sexta-feira, 17 de março de 2023

Hans Christian Andersen (O Linho)


O linho estava todo em flor, coberto de pequenas corolas azuis, delicadas como as asas da cigarra - e ainda mais transparentes. Recebia a luz do sol e as águas da chuva: era como a criancinha que depois do banho recebe um beijo da mamãe. Isso aumenta a beleza das crianças, e foi o que aconteceu com o linho.

- Dizem que cresci muito, - exclamava ele - que estou muito alto e que hei de dar um belo pedaço de pano. Sou na verdade muito feliz! Sou, certamente, o mais feliz de todos. Que sorte tenho tido! E tudo me sairá bem. O sol me alegra tanto e a chuva me refresca - esta chuvinha boa e agradável! Sou infinitamente feliz, não há ninguém mais feliz do que eu!

- Pois sim, pois sim! - disse a taquara. - Não conheces o mundo , mas eu conheço, pois sou toda cheia de nós.

E ela rangia, lamentando-se:

"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"

- Não, senhora! Não acabou! – disse o linho - Amanhã o sol há de brilhar, ou há de vir a chuva  me refrescar. Sinto que estou crescendo... sinto que estou em flor. Ah! Sou eu o mais feliz!

Mas um dia vieram uns homens e seguraram o linho pelo pescoço, arrancado-o com raiz e tudo. Aquilo doeu muito! Depois deitaram-no à água, como se quisessem afogá-lo, e  depois o expuseram ao calor do fogo - parecia que iam agora assá-lo! Foi uma coisa horrível!

- Ora, não se pode viver bem todos os dias. – disse o linho - Devemos passar trabalhos: é assim que se aprende.

Mas o fato é que padeceu tormentos horríveis. Foi molhado, torrado, despedaçado, e  cardado... Nem ele mesmo sabia que nome havia de dar a todos os processos a que o submeteram. Afinal, meterem-no na roca: Rrrr! ...Rrrr!... Nem lhe era possível concentrar as ideias. E, no meio de todas aquelas torturas, ia sempre pensando:

- Fui muito feliz outrora... A gente deve contentar-se com os bens que já gozou... contentar-se... contentar-se... ar! ...Ai!

E foi então que o meteram no tear, e ali ele se transformou em uma grande e bela peça de pano. E todo o linho, até a última haste, foi gasto naquela única peça.

- Mas que coisa extraordinária! Quando é que eu ia imaginar isto! Vejam como a sorte me favorece! A taquara não estava mal-informada quanto aquele "lá-lá-ri-lá-ri-lá-lá" que cantava! Mas a cantiga não se acabou, não! Pelo contrário, agora é que vai começar. É, com efeito, extraordinário! É certo que me fizeram sofrer um bocado, lá isso é verdade, mas cheguei  a ser alguém. Sou eu o mais feliz de todos. Como fiquei forte, distinto, branco , e tão comprido... Isto sim vale a pena! Não é só ser uma planta, ainda que esteja coberta de flores! Ninguém se importava comigo, e água, só recebia quando chovia. Agora  sim, tratam de mim, enchem-me de mimos. A criada vira-me todos os dias, e todas as noites me dão um banho de chuveiro, com o regador. A esposa do pastor até fez um discurso, dizendo que eu era a melhor peça de linho de toda a paróquia. Não! Eu não poderia se mais feliz do que sou!

Levaram o pano de linho para dentro de casa, e lá caiu ele sob os golpes da tesoura. Ah! Como o talharam e retalharam! Não era nada agradável, aquilo! Mas afinal foi convertido em doze peças de roupa - peças cujo nome não se costuma dizer, mas que todas as pessoas devem usar. Fizeram uma dúzia, dessas peças.

- Vejam! Agora é que me tornei uma coisa útil. Era então este o meu destino! Que maravilha! Agora presto serviços, tenho utilidade no mundo, como todos devem ter. Isto é que causa prazer à gente! Somos agora doze peças, mas somos todas uma e a mesma coisa. Formamos exatamente uma dúzia. Que sorte extraordinária a nossa!

Passaram-se anos. Um dia, enfim, o pano de linho estava gasto.

- Tudo se acaba, afinal. – dizia cada peça de roupa - Eu gostaria de durar mais um pouco, mas a gente também não deve desejar o impossível.

Foram então rasgadas em pedacinhos. E, quando se viram assim picadas, encharcadas de água e cozidas, pensaram que agora, sim, estava tudo acabado. Nem elas mesmas sabiam quanta coisa acontecia... e de repente estavam transformadas em belo papel branco.

- Mas que surpresa, que maravilhosa surpresa! - disse o linho. - Sou mais fino agora do que dantes, e hão de escrever sobre a minha superfície! Pois isto não é uma sorte extraordinária?

