe a franca alegria,
ou a tristeza do pai?!
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É A VIDA...

Se foi sua alma ferida,
não culpe à Vida, rapaz...
— Não é má ou boa a Vida...
É só Vida... e nada mais...
= = = = = = = = =

INCOMPREENSÍVEL

Porque Deus dá filho a alguém
que o recebe como um mal,
e o nega, às vezes, a quem
alimenta este ideal?!…
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INIGUALÁVEL

Se trazes em ti, querida,
um amor igual ao meu,
ninguém jamais nesta vida,
amor assim conheceu...
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INTROSPECÇÃO...

Sucessos n'Arte… na Clínica...
(…E a Calma que já morreu?!…)
— Não venceste a Vida, não...
A vida é que... te venceu...
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MEDO

Minha vida é tão serena,
eu sou tão feliz enfim,
que tenho medo que um dia
não seja feliz assim...
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MEU LAR FELIZ

Você viu casas maiores,
ricos lares conheceu…
Nunca viu porém, um Lar
tão feliz como este meu...
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MEU SILENCIOSO LAR

Neste Lar há tanta Paz,
e uma quietude sem par,
que em seu beiral ao Crepúsculo,
vêm as pombas descansar...
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OS BOTÕES DE ROSA

— Quem só deseja encontrar
no futuro lar; bonança,
entre rosas há de achar
um chorinho de criança...
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PUREZA

Esta manhã azulada
sem uma nuvem sequer,
faz lembrar a bem amada -
teu coração de mulher…
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RAÍZES

No teu peito, deixa o Bem
criar bem fundas raízes…
Pois quanto mais longas forem,
mais horas terás felizes...
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RECEIO

Tenho medo que esta Vida,
de lutas e desenganos,
modifique esta alma simples,
que eu carrego há tantos anos!
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SOLIDARIEDADE

(Vendo vários coqueiros unidos)

Nasceram juntos... e unidos,
olham a vida que passa,
na Ventura embevecidos,
ou enfrentando a Desgraça…
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UMA SÓ...

Deves ter uma só alma,
em qualquer ocasião...
Sê sincero embora sofras!
Traz bem puro o coração!
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ÚNICO...

Se há Lares com formosura
e coisas de mais valor,
não há Lar com mais Ventura,
nem casal com mais amor…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Franz Kafka (Diante da Lei)

Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixa-lo entrar. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar.

 – É possível! – disse o porteiro - Mas não agora.

A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. O guarda vê isso, ri-se e lhe diz:

– Se tão grande é teu desejo, experimenta entrar apesar de minha proibição. Mas lembra-te de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas. Entre salão e salão também existem guardas, cada qual mais poderoso que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não posso suportar seu aspecto.

O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, pensa ele, mas ao observar o guarda, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar.

O guarda dá-lhe um banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar, e cansa ao guarda com suas súplicas. Com frequência o guarda mantém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar.

O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz:

– Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço.

Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece-se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmura para si. Retorna à infância, e como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até as pulgas de seu abrigo de pele, também suplica as pulgas que o ajudem e convençam o guarda. Finalmente sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas em meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei.

Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formou. Faz sinais ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte endurece seu corpo. O guarda vê-se obrigado a abaixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estaturas entre ambos aumentou bastante com o tempo, para detrimento do camponês.

– Que queres saber agora? – pergunta o guarda - És insaciável.

– Todos se esforçam por chegar à Lei, – diz o homem - como é possível então que durante tantos anos ninguém mais do que eu pretendesse entrar?

O guarda compreende que o homem está para morrer, e para seus desfalecentes sentidos percebam suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz trovejante:

– Ninguém podia pretender isso, porque esta entrada era somente para ti. Agora vou fechá-la.

Fonte:
Franz Kafka. Na colônia penal. Publicada originalmente em 1919.
Disponível em Domínio Público.

Michelle Golden (Como Escrever Histórias Tristes) 1. Fazendo um Esboço da História


Você curte histórias tristes, que partem o coração? Então, pode começar a escrever por conta própria. O processo pode ser complicado, já que é muito fácil pender para o lado melodramático. Além disso, não é legal escrever nada só por querer soar trágico; concentre-se em desenvolver uma história interessante e com personagens fortes para se conectar mais com os leitores. Comece fazendo um esboço no qual pense em possíveis temas, e depois estruture o texto seguindo os elementos básicos da literatura. Depois de tudo, coloque a mão na massa.

Fazendo um esboço da história

1. Escreva em fluxo de consciência sobre o sentimento da tristeza.


Antes de começar a história em si, você vai precisar de inspiração. Pense em coisas tristes e reserve alguns minutos para anotar tudo em um papel, falando também sobre situações infelizes.

As pessoas ficam tristes quando passam por certas mudanças na vida, como o fim de amizades e outros relacionamentos, a perda de entes queridos etc. Além disso, eventos pequenos também causam o mesmo efeito, como perder um animal de estimação, ter que mudar de cidade e afins. Pense no que lhe traz infelicidade. Que pensamentos e emoções você associa a sentimentos negativos?

