sexta-feira, 24 de março de 2023

O. Henry (A Água-Furtada)

Mrs. Parker mostraria primeiramente os salões duplos. Você não ousaria interromper-lhe a descrição das vantagens desses aposentos e dos méritos do cavalheiro que os havia ocupado durante oito anos. Só depois de finda a descrição é que você conseguiria gaguejar a confissão de que não era médico nem dentista. A maneira de Mrs. Parker receber tal declaração era de sorte a fazer com que você nunca mais sentisse o mesmo afeto por seus pais, que haviam descurado de educá-lo numa das profissões que se coadunavam com os salões de Mrs. Parker.

Depois, você subiria um lance de escada para examinar o quarto dos fundos do segundo andar, a oito dólares. Convencido, pela atitude "segundo andar" de Mrs. Parker, de que o quarto valia bem os doze dólares que Mr. Toosenberry costumava pagar por ele até que saiu para ir tomar conta de uma plantação de laranjas do seu irmão, na Flórida, perto de Palm Beach, onde Mrs. Mcintyre sempre passava o inverno, e que compreendia a dupla sala de frente com banheiro privativo, você a custo balbuciaria que desejava coisa mais em conta ainda.

Se lograsse sobreviver ao desprezo de Mrs. Parker, seria então conduzido ao espaçoso quarto de Mr. Skidder, no terceiro andar. O quarto de Mr. Skidder não estava vago. Nele, esse senhor escrevia peças de teatro e fumava cigarros o dia todo. Porém, quantos estivessem à procura de quartos eram levados a esse aposento par admirar os lambrequins. Depois de cada visita, Mr. Skidder, com medo de um possível despejo, pagaria alguma coisa por conta do aluguel.

Depois — oh! depois —, se você ainda conseguisse manter-se de pé, e proclamasse roucamente a sua pobreza hedionda e culposa, enquanto apalpava com mão quente os três pegajosos dólares no bolso, nunca mais teria por cicerone Mrs. Parker. Berrando a palavra "Clara", ela lhe voltaria as costas e desceria as escadas. Então Clara, a empregada de cor, acompanhá-lo-ia pelos degraus atapetados do lance que levava ao quarto andar, e mostrar-lhe-ia a Água-Furtada, cubículo de exíguas dimensões que se erguia no centro do patamar. Flanqueavam-no, de ambos os lados, escuros quartinhos de despejo ou de guardados.

No cubículo havia uma cama de ferro, um lavatório e uma cadeira. Uma prateleira vazia de cômoda. As quatro paredes nuas pareciam fechar-se sobre quem ali entrasse, como os lados de um sarcófago. Você levaria a mão à garganta, daria um suspiro, olharia para cima como se estivesse num poço e respiraria de novo. Pelo vidro da trapeira, você poderia ver um quadrinho de infinito azul. 

— Dois dólares, patrão — diria Clara, em tom meio de desprezo, meio de piedade.

Certo dia, apareceu Miss Leeson à procura de um quarto. Trazia uma máquina de escrever, evidentemente feita para ser carregada por uma senhora mais robusta. Era uma mocinha miúda, com olhos e cabelos, que haviam continuado a crescer depois que ela deixara de fazê-lo, e que pareciam estar sempre a dizer: — "Ora essa! Por que não nos acompanhou?"

Mrs. Parker mostrou à moça os salões duplos.

— Neste armário, — informou —, pode-se guardar um esqueleto, ou anestésico, ou ainda carvão...

— Mas não sou médica, nem dentista — replicou Miss Leeson, com um arrepio.

Mrs. Parker lançou-lhe o olhar incrédulo, penalizado, insolente e gélido, que reservava para os que não logravam diplomar-se médicos ou dentistas, e conduziu-a ao segundo andar. 

— Oito dólares? — exclamou Miss Leeson. — Deus do céu! Não sou milionária. Sou apenas uma pobre moça que trabalha. Mostre-me algo mais para cima e de preço mais baixo.

Ao lhe baterem à porta, Mr. Skidder deu um pulo, espalhando tocos de cigarros pelo chão.

— Desculpe-me, Mr. Skidder — disse Mrs. Parker, sorrindo diabolicamente ante a palidez do inquilino. — Não sabia que estava em casa. Convidei esta senhora para ver seus lambrequins!

— São lindos demais para terem serventia — atalhou Miss Leeson, sorrindo exatamente como sorriem os anjos.

Depois de as duas se terem retirado, Mr. Skidder ocupou-se ativamente em substituir a heroína alta e de cabelos pretos de sua última (inédita) peça, por outra heroína miúda, maliciosa, de feições vivas e cabelos fartos e sedosos.

— Anna Held ficará louca pelo papel — munnurou, apoiando os pés contra os lambrequins e desaparecendo numa nuvem de fumaça, qual um aéreo molusco.

Pouco depois, o toque de alarme — "Clara!" — proclamou ao mundo o estado financeiro de Miss Leeson. Um negro duende agarrou a moça e, subindo a escada estígia, introduziu-a numa catacumba com uma nesga de luz ao alto e murmurou as palavras cabalísticas e ameaçadoras.

