sexta-feira, 3 de março de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Vício frenético)

O TELEFONE toca e a velhinha leva uma eternidade enorme para se levantar do sofá e caminhar até o aparelho que se esgoela ao lado da cristaleira. Finalmente consegue atender:

— Alô, quem é? Quer falar com quem?

— Boa noite, minha senhora. Por favor, é da residência do seu Noronha?

— Aqui não tem ninguém com esse nome. O senhor ligou para a residência errada. 

— Quem mora aí, senhora?

— Orfeu.

— Morfeu?

— Orfeu, senhor, Orfeu. Mas ele não está.

— Estranho! Me falaram que nesse número eu falaria com o Noronha...

— Quem lhe passou essa informação?

— Um tal de Bigorna.

— Bigorna? Bigorna... não conheço. Ele é seu amigo?

—  Quem? O Noronha?

— Não, moço, o Bigorna.

— Nem sei quem é. 

— Como esse Bigorna lhe passou então o número do Orfeu?

— Foi assim, madame. Eu liguei para um número e atendeu uma menina. Procurei pelo Noronha e ela me passou para o pai. O sujeito, por sua vez veio ao aparelho. Foi até um tanto indelicado comigo e depois de um curto diálogo que tivemos me informou que aquele número já havia sido do Noronha e agora não mais. Nessa confusão, me passou o seu telefone. Por essa razão estou ligando.

— O senhor ligou os números corretamente?

— Por certo, senão não estaria falando com a senhora.

— Vai ver o senhor discou algum algarismo errado. No lugar de discar um, discou oito, ou no lugar do três riscou cinco. Às vezes, na pressa, a gente acaba fazendo isso... eu mesma passei por esse incômodo por diversas vezes.

— Não acredito nessa possibilidade, madame.

— E por que não?

— Seu número de telefone não tem os algarismos oito e cinco. 

— Falei aleatoriamente. Não especifiquei nenhum número em particular. Como mencionei esses, poderia ter dito zero, quatro ou dois...

— Ainda que desta forma seu telefone não possui nenhum desses números.

— Então, meu amigo. Não vamos bater em ferro frio, nem gastar vela com defunto ruim. Como lhe falei, e agora repito. Aqui não tem nenhum Maconha. Passe bem. Boa...

— Espere, espere. Por favor, senhora. Não é Maconha, é Noronha. Olha só. Eu não sou criança. A madame menos ainda. Claro, não fosse tão urgente não estaria importunando. Mas veja só. O seu Bigorna me garantiu que esse número seria do Noronha. Assim, eu insisto...

—  Senhor, como é a sua graça?

— Sham Chum Chimchim madame.

— O senhor é japonês?

— Chinês.

— Entendo. Veja bem, seu Sam. Esse número está aqui em casa há exatamente vinte e cinco anos. O senhor não acha que é um tempo mais que suficiente para alguém garantir, com exatidão, ao prezado, que esse terminal é ou deixa de ser do tal do... Harmonia?

— Noronha, madame. O nome da pessoa é Noronha. E o meu, Sham. A senhora pronunciou meu nome de forma errada. Me chamou de Sam.

— Não é Sam?

— Não, senhora. É Sham.

— Desculpe, eu lhe chamei de Sam? Que loucura... 

— Chamo Sham. Tudo bem. Deixa pra lá. Voltando ao Noronha. Puxe pela memória... de repente...

— Noronha, Noronha...

— Isso. Noronha. Talvez por lapso tenha se esquecido. Pode ser que ela faça parte do seu circulo de amizades, ou do seu relacionamento familiar, uma...

— O senhor me ofende falando assim. Está me chamando de velha gagá?

— Em absoluto. De onde a madame tirou essa ideia absurda?

— O senhor acabou de frisar: “por um lapso”. Não tenho lapso, senhor Sam. Estou em pleno gozo das minhas faculdades mentais. Imagine se iria esquecer o nome de alguém, ou de uma pessoa que faz ou fez parte do meu circulo de amizades? Se ainda fosse um nome difícil, como o seu, vá lá, mas Colônia...?

— Madame, Noronha. Noronha. Lembra do Fernando?

—- Fernando? Que Fernando?

— De Noronha.

— Não conheço nenhum Fernando de Pamonha.

— Meu Deus do céu, madame. Tem alguém em casa junto com a senhora?

— Sim!

— Quem?

— Para que o senhor quer saber?

— De repente, se a senhora chamasse...

— Outra vez me taxando de maluca? Escuta aqui seu Sam...

— Sham, senhora. Sham... por tudo quanto é mais sagrado. É a terceira ou a quarta, vez, sei lá, que a madame esquece meu nome.

— Pois então, seu... seu...

— Está vendo? Na mosca!

— Calma. Não precisa repetir. Concordo que seu patronímico seja um pouco fora do comum, mas... como lhe falei e volto a repetir, pela quinquagésima vez, seu Vam. Aqui não tem nenhum Bolonha. O senhor, efetivamente ligou para o lugar errado.

— Dona... perdão... madame... meu nome é Sham, Sham, Sham. E o cidadão que procuro não se chama Bolonha e sim Noronha.

— Então, isso mesmo: aqui não tem nenhuma pessoa com esse nome. Passe bem, seu Pam.

Inopinadamente a velhinha desliga na cara do cidadão. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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