Enquanto escreve, pense nas suas experiências pessoais com a tristeza. Por exemplo: quando foi que ficou mais triste na sua vida? Por quê? Talvez consiga ser a inspiração para a própria história.

2. Busque inspiração.

A melhor maneira de se tornar um bom escritor é ler mais. Para aprender a criar belas histórias, você vai ter que ler materiais com temas e enredos tristes.

Peça indicações de contos e histórias tristes aos seus amigos e professores e faça uma leitura ativa dos materiais, prestando atenção à construção dos enredos e dos personagens: como as histórias começam? Como terminam? Por que você sente uma conexão emocional com elas?

Preste atenção às partes que funcionam nessas histórias. Nesses textos, há pouco espaço e tempo para captar a atenção do leitor. Conforme lê as obras de referência, preste atenção à introdução: como o autor prende a sua atenção? Onde a história começa? Muitos enredos começam depois que determinados eventos ou ações importantes já aconteceram, e acabam falando sobre eles por meio de flashbacks ou até insinuações nos diálogos dos personagens.

3. Aprenda a começar a história.

Antes de escrever, você deve se familiarizar com a estrutura básica do texto. Histórias são compostas por três grandes arcos, que aglomeram outras partes inferiores: a armação, a confrontação (que inclui o clímax) e a resolução.

A armação é o início da história. É nela que o autor explica quem é o protagonista e o que ele está fazendo quando o enredo começa. Nessa parte, há uma exposição breve de detalhes, cuja intenção é captar a atenção dos leitores.

Na confrontação, o protagonista enfrenta conflitos que fazem a história progredir. Esses conflitos são essenciais para o enredo e, em uma história triste, devem envolver alguma tragédia.

Por exemplo: a personagem principal está cuidando do seu cachorro, que está doente. Ela pode levá-lo ao veterinário e descobrir que a situação é pior do que esperava e, assim, passar a enfrentar os desafios à sua frente.

4. Faça o esboço geral da história depois de entender a sua estrutura básica.

Escreva como o enredo vai começar, qual vai ser o dilema do personagem principal e o clímax, e como a situação vai se resolver.

Esse esboço pode ser breve e não precisa de frases completas. Você só tem que ter uma boa noção dos eventos básicos que vão acontecer. Por fim, separe-o nos três elementos citados acima — a menos que siga outra estrutura.

Você pode separar as estruturas do esboço com números e letras. Títulos mais importantes, como "armação", podem ser trocados por números romanos; os aspectos mais específicos que se encaixam nessa parte, por sua vez, podem ser organizados por letras ou números normais.

Por exemplo: "I. Armação, a. Apresentar Maria".

Voltemos ao exemplo deste artigo para esclarecer a questão do esboço.

Você pode começar com algo assim: "Armação, a. Apresentar Maria, chorando na sala de aula, b. Triste porque está pensando no câncer de seu pai, c. Volta para casa sozinha (sua mãe está trabalhando) para cuidar do cachorro, que está doente".
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Continua… Começando a História
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Michelle Golden, Ph.D., professora de inglês em Athens, Georgia. Conquistou seu Mestrado em Educação para Professores nas Artes da Linguagem em 2008 e recebeu seu título de Doutora em Inglês pela Georgia State University em 2015.

Fonte:
Wikihow.  
https://pt.wikihow.com/Escrever-Hist%C3%B3rias-Tristes

quinta-feira, 9 de março de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “02”

 

Ana de Castro Osório (Solteirão)

A inesperada morte do velho doutor Mendes fez-me volver os olhos um bom par de anos atrás — a quando criancinha gulosa lá ia ver passar as procissões e beber a minha xícara de leite com sopas de biscoitos caseiros.

Essa morte rastejou-me na alma uma pequena sombra de melancolia, não que eu amasse muito esse velho, nem que a sua falta seja desventura para alguém, mas é que os sinos, dobrando numa pardacenta tarde de fevereiro, são de uma tamanha tristeza!...

Com uma persistência dolorosa de choro, as badaladas sucediam-se atirando para o espaço os seus pesados lamentos — únicos que acompanharam o doutor Mendes na sua primeira noite do além.

Morreu, pobre velho inútil, despertando apenas a irônica piedade que inspiram aqueles cuja alma subalterna não soube criar uma família nem chegou à consciente bondade dos fortes.

Ninguém o estimava já. Outrora havia inspirado medo como mandão de aldeia; diziam-no vingativo e cruel nos tempos áureos do seu poderio... Por fim, esse poder era uma triste caricatura.

...Porque — eu ainda lhes não disse?— fazem-me tristeza as caricaturas. D. Quixote é para mim mais comovente do que Jocelin.

Em novo fora o doutor Mendes um feliz conquistador de criadas e caseiras, que olhavam agora para os filhos grosseiros e brutais, encarquilhando os olhos cúpidos, julgando-os possíveis herdeiros da bela fortuna do velho. Tudo podia ser; se ele não tinha herdeiros forçados!

