Por aqueles tempos, eu era interino no hospital da Misericórdia e, embora não fosse naturalmente mau e frio, era do meu grau cético ser um pouco indiferente ao sofrer das muitas criaturas que se achavam na minha enfermaria.
Mas não sei por que, ao entrar aquela nova doente, a minha habitual indiferença de profissional afeito à dor ficou esquecida e comecei a me inteirar pelo seu martírio e sofrimento.
Era uma preta velha, velha de mais de cem anos, africana que, ferida por um achaque próprio da sua alta velhice, vinha morrer ali aos meus olhos e aos meus cuidados. Era de ver a sua cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado, chupado, esteiriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam languidamente, dolorosamente.
No começo fiz-lhe perguntas. Indaguei-lhe de sua idade, de sua origem, se não possuía prole. E ela vagarosamente, aos pingos, deixava escorrer fracas respostas na sua meia língua, agora muito enfraquecida pela moléstia e pela idade.
Era da África, soube, de Moçambique, viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera por seu primeiro senhor os Carvalhos de São Gonçalo; conhecera d. João VI e, sobre ele, desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela estragada memória. Tivera filhos e dizia-me ela, pitorescamente, de várias cores.
Uns morreram e outros, me informava a Quirina (era seu nome), se foram por este mundo de Cristo, não havendo mais deles, nem novas nem mandadas, pois que as vicissitudes do cativeiro os transportava aos quatro cantos do Brasil.
Já há muitos anos, ela vivia encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor, a quem há poucos dias ela vira morrer trocando antes a última apólice que restava.
E quando, naquele dia, ao saber aquilo, eu fui à noite repousar no meu quarto, não me saía da imaginação aquela figura doida, cheia de sofrimento e de resignação, que, durante um longo prazo de seu século fornecera aos que lhe cercavam ternura, amor e trabalho e que agora, como um esquife vivo, já sem memória e quase sem viver, vinha morrer sem uma lágrima, sem um ai de alguém, de alguma criatura deste enorme planeta sublunar.
Estranho destino o daquela mulher. A raça lhe dava a doentia resignação para morrer miserável, na mesma terra que o sangue dera o que havia de requerer para amar e de humildade para obedecer e trabalhar.
E estas considerações fizeram-me ficar, olhos no teto, parados e presos, a fumar nervosamente, sonhando na ventura dos bons, dos mesquinhos e dos oprimidos.
Nada lhes dava a terra, o resto dos seus semelhantes, como naquela pobre negra, chupava-lhes, sugava-lhes avidamente, constantemente, reavivamente durante uma longa existência a doçura afetuosa do coração e, arrancava-lhe, até o último dia da existência, a réstia fraquíssima de energia que restasse porventura aos músculos, para depois atirar-lhes o corpo a morrer num hospital, tal como um delicioso fruto gozado que se atira depois o bagaço ao lixo. E eu pensava assim, quando, tomado de um cuidado estranho, levantei-me e fui, atravessando salas e leitos, salas de um ar soturno de catacumbas e leitos semelhantes a campas mortuárias, fui até a cama da mãe Quirina, levado até ela irresistivelmente por uma força rara, que me impelia doidamente, furiosamente.
E como era tudo em volta seu catre e, delicadamente, nos bicos dos pés, eu, em poucos instantes, me acerquei dele. O seu corpo magro saía lividamente do aconchego dos lençóis, ali, a meus olhos, placidamente dormindo, tinha na quietude de morto, naquela sua velhice venerável, o aspecto de uma múmia. Aquele fardel de carnes magras, de peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no linho dos lençóis, me pareceu ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da Núbia que a curiosidade moderna houvesse trazido, de aventura em aventura, de escambo em escambo, até a estas remotas plagas da Guanabara.
Logo que cheguei ao leito ela dormia, mas minutos depois despertou e eu, a quem nunca intimidara o olhar de moribundos, temi ao ferir-me em cheio o dela, que vinha muito fora do esperado cheio de energia, de ódio, de angústia e de mistério.
Durou algum tempo isso, bem depressa, ela, se esticando toda, num esforço violento, se pôs em pé sobre o leito, permaneceu assim calada instantes e depois, uma voz dolorosa, cheia de modulações de mágoa e ódio, às vezes, outras de desconsolo e pranto, foi solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que ouvi.