E realmente nele foram escritas as mais lindas histórias e poesias, e apenas um único pingo de tinta lhe caiu em cima, fazendo um borrão, isto em um momento de pouca sorte. E as pessoas ouviram o que fora escrito sobre o papel, eram coisas boas e inteligentes, que tornavam os ouvintes muito melhores e mais instruídos. Havia uma benção nas palavras escritas naquele papel.

- Mas isto é muito mais do que eu podia imaginar, quando era uma simples florzinha azul, lá no campo! Como ia esperar que um dia pudesse espalhar alegria e conhecimentos entre os homens? Ainda não posso compreender, mas realmente assim é. Deus sabe que não fiz senão o que minhas limitadas forças me obrigaram a fazer, para assegurar a minha subsistência e, todavia, ele me favorece desta maneira, fazendo que eu vá de uma alegria a outra, de uma honra a outra honra. E cada vez que penso comigo: "acabou-se a cantoria!"  torno de novo a uma vida melhor, mais elevada! Agora, com certeza, irei viajar pelo mundo, para que os homens me possam ler... Não pode ser de outra  maneira. Não há nada mais certo! E tenho pensamentos magníficos, e tão numerosos como fora, outrora as minhas flores azuis... Sou a criatura mais feliz do mundo!

Contudo não o mandaram viajar: enviaram-no à tipografia. E lá aquilo que nele estava escrito foi composto e impresso, para formar um livro, e até muitas centenas de livros; assim poderiam tirar alegria e proveito de sua leitura muito maior número de pessoas que não lhes seria possível fazer se um único papel corresse mundo, gastando-se no caminho.

- É claro que isso é muito mais razoável - pensava o papel escrito. - Nem me lembrava de semelhante coisa. Fico em casa, onde serei honrado como um velho avô, e é o que no fundo venho a ser de todos esses livros novos. Assim o resultado será muito maior. Eu não poderia circular daquele jeito. Mas foi em mim que fixou os olhos aquele que escreveu a obra. Cada palavra entrou em mim, vinda diretamente da pena. Sou a mais feliz das criaturas!

E o papel foi amarrado, feito um fardo, e assim o lançaram em um barril, na lavanderia.

- Quem bem trabalha, melhor descansa! É muito útil a gente se concentrar e ter tempo para meditar sobre as coisas que traz no seu íntimo. Só agora sei realmente o que está escrito em mim. E conhecer-se a gente a si própria é a verdadeira sabedoria. Que farão de mim, agora? De qualquer forma darei um passo à frente: é sempre para a frente que a gente caminha. Isso já o sei por experiência própria.

Mas um belo dia todo o papel foi retirado do barril e posto sobre o fogão. Ia ser queimado. pois não podia ser vendido no armazém para embrulhar manteiga ou açúcar. E todas as crianças da casa se agruparam em roda, porque gostavam de ver arder papel, que dava labaredas tão altas e tão lindas. Além disso a gente via nas cinzas aquela multidão de faíscas vermelhas, que esvoaçavam para todos os lados, e iam extinguindo-se rapidamente. As crianças chamavam aquela brincadeira "ver as crianças saírem da escola";  e a última faísca era o mestre. Muitas vezes toda a gente pensava que ele já tinha saído, quando de repente lá vinha mais outra faísca:

- Lá se foi o mestre-escola!

Mas é que não estavam bem informados. Deviam saber quem era que ia saindo! Nós o sabemos, mas as crianças ignoravam-no.

Todo o papel velho, o fardo inteiro, inflamou-se num instante.

- Uuuu! - clamava ele, quando flamejava em labaredas altas. - Uuuu! ...

Não se pode dizer que aquilo era lá muito agradável. Mas quando tudo estava em chamas, ergueram-se elas a tamanha altura como o linho nunca poderia erguer suas florzinhas azuis, e brilhavam como o pano branco jamais poderia brilhar. Todas as letras escritas nele ficaram vermelhas no mesmo instante, e todos os pensamentos, todas as palavras que estavam ali se transformaram em labaredas.

- Agora subo diretamente até o sol! – clamou a chama.

E foi como se mil vozes cantassem uníssono. E as chamas saíram no topo da chaminé.

E mais finos ainda que as chamas, invisíveis para o olho humano, adejavam seres pequeninos: tantos quantas tinham sido as flores do linho. Eram mais leves que a chama de que haviam nascido. E quando esta se extinguiu, e do papel nada mais restava senão a cinza escura, eles dançaram ainda uma vez por cima dela: onde quer que um deles a roçasse, brotava centelhas rubras.

- As crianças saíram da escola e o mestre foi último!

Grande era a alegria, e diante da cinza morta cantavam as crianças:

"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"

Mas todos aquele pequeninos seres invisíveis disseram:

- A cantiga não se acaba nunca! E é isso o que há de mais lindo. Bem o sei eu, e por isso mesmo sou a criatura mais feliz do mundo!

Todavia , eram palavras essas que as crianças não podiam ouvir, nem entender.

Também, não era preciso: pois as crianças não devem saber tudo, não é ?

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1847.

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