— Dois dólares! 

— Fico com ele! — suspirou Miss Leeson, deixando-se cair sobre a cama de ferro rangedora.

Todos os dias, Miss Leeson saía para trabalhar, À noite, trazia para casa folhas manuscritas e as copiava na máquina de escrever. Quando não tinha serviço à noite, sentava-se nos degraus da íngreme escada com os outros pensionistas. Miss Leeson não devia ter sido destinada a uma água-furtada quando lhe traçaram o caráter no dia da sua criação. Era alegre e cheia de fantasias delicadas e caprichosas. Certa vez, permitiu que Mr. Skidder lhe fizesse a leitura de três atos da sua grande comédia (inédita), Não é Criança ou O Herdeiro do Metropolitano.

Os inquilinos masculinos se alegravam sempre que Miss Leeson tinha tempo para sentar-se nos degraus por uma ou duas horas. Porém, Miss Longnecker, a loura alta que ensinava numa escola pública e dizia "Oh, com efeito!" a tudo quanto ouvia, sentava-se no último degrau e torcia o nariz para ela. E Miss Dorn, que todos os domingos ia a Coney Island para exercitar a pontaria nos patinhos do tiro ao alvo, sentava-se no degrau debaixo e torcia-lhe igualmente o nariz. Miss Leeson sentava-se no degrau do meio e os homens imediatamente se agrupavam à sua volta.

Especialmente Mr. Skidder, que já a imaginava como heroína de um drama particular, romântico (não declarado) da vida real. E especialmente Mr. Hoover, que tinha quarenta e cinco anos, era gordo, afogueado e tolo. E especialmente o mui jovem Mr. Evans, que simulava uma tosse cava para induzir a moça a pedir-lhe que deixasse de fumar. Os rapazes a elegeram "a mais alegre e a mais espirituosa de todas", mas as fungadas do degrau de cima e do degrau debaixo eram implacáveis.

Peço-vos licença para interromper o drama enquanto o coro avança para a ribalta e deixa cair uma lágrima lúgubre sobre a obesidade de Mr. Hoover. Afinal as flautas para a tragédia da banha, o flagelo do volume, a calamidade da corpulência. Se fosse a julgamento, Falstaff renderia mais romance por tonelada do que as raquíticas costelas de Romeu por onça.

Um apaixonado pode suspirar, mas não deve bufar. Os gordos são reenviados à corte de Momo. Em vão bate o mais fiel dos corações acima de uma cintura de 1,30 m de diâmetro. Eia, avante, Hoover! Hoover quarentão, afogueado e tolo, poderá raptar Helena; Hoover, quarentão afogueado, tolo, e gordo, é caso perdido. Nunca houve oportunidade para você, Hoover.

Certa tarde de verão, estando os inquilinos de Mrs. Parker acomodados na escada, Miss Leeson levantou os olhos para o céu e exclamou com uma risadinha alegre:

— Ei! Lá está Billy Jackson! Vejo-o perfeitamente daqui.

Todos olharam para cima — alguns para as janelas dos arranha-céus, outros à procura de uma nave aérea pilotada por Jackson.

— É aquela estrela — explicou Miss Leeson, apontando-a com o seu dedinho. — Não a grande que pisca; a azul, fixa, que lhe fica ao lado. Vejo-a todas as noites pela minha trapeira. Apelidei-a de Billy Jackson.

— Oh! Com efeito! — disse Miss Longnecker. — Não sabia que era astrônoma, Miss Leeson.

— Sou, sim. — replicou a pequena contempladora de estrelas. — Sei tão bem quanto qualquer astrônomo que estilo de mangas estará na moda no outono próximo cm Marte.

— Oh! Com efeito! — retrucou Miss Longnecker. — A estrela a que se refere é Gama, da Constelação de Cassiopéia. É quase de segunda grandeza, e sua passagem pelo meridiano é...

— Ora! — interrompeu o mui jovem Mr. Evans. — Acho Billy Jackson um nome muito mais apropriado.

— Eu também! — asseverou Mr. Hoover, bufando alto em desafio a Miss Longnecker. — Penso que Miss Leeson tem tanto direito de dar nome a estrelas quanto qualquer desses velhos astrólogos.

— Oh! Com efeito! — exclamou Miss Longnecker.

— Será que é uma estrela cadente? — perguntou Miss Dorn. — No domingo passado, acertei nove patos e um coelho, de dez, numa barraca de Coney.

— Daqui não se pode vê-la muito bem. — disse Miss Leeson. — Vocês deviam observá-la de meu quarto. Como sabem, avistam-se estrelas mesmo durante o dia, do fundo de um poço. À noite, meu quarto é como uma galeria de mina de carvão, e faz Billy Jackson parecer um grande alfinete de diamante com que a noite prende seu quimono.

Veio uma época em que Miss Leeson não mais trouxe formidáveis calhamaços para copiar. E quando saía de manhã cedo, em vez de ir trabalhar, andava de escritório em escritório, o coração confrangido ante as frias recusas que lhe eram transmitidas por insolentes contínuos. Isso continuou.