E lá ia vivendo, certo em todas as festas, imaginando-se imponente à força de tesura, o bigode branco cortado em escova, a calva luzidia, a face sanguínea. Dava realce às festas — diziam rindo chalaças aqueles que lhe tinham tirado o bastão de comando, deixando-o, mono de palha, para a figura de impostor

Estou a vê-lo, o senhor doutor, com a sua casaca pré-histórica, lustrosa, de um feitio único; o lenço de Alcobaça, azul escuro, com pintinhas brancas, a sair dos bolsos; cumprimentando receoso, estendendo apenas dois dedos gordos e vermelhos; soprando contente a cada palavra...

Levava a umbela (guarda-chuva) em todas as procissões e na minha poderosa imaginação infantil aquilo engrandecia-o a tal ponto que o revia no céu acompanhando as almas purificadas ante o trono de ouro do Padre Eterno.

Se caiu de tão alto no meu conceito, não foi dele a culpa, que impassível continuou ele a sua vida quase sagrada entre o incenso dos turíbulos e o cheiro fresco do rosmaninho — eu é que mudei, infelizmente! Porque não detemos nós a vida; porque não conservamos o nosso espírito na meia alucinação doce da infância? Se vale a pena isto!... Andar a primeira parte da vida a construir altares, a ramalheta-los, a venera-los com todo o nosso entusiasmo; gastar outro tanto tempo a destruí-los; e o resto da vida passar a chorá-los! Não, não acho que vá bem assim o mundo! Ou as crianças têm que nascer com a sabedoria dos velhos ou os velhos ficarem com a ingenuidade das crianças. Quanta tristeza se pouparia a certos espíritos por demais vibráteis!...

Assim, eu escusava de sofrer vendo a pobre cabeça do velho doutor Mendes, que diziam inteligente, ser agora uma coisa estéril e oca. O seu risinho infantil, em hi, hi, hi, como dava uma prova dos frágeis juízos humanos! E tinha sido terrível em vinganças do tempo dos Cabrais, ele que hoje fazia rir as crianças!

A rodear o idoso doutor Mendes fazia-se uma atmosfera de coisas envelhecidas e desbotadas. A sala de recepção — forrada a panos de Arrhas, com ingênuas cenas da Bíblia, onde as cores já murchas se confundiam e empalideciam suavemente a dar um tom uniforme à filha dos Faraós salvando um esperto Moisés e ao seu terrível pai afogando-se nas justiceiras águas do Mar Vermelho — abria-se lá pelas festas às raras visitas. Impunha respeito com os seus tetos altos, o delgado friso dourado a dividir os panos, as suas doze cadeiras formadas aos lados do sofá incomodo como um potro inquisitorial, o indispensável tremó* e espelho a encimá-lo.

Logo ao entrar no pátio, à noite sempre iluminado esperando visitas problemáticas, uma gélida impressão de silêncio nos envolvia. Subia-se meio receoso a escadaria de pedra, a abrir-se nobremente em dois lances, como um velho amigo que nos recebe de braços abertos. Essas belíssimas escadas das casas antigas, que dão bem a nota carinhosa do nosso gosto pela hospitalidade, eram mais uma frisante ironia naquele interior fechado, esquecido, só de longe em longe visitado por indiferentes.

Entrava-se com medo na sombria casa e esperava-se, em silêncio, que os donos aparecessem. Passado um tempo, que nos parecia infindável, vinham, as quatro manas — miudinhas, desbotadas elas também, muito parecidas umas com as outras, falando baixo, repetindo todas o que dizia a mais nova, sentenciosamente, a modos de oráculo. Muito devotas, um grande respeito pelo mano doutor, elas lá iam todos os domingos, em carreirinho de formigas, à missa pacata da freguesia. Muito velhinhas, com antigos enfeites na cabeça, vestidos de seda passados de modas há tempos imemoriais, lencinhos de renda no pescoço, restos de antiga garridice, cheirando a alfazema e a cânfora.

Como isto vai longe, perdido no montão de saudades que me enchem a memória; e como eu sinto ainda toda a impressão de poeirento, de velhice, que me tomava toda quando as ia visitar cerimoniosamente! Porque o tempo já ia longe em que a minha inconsciente criancice ousava penetrar sem receio naquele túmulo. O tempo das procissões e do leite frio passara com a minha primeira infância e com as passeatas à igreja para ver as mudanças de toaletes que Nossa Senhora sofria de cada vez que a passeavam em procissão e dolorida.

E ainda hoje elas coram e baixam os olhos admirando a imoralidade que vai por esse mundo.— “Tudo perdido, tudo perdido, manas...”— dizia a mais nova, fechando os olhos a cada palavra.— “É verdade, é verdade, é verdade...”— respondiam as três a um tempo.— “Ainda bem que o mano não quis casar!... Nem nós também, que fomos bastante pretendidas!...”— “É verdade, é verdade, é verdade!”— fazia o coro.— “Que modas, santo Deus! Os homens cruzam a perna diante das senhoras e apertam as mãos!! Que gente, que imoralidade!...”— E as outras abanavam a cabeça afirmativamente, enquanto o doutor Mendes, à janela, lia a Nação, escondendo das boas irmãs um sorriso velhaco.

