Em noites de tempestade e frio
Vagueio solitária e languidamente
Pelo mítico vergal em dor
Choro e sofro
Todas as dores do mundo
Pelo amor que se foi
Por tudo que não veio
E por tudo que nunca virá
Vagueio solitária e languidamente
Pelo mítico vergal em dor
Choro e sofro
Todas as dores do mundo
Pelo amor que se foi
Por tudo que não veio
E por tudo que nunca virá
Agora, com a cidadania das nuvens totalmente revogada, em definitivo, era premente viver e viver ao máximo do possível e para além do inimaginável. E Clarisse Cristal tinha em mente o livro, “A cinza das horas”. Era pela “A cinza das horas”, que tudo tinha começado afinal de contas, pois ali seria o seu derradeiro recomeçar. A bibliotecária foi em busca do livro raro como se fosse o seu próprio Santo Graal, ou melhor, o livro seria o seu A leste do Éden?
Mas antes ela, Clarisse Cristal, queria e precisava sentir o ar fresco da luz do dia, era preciso ganhar as ruas, ela precisava sentir a leveza da claridade da luz do dia. Naquela hora extrema, a moça pouco se importou, com as muitas dúvidas e as várias e infindáveis incertezas que os novos desafios impostos diante dela naquele momento.
Ela foi até o cabideiro antigo, de imbuia cor de ébano, ao lado da porta, pegou um sobretudo preto godê inverno masculino, que estava ali, esquecido há muitas eras glaciais. Vestiu a peça que ela nem sabia de quem era, de fato e de direito, a peça estava tanto tempo ali estática, que ninguém sabia de quem era ou como foi parar ali.
Então a bibliotecária começou a saga, foi no encalço de Anna Victória, com faro apurado de uma loba faminta. Clarisse Cristal tinha o corpo em chamas e estava também em alerta total. A então obscura funcionária de uma pequena livraria e editora independente, era responsável pelo setor de avaliações e reparos de livros antigos e raros.
A bibliotecária lânguida andou até a escada, que dava acesso ao primeiro piso do prédio que abrigava a livraria e editora. Parada na beira do abismo negro, da álgida fossa abissal, ela estava estática, na segurança da continuidade mais que tranquila, da rotina imutável, em oposição atribulada vida real cotidiana, das pessoas comuns. Ali na parte superior da livraria, o seu Éden particular, a sua hierática torre de marfim. Lugar ermo onde Clarisse Cristal, desfrutava da companhia solitária, de gente inacessível, gente velha e gente morta, ela cerda de raridades caras, há muito esquecidas. A jovem bibliotecária ali estava cercada por todos os lados, ilhada de grimórios, de itens exclusivos de poucos e para poucos indivíduos privilegiados e privilegiadas. Em suma, ali estava em total segurança, longe das instabilidades do mundo liquefeito e fugaz de avalanches tecnológicas da era digital.
Clarisse Cristal, por fim, tomou fôlego e desceu as escadas de forma intempestiva e sem olhar para o que ficou para trás. A avaliadora e restauradora de livros raros geralmente evitava usar as escadas, que agora encarava com força e com coragem. Ela, a complexa bibliotecária reclusa, preferencialmente usava o elevador privativo, do prédio em anexo, onde ficava o calmo escritório da livraria e editora. Clarisse Cristal, só usava a entrada frontal da livraria, quando a loja estava para encerrar ou começar o expediente. E sempre em momentos raros, que os demais colegas de trabalho, ou poucos clientes ocasionais, a viam circular pela pequena livraria e editora independente. Só nesses raros momentos, assim por dizer, davam pela existência da jovem bibliotecária especialista, em obras antigas e raras.
Os barulhos das botas batendo com força nos degraus chamaram a atenção de todos e todas, que estavam no primeiro piso da livraria. O espanto maior foi quando Clarisse Cristal percorreu a corredor principal da livraria.
— Aonde será que vai, a nossa lacrimosa princesinha gótica? E com tanta pressa assim? A nossa querida Rapunzel, enclausurada na torre ebúrnea! — disse entre dentes Anna Victória, que estava parada debruçada no frio balcão, de mármore Carrara, no setor de embrulhos para presentes ao ver Clarisse passar.
Clarisse parou e viu o livro “A cinza das horas”, postado no meio da gélida bancada de mármore, enquanto a funcionária do setor de embrulhos tomava sem pressa um cafezinho, a embrulhadora estava atrás de Anna Victória. Clarisse notou que Anna Victória se comportava de forma afetada, como se fosse uma sofisticada e deslocada europeia, em trânsito, perdida nos suarentos trópicos, exilada em um mundo em desenvolvimento, por algum acidente do desígnio destino.
Clarisse Cristal ficou parada olhando para frente, a poucos metros da porta de entrada, esperando e esperando o que nem ela sabia, o que ao certo estava esperando. Se ela olhasse para trás, poderia ver todo o estafe (grupo de funcionários) da pequena livraria parado, sem nada entender a repentina quebra da rotina da jovem bibliotecária. Da simpática senhora negra que servia café, vestida elegantemente, passando pelo bem alinhado operador da fotocopiadora, o pequeno agrupamento de uniformizados vendedores e vendedoras e indo terminar no sofisticado subgerente da livraria, com seu paletó impecável feito sob medida. Não haviam fregueses na livraria naquele início de semana, naquele início de manhã sonolenta e outonal.
Estavam todos estáticos, esperando o desenrolar daquela cena inusitada. Clarisse Cristal então olhou para trás e se voltou lentamente para Anna Victória. A jovem bibliotecária, não estava interessada em mais ninguém, nada importava para Clarisse Cristal àquela hora extrema. A bibliotecária andou em direção da outra de forma bem lenta, levou a mão ao ar indo parar próximo ao rosto de Anna Victória. Com o dedo em riste, a jovem bibliotecária Clarisse Cristal, delicadamente afastou os longos cabelos trigais da orelha esquerda e levou os seus lábios carnudos até o ouvido, da atônita promotora sênior de vendas. Anna Victória, a vendedora sênior, era toda arrepios, naquela derradeira hora extrema, naquele momento confuso.
— Eu, minha querida, definitivamente, não tenho vocação nenhuma para as danças das aranhas! — Soprou de forma álgida e sensual, para dentro da mente da frágil Anna Victória, que corou. Clarisse voltou para sua marcha, seguiu andando de forma teatral, como se estivesse encenando, uma opereta bufa chinfrim, encenada em uma tasca qualquer.
A bibliotecária foi até a saída da livraria e foi tragada pela luz do dia, sob os olhares atônitos de todos e todas. Clarisse gostaria àquela hora que estivesse recoberta pelo manto escuro, da mais negra noite fria de inverno, banhada pela lua em sangue. Mas, o prazer do inesperado, de sentir a claridade da luz do dia, começava a atrair a antiga cidadã das nuvens. Um novo mundo se descortinava, bem diante dela, naquele exato momento, agora tudo era possível, para a jovem e corajosa Clarisse Cristal. A antiga cidadã das nuvens, a chorosa e tímida princesa gótica enclausurada na segurança da ebúrnea torre de marfim, já não existia mais. Era mesmo hora de mudar de vida, passou da hora na verdade, de experimentar novos sabores, novas sensações, respirar novos ares, sentir novos olhares e em outros lugares. A Bibliotecária sentia que tinha passado da hora, de experimentar novos cenários, com as suas mais que infinitas possibilidades.
Foi assim que Clarisse Cristal passou a pensar e agir, naquele que seria o seu ponto de virada na vida, no íntimo e na mente da jovem bibliotecária.
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Texto enviado pelo autor.
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