Certa tarde, ela subiu com dificuldade a escada de Mrs. Parker, à hora em que sempre costumava voltar do seu jantar no restaurante. Mas não jantara.

Ao passar pelo vestíbulo, encontrou Mr. Hoover que, aproveitando-se da oportunidade, pediu a moça em casamento. A corpulência de Mr. Hoover oprimia Miss Leeson como uma avalancha. Ela recuou e agarrou-se à balaustrada. Mr. Hoover procurou-lhe a mão; ela a ergueu e deu-lhe uma bofetada, com pouca força. Amparando-se ao corrimão, Miss Leeson pôs-se a subir a escada, degrau por degrau. Passou pela porta de Mr. Skidder, que estava justamente anotando, com tinta vermelha, uma marcação para Myrtle Delorme (Miss Leeson) na comédia (não aceita): "fazer uma pirueta através do palco, de L até junto do Conde". Arrastando-se pela escada atapetada, ela finalmente chegou à porta da água-furtada, que abriu.

Estava muito fraca para acender a lâmpada ou despir-se. Deixou-se cair sobre o leito de ferro; seu corpo frágil mal pesou sobre as molas gastas. E nesse quarto do Érebo vagarosamente descerrou as pálpebras cansadas e sorriu.

Através da trapeira, Billy Jackson brilhava sobre ela, calma, brilhante e fiel. Não havia nada à sua volta: ela estava mergulhada num poço de escuridão, com apenas aquele quadrado de luz pálida a emoldurar a estrela a que com tanto capricho e, oh!, com tanta impropriedade dera nome. Miss Longneker devia ter razão: era Gama, da Constelação de Cassiopéia, e não Billy Jackson. No entanto, ela não podia admitir que fosse Gama. 

Deitada de costas, experimentou por duas vezes erguer o braço. Na terceira tentativa, logrou levar dois dedos aos lábios e mandou um beijo, de dentro do poço negro, a Billy Jackson. Logo caiu-lhe inerte o braço.

— Adeus, Billy. — murmurou, fracamente. — Estás a milhares de milhas de distância, e não vais dar nem uma piscadela, Mas ficaste sempre aí, onde eu podia ver-te, quando não havia senão escuridão para se ver, não é mesmo?... Milhares de milhas... Adeus, Billy Jackson.

Clara, a empregada de cor, encontrando a porta ainda fechada às 10 horas do dia seguinte, arrombou-a. Vinagre, batidas no pulso, penas queimadas, nada surtiu efeito; alguém correu ao telefone para chamar uma ambulância.

No devido tempo, depois de muita sirene, a ambulância encostou à porta dos fundos. O jovem médico, no seu avental de linho branco, disposto, ativo, confiante, a face entre jovial e séria, subiu saltitante os degraus da entrada.

— Chamado de ambulância para o n.° 49 — disse, secamente. — Que é que há?

— Oh, sim, doutor — suspirou Mrs. Parker, como se o embaraço que o incidente lhe causava fosse maior do que o incidente em si. — Não posso atinar com o que houve com ela. Nada do que tentamos fê-la voltar a si. É uma moça, uma certa Miss Elsie... isso mesmo, Miss Elsie Leeson. Jamais em minha casa...

— Que quarto? — berrou o médico, com uma voz terrível, até então desconhecida para Mrs. Parker.

— A água-furtada. É...

Evidentemente o médico da ambulância estava familiarizado com a localização de águas-furtadas. Subiu as escadas, de quatro em quatro degraus. Mrs. Parker seguiu-o vagarosamente, como o exigia sua dignidade.

No primeiro patamar, ela deu com o médico já de volta, com a pequena astrônoma nos braços. O rapaz deteve-se e pôs em ação, sem muito ruído, o escalpelo de sua língua. Gradualmente, Mrs. Parker foi-se encolhendo, como um vestido que escorregasse de um prego. Mesmo depois,
ficaram-lhe rugas na mente e no corpo. Algumas vezes, seus inquilinos curiosos indagavam-lhe o que lhe dissera o médico.

— Não se incomodem — respondia ela. — Se eu for perdoada por ter ouvido o que ouvi, ficarei satisfeita.

O médico da ambulância, com o seu fardo, atravessou a matilha de curiosos reunida pelo som da sirene. Mesmo estes se afastaram pela calçada, envergonhados, pois o rosto do jovem médico era o de quem trouxesse consigo a própria morte.

Repararam que o médico não depositou na cama adrede preparada na ambulância o fardo que carregava. Tudo o que disse foi:

— Corra como um demônio, Wilson!

Eis aí tudo. Será uma história? No jornal do dia seguinte, vi, nas notícias diversas, um pequeno parágrafo cuja última sentença talvez ajude você (como me ajudou) a ligar entre si os incidentes.

O parágrafo contava a chegada ao Hospital Bellevue de uma mocinha que fora removida do n. 49 da rua..., e que sofria de debilidade por fome.

E concluía com estas palavras;

"O Dr. William Jackson, médico da ambulância que atendeu o caso, diz que a paciente se salvará."

Fonte:
Disponível em domínio público.
O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.

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