E foi ele, tão corado e gorducho, o primeiro a morrer.

A sua morte dera brado. Murmurava-se: “Afinal não fizera testamento? Pudera! Até na morte fazia partida. Fora sempre assim.”— E lá iam seguindo o enterro, bocejantes, sem nenhuma pena, maçantes. Enterro de indiferentes que nenhum respeito contêm no seu aborrecimento.

As pobres irmãs, mirradinhas, gemiam frouxos lamentos. Tão velhinhas, tão longe deste mundo — nem gritos já tinham para se lamentar. Era um correr de lágrimas, sem soluços nem febre, um resignado sofrer de pálidos fantasmas.

Por suprema ironia das coisas humanas, até o enterro foi causa de riso. Do antigo mandão de aldeia, que inspirara medo e profundos ódios, apenas restava esse corpo inerte deitado numa essa (sepulcro) branca, com a fita do caixão risonhamente branca. Se ele fosse vivo como a levaria imperturbável!...

Mas os sinos lá ao longe tangiam mágoas, que se iam alastrando como nódoa de azeite na pardacenta tarde de um fevereiro triste.

Como é enervante pensar na vida assim, sem interesse pelos outros, sem nenhum grande afeto que nos chore bem alto, a fazer calar todos os risos!...

Nessa paisagem, paralisada pelo inverno, só eu parecia viver— campos de vinha contorcendo os braços esqueléticos, pinhais muito graves no seu eterno verde, o riacho a correr ao fundo do vale, e como gigantesca parede as serras violeta, escarpadas e selvagens... Ao fundo, vaporizando-se no poente, as torres alvas das igrejas lançavam pelo espaço o seu lamentoso dobre: dão!... dão!... dão!...

Uma grande amargura me afogava a alma, vinda dessa paisagem desolada, desse cair da tarde sombria, da lembrança de morte que flutuava no ar— de qualquer coisa enfim que me segredava desalentos e angústias...

A chuva começou a cair miudinha, sem ruído, no fim da tarde... Que desagradável noite essa primeira que o velho doutor Mendes passou solitário no seu túmulo, guardado pelas sentinelas esguias dos ciprestes!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Tremó = espaço de parede interior de uma residência, compreendido entre dois vãos, com espelho entre eles. (Dicionário Houaiss)

Fonte:
Ana de Castro Osório. Infelizes. Publicado originalmente em 1894
Disponível em Domínio Público

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 9

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.

A cor encarnada é guerra,
eu não venho guerrear,
venho fazer paz contigo
se me queres aceitar.
= = = = = = = = =

Adeus, querida das flores,
das flores todas querida.
Não quero dizer teu nome
pra não seres conhecida.
= = = = = = = = =

A folha da malva cheira,
cheira mais do que girame;
Meu coração só me pede,
só me pede que te ame.
= = = = = = = = =

Ai menina, pede a Deus;
que eu pedi a São Vicente,
que nos juntem a nós dois
numa casinha sem gente.
= = = = = = = = =

Alecrim, verde cheiroso,
dá-me novas de meu bem,
se ele é morto, se ele é vivo,
se está nos braços d'alguém.
= = = = = = = = =

As estrelas no céu correm,
eu também quero correr.
Por causa dos dois amantes
acabou-se o bem querer.
= = = = = = = = =

Benzinho te vou contar:
No domingo em que te vi
fiquei todo embelezado
das prendas que vi em ti...
= = = = = = = = =

Carta, vai onde te mando.
Carta, não erres a porta;
Carta, põe-te de joelhos
e espera pela resposta.
= = = = = = = = =

Coração entristecido
chega ao pé daquela flor,
perguntai-lhe assim brincando
se ela quer ser meu amor.
= = = = = = = = =

Chego a perder o juízo
de tanto plano que faço:
Do que te hei de fazer,
se eu cair no teu regaço...
= = = = = = = = =

Cravo branco, quando se abre
parece a coroa de um rei:
Eu comparo cravo branco
co'uma pessoa que eu sei!
= = = = = = = = =

Esta noite tive um sonho,
um sonho muito atrevido.
Sonhei que tinha em meus braços
a forma do teu vestido.
= = = = = = = = =

Maria me deu um cravo,
sexta-feira da paixão:
Botei o cravo no peito,
Maria no coração.
= = = = = = = = =

Menina, quando eu te vejo
fico tolo e fico mudo,
tenho febre e tremores
tenho sezões, tenho tudo.
= = = = = = = = =

Menina, tome este lenço
e não conte quem lhe deu;
Adiante vai o lenço,
atrás do lenço vou eu.
= = = = = = = = =

Meu amor é pequenino
do tamanho de um botão,
de dia trago-o no seio,
de noite no coração.
= = = = = = = = =

Meus olhos quando te viram,
meu coração te adorou,
nas correntes dos teus braços
minh'alma presa ficou.
= = = = = = = = =

Moreninha, se eu pudera
formar do mundo um altar,
nele te colocaria
para o povo te adorar.
= = = = = = = = =