Mas não sei por que, ao entrar aquela nova doente, a minha habitual indiferença de profissional afeito à dor ficou esquecida e comecei a me inteirar pelo seu martírio e sofrimento.
Era uma preta velha, velha de mais de cem anos, africana que, ferida por um achaque próprio da sua alta velhice, vinha morrer ali aos meus olhos e aos meus cuidados. Era de ver a sua cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado, chupado, esteiriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam languidamente, dolorosamente.
No começo fiz-lhe perguntas. Indaguei-lhe de sua idade, de sua origem, se não possuía prole. E ela vagarosamente, aos pingos, deixava escorrer fracas respostas na sua meia língua, agora muito enfraquecida pela moléstia e pela idade.
Era da África, soube, de Moçambique, viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera por seu primeiro senhor os Carvalhos de São Gonçalo; conhecera d. João VI e, sobre ele, desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela estragada memória. Tivera filhos e dizia-me ela, pitorescamente, de várias cores.
Uns morreram e outros, me informava a Quirina (era seu nome), se foram por este mundo de Cristo, não havendo mais deles, nem novas nem mandadas, pois que as vicissitudes do cativeiro os transportava aos quatro cantos do Brasil.
Já há muitos anos, ela vivia encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor, a quem há poucos dias ela vira morrer trocando antes a última apólice que restava.
E quando, naquele dia, ao saber aquilo, eu fui à noite repousar no meu quarto, não me saía da imaginação aquela figura doida, cheia de sofrimento e de resignação, que, durante um longo prazo de seu século fornecera aos que lhe cercavam ternura, amor e trabalho e que agora, como um esquife vivo, já sem memória e quase sem viver, vinha morrer sem uma lágrima, sem um ai de alguém, de alguma criatura deste enorme planeta sublunar.
Estranho destino o daquela mulher. A raça lhe dava a doentia resignação para morrer miserável, na mesma terra que o sangue dera o que havia de requerer para amar e de humildade para obedecer e trabalhar.
E estas considerações fizeram-me ficar, olhos no teto, parados e presos, a fumar nervosamente, sonhando na ventura dos bons, dos mesquinhos e dos oprimidos.
Nada lhes dava a terra, o resto dos seus semelhantes, como naquela pobre negra, chupava-lhes, sugava-lhes avidamente, constantemente, reavivamente durante uma longa existência a doçura afetuosa do coração e, arrancava-lhe, até o último dia da existência, a réstia fraquíssima de energia que restasse porventura aos músculos, para depois atirar-lhes o corpo a morrer num hospital, tal como um delicioso fruto gozado que se atira depois o bagaço ao lixo. E eu pensava assim, quando, tomado de um cuidado estranho, levantei-me e fui, atravessando salas e leitos, salas de um ar soturno de catacumbas e leitos semelhantes a campas mortuárias, fui até a cama da mãe Quirina, levado até ela irresistivelmente por uma força rara, que me impelia doidamente, furiosamente.
E como era tudo em volta seu catre e, delicadamente, nos bicos dos pés, eu, em poucos instantes, me acerquei dele. O seu corpo magro saía lividamente do aconchego dos lençóis, ali, a meus olhos, placidamente dormindo, tinha na quietude de morto, naquela sua velhice venerável, o aspecto de uma múmia. Aquele fardel de carnes magras, de peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no linho dos lençóis, me pareceu ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da Núbia que a curiosidade moderna houvesse trazido, de aventura em aventura, de escambo em escambo, até a estas remotas plagas da Guanabara.
Logo que cheguei ao leito ela dormia, mas minutos depois despertou e eu, a quem nunca intimidara o olhar de moribundos, temi ao ferir-me em cheio o dela, que vinha muito fora do esperado cheio de energia, de ódio, de angústia e de mistério.
Durou algum tempo isso, bem depressa, ela, se esticando toda, num esforço violento, se pôs em pé sobre o leito, permaneceu assim calada instantes e depois, uma voz dolorosa, cheia de modulações de mágoa e ódio, às vezes, outras de desconsolo e pranto, foi solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que ouvi.
Fonte:
Lima Barreto. Conto publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.
Lima Barreto. Conto publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.
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