Na estrada em que tu moras
todo o dia passo nela,
somente para te ver
sentadinha na janela.
= = = = = = = = =

0 gosto não tem princípio
às vezes, não tem de quê;
Gosto de ti, porque gosto,
sem mesmo saber porquê.
= = = = = = = = =

0 limão tira o fastio,
mas eu de ver não o tenho,
se tu por mim fazes gosto,
eu por ti maior empenho.
= = = = = = = = =

0 marmelo é fruta boa
se está no seu galho posto.
Ninguém me pode privar
de amor que for do meu gosto.
= = = = = = = = =

Pancada dada de jeito
mata sim, sem discussão.
Que farás tu, meu benzinho,
tu que és um pancadão?
= = = = = = = = =

Para amar e possuir
é preciso não ter medo:
Custei a me resolver
fiquei chuchando no dedo...
= = = = = = = = =

Por te querer tanto bem
Deus me há de castigar,
por te trazer no meu peito
no mais mimoso lugar.
= = = = = = = = =

Quando existe sentimento
logo a vista se revela:
Tua alma está nos teus olhos,
debruçada na janela.
= = = = = = = = =

Quando te encontro na igreja
me ponho logo a pecar...
Tenho o sentido em teu rosto,
viro as costas pra o altar.
= = = = = = = = =

Quero dizer-te o que sinto,
que és minha vida, meu tudo:
Quando chego ao pé de ti
perco a língua, fico mudo...
= = = = = = = = =

Rei nasce para o seu trono,
os peixinhos para o mar,
eu também nasci no mundo
somente pra te adorar.
= = = = = = = = =

Se correndo não te apanho,
devagar te apanharei;
Se te apanho nos meus braços
em que estado te porei!...
= = = = = = = = =

Se eu soubesse, com certeza,
que tu me querias bem,
eu iria te tirar
do poder de quem te tem.
= = = = = = = = =

Ter amores neste mundo
só quero, meu bem, contigo:
Quero saber a resposta
se também queres comigo.
= = = = = = = = =

Tudo que nasce no mundo
tem seu fim particular;
Tudo tem o seu destino,
eu nasci para te amar.
= = = = = = = = =

Tu és como a lua cheia,
és como a casa caiada,
és como a torre da igreja,
de toda a parte avistada.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.
Disponível em Domínio Público.

Irmãos Grimm (O Osso cantor)


Era uma vez um país onde houve um grande alvoroço por causa de um javali que causava grandes prejuízos aos campos dos fazendeiros, matava o gado, e com suas garras rasgava os corpos das pessoas. O rei prometeu uma grande recompensa para aquele que libertasse o reino daquela fera; mas o animal era tão grande e forte que ninguém tinha coragem de se aproximar da floresta onde vivia o temível animal. Finalmente o rei mandou espalhar a notícia dizendo que aquele que conseguisse capturar ou matar o feroz javali receberia como esposa sua única filha.

Ora, aconteceu que, viviam nesse país dois irmãos, filhos de um pobre agricultor, e que se declaravam desejosos de assumir tão perigoso desafio; o mais velho, era astuto e perspicaz, além de orgulhoso; o mais jovem, era ingênuo e inocente, e tinha um bom coração. O rei disse, “Para que vocês tenham maior chance de encontrar a fera, vocês devem entrar na floresta partindo de lados opostos.” Então, o mais velho foi para o lado onde o sol se põe, e o mais jovem foi para o lado onde o sol nasce.

Quando o mais jovem havia percorrido um pedaço do caminho, um homenzinho se aproximou dele. Ele portava em sua mão uma lança de cor preta e disse, “Eu te dou esta lança porque o seu coração é puro e bondoso; com ela você poderá atacar corajosamente o temível javali, e ele não lhe fará nenhum mal.”

Ele agradeceu ao homenzinho, colocou sobre os ombros a lança, e continuou destemidamente.

Não se passou muito tempo e ele avistou a fera, que se atirou contra ele; mas ele apontou a lança em direção ao feroz animal, e cego de tanta fúria o temível animal se atirou tão rapidamente contra ela que o seu coração se partiu em dois. Então, ele colocou a fera em suas costas e voltou para casa com ela para entregá-la ao rei.

Quando ele chegou do outro lado da floresta, deteve-se diante de uma casa onde as pessoas estavam se divertindo, bebendo vinho e dançando. Ali estava também o seu irmão mais velho, o qual, pensando que afinal de contas o javali não poderia fugir dele, decidiu também tomar um trago para criar coragem. Mas quando ele viu o seu irmão mais jovem voltando da floresta carregando a sua presa, o seu coração perverso e invejoso não lhe deu nenhum instante de sossego. Então, ele gritou, “Entre, querido irmão, descanse e te reanimes um pouco com um copo de vinho.”

O jovem, que não desconfiava de nada, entrou e lhe falou a respeito do bom e pequeno homenzinho que havia lhe oferecido a lança com a qual ele matara o javali.

O irmão mais velho lhe fez companhia até o anoitecer, e então, eles foram embora juntos, e como já estava escuro eles chegaram perto de uma ponte que passava por um rio, o irmão mais velho permitiu que o outro passasse primeiro; e quando este já havia atravessado a metade, aquele lhe deu um golpe tão forte por trás que ele caiu morto.

Ele o sepultou debaixo da ponte, pegou o javali, e o levou para o rei, mentindo que o havia matado; e com isso ele recebeu a filha do rei em casamento. E como o seu irmão mais jovem não voltou ele dizia, “O javali deve tê-lo matado,” e todos acreditaram nisso.

Mas como nada permanece oculto aos olhos de Deus, então, este ato cruel também havia de ser esclarecido.

Anos mais tarde um pastor de ovelhas que conduzia o seu rebanho pela ponte, encontrou misturado com a areia lá embaixo um osso que era branco como a neve. Ele achou que poderia fazer um bom bocal com ele, então, ele desceu, apanhou o osso, e o transformou num bocal para sua flauta. Mas quando ele soprou a flauta pela primeira vez, para seu grande assombro, o osso começou a cantar sozinho:

“Ah, meu amigo, cujo osso estais soprando!
Há muito tempo ao lado das águas enterrado estou;
Pois o meu irmão me matou por causa do javali,
E o rei, a jovem filha a ele consagrou.”

“Mas que flauta maravilhosa!” disse o pastor de ovelhas; “ela canta sozinha; Devo levá-la para o rei que é meu senhor.” E quando ele levou a flauta para o rei, ela começou novamente a cantar sua pequena canção.

O rei então, entendeu tudo, e mandou que o chão debaixo da ponte fosse cavado, e então, o esqueleto inteiro do homem assassinado veio à tona. O irmão perverso não conseguiu negar o fato, e foi amarrado dentro de um saco e afogado. Mas os ossos do homem assassinado foram levados para repousar num túmulo suntuoso dentro do cemitério.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.
Conto em Domínio Público.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 21

 



Vicente de Carvalho (Crianças)

Era o dia de S. José, daquele velho, barbudo, calvo São José, com a sua túnica vermelha caindo dos ombros, nas mãos o cajado de amendoeira milagrosamente abotoado em flores, e que, desde longínquos avós, de cuja memória já só ele restava, se mantinha como o santo predileto na devoção da família.

Era o seu dia, segundo a consagração do calendário. E, ao fundo do oratório aberto, destacado, dominando de toda a majestade da sua estatura de dois palmos uma corte de pequenas imagens secundárias, com um ramo fresco de lírios aos pés, o santo resplandecia no clarão da vela benta, piedosamente acesa em sua honra.

Ali estava ele, iluminado e glorioso, o bem-aventurado carpinteiro de Belém, escolhido por Deus, como o mais puro entre todos os homens puros, para depositário e guarda fiel da predestinada, fecunda virgindade de Nossa Senhora.

Segundo uma tradição remota e que vinha, de geração em geração, transmitida de pais a filhos, a velha e encardida imagem recebia pontualmente todos os anos, naquele dia que o calendário lhe destinava, uma singela homenagem de veneração, de confiança, e de amor, sob a forma de um ramo de lírios que se desfaziam em perfume aos seus pés, e de uma vela benta que ardia e se derretia em sua frente.

Os três pequenos, pilhando-se sozinhos, livres de qualquer intervenção adulta, tinham resolvido entre si dar uma busca ao interior do oratório, aberto. Jorge, o mais velho, concebera a ideia e dirigiu a ação. Era já um homenzinho de cinco anos, chefe natural e terrível do grupo. Fecundo em planos de travessuras, ousado na execução, distribuindo com mão forte e pródiga despojos e taponas, Jorge era acatado e seguido.

Puxou vigorosamente para junto da meia cômoda, em que assentava o oratório, uma cadeira; ergueu para esta o Joãozinho, cujos três anos eram ainda incapazes, sem apoio e sem auxílio, de altas cavalarias como essa.

— Agora você! disse com voz de comando, dirigindo-se à irmãzinha; e ajudou-a a subir. Em seguida, cumpridos os deveres de chefe, Jorge subiu por sua vez, colocando-se atrás dos outros dois.

E os três, encantados, puseram-se a examinar um por um os sagrados moradores do oratório.

Havia um São Pedro, com os olhos cheios de arrependimento de ter negado o Divino Mestre, fitando vagamente o teto. Tinha na mão a chave dourada com que abre às almas dos eleitos as portas da bem-aventurança; e, a seus pés, o galo tradicional, talhada toscamente, abria as asas desiguais, esticava o pescoço, um pescoço exagerado de cegonha, e repousava sobre a túnica azul do santo a sua crista quase quadrada. 

Fronteiro a S. Pedro, com o cordeirinho branco aos pés, a face rubicunda e moça, as pernas nuas até o joelho, S. João apoiava a mão esquerda na longa curva do seu cajado de pastor, e estendia o braço direito num gesto majestoso de bênção ou de prédica.

S. Francisco, dentro do seu comprido hábito negro, tinha um ar de suave humildade, com os olhos baixos, o rosto inclinado para o chão e emoldurado por umas enormes, incríveis barbas cor de chumbo.

Completava a coleção das pequenas imagens uma pequenina Senhora das Dores, doce figura de mãe angustiada, com o punhal simbólico cravado no coração até ao cabo, as mãos postas, os olhos aflitos e lacrimosos erguidos para o céu.

A primeira coisa que atraiu o olhar do mais pequeno foi o cordeirinho de S. João:

– Um bicho! disse ele apontando com o dedinho esticado.

– Não é bicho, corrigiu Jorge, é carneiro.

— Ele morde?

— Não, explicou o mais velho; só dá chifrada.

— Mas ele não tem chifres, interveio Vivi.

Jorge não gostou da objeção que infringia o respeito devido à sua autoridade em assuntos relativos aos animais. E retrucou:

— Tola! Ele dá chifrada com a cabeça.

— Eu tenho medo dele, disse Joãozinho.

— Não é carneiro de verdade, assegurou Jorge. Não se mexe. Quer ver?

Agarrou pelo pescoço o cordeirinho de São João, e puxou-o. A frágil massa partiu-se; e ficou solta na mão de Jorge a cabeça do animalzinho degolado.

— E agora? perguntou Vivi assustada. Eu não disse? 

Vivi, note-se, nada tinha dito, àquele respeito. Jorge, porém, era corajoso e resoluto; meteu rapidamente no bolso a parte arrancada do cordeiro, dizendo: – Não faz mal, eu escondo. Ninguém conte, hein?

Pouco preocupado com aquele incidente, tão simples e tão vulgar, o despedaçamento de um objeto, Joãozinho olhava já atentamente para o galo posto aos pés de São Pedro.

— O que é aquilo? perguntou, desconhecendo a figura mal feita.

— É uma galinha, explicou Jorge.

— Eu quero a galinha! declarou Joãozinho.

— Não, acudiu Vivi. Aquilo é do santo.

— Mas eu quero!

Jorge era generoso: arrancou e deu ao irmão o galo de S. Pedro, com as pernas partidas, e sem a crista, que ficaram pregada à túnica azul do santo. 

Vivi reparou na imagem da Senhora das Dores, por cuja face desbotada pela mágoa corriam lágrimas de sangue; e, comovida, perguntou:

— Por que será que ela está chorando?

Jorge explicou prontamente:

— Você não vê que ela está com a faca enterrada no peito?

— Coitada! murmurou Vivi. É melhor tirar a faca.

Jorge tirou a faca.

— Quem seria o mau que deu a facada? perguntou Vivi.

— Foi o barbudo! opinou Joãozinho apontando para São Francisco.

Devia ter sido mesmo: São Francisco com a sua longa túnica negra, as suas enormes, incríveis barbas cor de chumbo, era a figura mais feia da coleção.

— Com certeza foi ele! concordou Vivi.

— Foi! decidiu Jorge. Pois vai de castigo.

E agarrando S. Francisco, meteu-o, preso, no vão escuro entre o oratório e a parede.

Chegara a vez de São José, que jazia, no lugar de honra, ao fundo do oratório. Jorge, com uma erudição pitoresca, apanhada nas conversas em que a família, de quando em quando comentava o padroeiro, começou a instruir os irmãozinhos:

— Aquele é o marido de Nossa Senhora, é o pai do Menino-Deus. Mas o Menino-Deus não é filho dele, é filho do Espírito Santo, que é uma pombinha.

— É uma pombinha que anda nas folias, em cima da bandeira, interrompeu Vivi. 

— Eu já vi! disse com importância e orgulho o Joãozinho.

— Chama-se São José, continuou Jorge. Dantes era carpinteiro; agora é santo. Quando o Menino-Deus nasceu, apareceu uma estrela. Os pastores todos foram rezar. Foram também três reis. Um era preto...

— Um rei preto? estranhou Vivi.

— Preto sim. Na terra dos negros o rei é preto. Mas é rei.

— E as princesas?

— As princesas, não; que boba! As princesas são umas moças muito bonitas, com cabelos de ouro, e uma estrela na testa... O outro rei mandou matar o Menino Deus...

— Por quê? perguntou Vivi.

Jorge hesitou. Na realidade, ele estava pouco a par das razões políticas de Herodes; mas não quis dar parte de fraco, e, depois de refletir um momento, respondeu a Vivi:

— Ora, porque... Porque era um rei muito malvado.

— E mataram o Menino-Deus?

— Não puderam, capaz! S. Jorge pôs Nossa Senhora, com o Menino-Deus no colo, em cima de um burrinho finito manso, um burrinho ensinado; e todos três fugiram para outra terra...

Joãozinho, apertando na mão o galo arrancado a São Pedro, dobrara sobre a cômoda o braço, encostara a este a cabecinha loura, e cochilava, no aborrecimento daquela exposição de História Sagrada que Jorge ia cosendo de farrapos. Mas a alusão de um burrinho muito manso, um burrinho ensinado, espertou e teve um aparte:

— O santo está sujo.

Efetivamente. O tempo e a fumaça da vela benta, acendida sempre, durante anos e anos, no dia consagrado a São José, haviam encardido a imagem, desbotando-lhe as cores, envolvendo-a como numa poeira baça e gordurosa.

— É mesmo, disse Vivi reparando. Está muito sujo. Coitado, é preciso limpar ele.

Jorge decidiu-se logo a limpar o santo. Fez descer da cadeira os irmãos. Afastou as pequenas imagens, e o ramo de lírios. Agarrou com a mão esquerda a peanha* (*pequeno pedestal onde se colocam estátuas), e com a direita o pescoço de São Jorge. E, num gesto decidido e forte, tirou-o do oratório.

Daí a instante, São José estava no chão, sozinho, no meio do quarto, anulado e pequenino. Jorge trouxe uma bacia de rosto, larga e funda; e, enquanto vazava nela a água do jarro, ordenou a Vivi que trouxesse o sabão.

Sentaram-se os três. Joãozinho quis logo meter na bacia o galo. Mas Jorge suspendeu-lhe o braço, asseverando que não se põe as galinhas n’água, porque se afogam. E, segurando com todo o cuidado o barbudo, calvo, venerável São José, deu-lhe um mergulho.

– Agora, você! disse ele, dirigindo-se a Vivi; Mulher é que lava.

Vivi não se fez rogada. E, carinhosamente, pôs-se a ensaboar o santo. Daí a momentos, na confusão das tintas que se desmanchavam, São José tinha a barba azulada, o rosto coberto de manchas, a sua calva, aquela austera calva tão lisa e tão lustrosa, aparecia salpicada de rubores que lembravam uma impingem* (*dermatose)...

Jorge reparou nisso; e ordenou a Vivi que lavasse melhor, com mais forças. Vivi esfregou com energia. A massa molhada começou a esfarelar-se.

— E agora? perguntou Vivi assustada.

Jorge não respondeu. Tinha ouvido passos na escada. Era a mãe, que subia, a ver de certo que é que faziam os três traquinas, tão sossegados havia tanto tempo... Jorge, muito ligeiro, nas pontas dos pés, escapou-se. Vivi seguiu-o logo, enxugando no vestidinho branco as mãos molhadas das tintas diluídas da imagem de São José.

Joãozinho, então, sem reparar em nada de todos esses incidentes, percebendo apenas que ficara único senhor do campo, apoderou-se do santo, e pôs-se, muito entretido, a lambuzá-lo de sabão.

Encontrou-o a mãe nessa tarefa, a que se entregava conscienciosamente; e avançou para ele no momento preciso em que Joãozinho acabava de esfarelar com todo o cuidado uma orelha de São José.

— Maroto! exclamou ela.

E ia fazer cair sobre Joãozinho o castigo merecido pelo horrendo crime, cujos vestígios e destroços via no soalho e no oratório devastado, quando lhe acudiu a reflexão de que tudo aquilo não podia ser obra só do pequerrucho, de que houvera forçosamente no caso intervenção de mãos mais hábeis, de braço mais forte, de figura mais taludinha...

— Foi aquele pestinha! murmurou indignada, pensando em Jorge.

Arrancou das mãos de Joãozinho aturdido a imagem escalavrada* (*esfolada) de São José; beijou-lhe os pés com palavras compungidas em que pedia perdão pelo sacrilégio dos filhos; e repôs o santo no seu oratório forrado de azul com estrelinhas de ouro, cercou-o da sua corte de pequenas imagens, todas mais ou menos mutiladas, só faltando São Francisco, que continuava oculto, de castigo, no vão escuro...

Cumpridos esses atos de piedade, voltou-se para Joãozinho, que apanhara do soalho o galo de São Pedro, e conservava-o na mão:

— Você fez uma coisa muito feia, e vai apanhar, e vai para o quarto escuro...

Joãozinho, aterrado, só respondeu:

— Não, não mamãe!... Não mamãe!...

Ela porém, muito enérgica:

— Escolha: ou apanha, ou vai para o quarto escuro!

— Joãozinho fitou-a. Percebeu no rosto severo da mãe — que não escapava mesmo. Ora ele nunca tinha apanhado — e conhecia já o quarto escuro.

Escolheu, choramingando:

— O quarto escuro, não...

— Vá então buscar o chinelo, para apanhar.

Joãozinho foi, vagaroso, de cabeça baixa, como um criminoso que era. Quando voltou, trazia sempre, na mão esquerda, o galo de São Pedro; e empunhava na direita um pé dos chinelinhos... de Vivi.

— Com este, sim? implorou.

E ia entregar o quase inofensivo instrumento do suplício — quando se arrependeu, retraiu o braço, susteve-se... E com o rosto aflito, os olhos suplicantes, numa vozinha entrecortada, de susto e de choro:

— Eu mesmo me dou, sim, Mamãe? Eu me dou com força. Eu prometo que me dou com toda a força!

Fonte:
Vicente de Carvalho. Luizinha. Publicado em 1924. 
Disponível em Domínio Público.