quinta-feira, 16 de março de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Página de duas vidas)


“Então num susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido.”
Clarice Lispector

ELA SÓ QUERIA UM LAR. Um amor dentro dele, para chamar de seu. Em busca desse amor, veio de longe. Deixou a família, abandonou a cidade pequena do interior de Minas, deu adeus aos amigos... e partiu. Seguiu radiante, jubilosa e refestelada, envolta numa quimera fermentada com alto teor de um sucesso dúbio que achava que tivesse ao alcance das mãos. Ao chegar na localidade onde morava, o seu futuro amor descobriu, entre lágrimas e dissabores, desencantos e desencontros, que esse amor, a fonte que reproduzia a chama vital, não era real.

O amor que ela almejava, se fazia platônico. Não correspondia, de forma alguma, às suas expectativas. Apesar disso, tentou várias vezes ser feliz. Fez de tudo. Buscou o impossível. Ultrapassou a ponte movediça do além da conta, a passagem que interliga a afeição profunda (ainda que fortuita e problemática) para dar frontalmente com o incerto e o tenebroso, passando a conviver com o algaraviado. Acabou fazendo das tripas uma esquizofrênica decepção.

Todavia, o seu “Love”, meio que alienígena, louco de pedra, vazio de alma, oco de sentimentos, jogou tudo para o alto. Macambúzia, como se saída, de repente, de um festim macabro, sem ter como continuar vivendo uma mentira insana de conotação progressiva, regressou para a cidade-berço de onde viera. Foi-se, coitada, magoada, esvaziada, perdida em seu próprio mundo de emoções não vividas, tampouco vivenciadas.

Entretanto, apesar dessa estranheza claustrofóbica, tipo uma dissociação inconsequente e ultrajante, algo dentro dela não se conformava. O amor imerso em paixões desconexas, atrelado a milhões de mimos guardados, alimentava o desejo ardente de estar perto dele. Verdade, que às vezes, o seu amor se fazia bonançoso. Em outras, ele a tratava como se fosse uma qualquer. Um lixo, uma peça de roupa velha que se deixa de lado.

Apesar dos pesares, e de lhe vir à mente as palavras dele, palavras ásperas, repetitivas como saídas de um mantra mal ensaiado, “não quero morar com ninguém, quero viver sozinho”, ela não se entregava à realidade que se lhe mostrava brutal, onde todo um contrário repleto de negras nuvens cobrindo seu porvir, anunciava um forte temporal sinistramente avassalador.

Agredida moralmente por todos esses tapas e bofetões em seu rosto, ungido com o desprezo do descaso, "usque" (até) de uma catástrofe anunciada, ela deu a louca e resolveu partir para dar uma nova chance a ele e, claro, a si mesma. Retornou.  Ele, levado pela mesma e antiga loucura insana, fora dos pilares que sustentam a realidade, se camuflou a uma doidice despropositada. O receio seguiu firme, sério, conclamando a instauração de um futuro caos. A mesma pusilanimidade com a outra face oculta voltava à tona.

Com ela, vinha, de roldão, escorrendo como suor por sua epiderme, a frase que ela pensava não fosse jamais ouvir: “não quero morar com ninguém, quero viver sozinho”. Palavras amargas jogadas em seu rosto. Um semblante terno, meigo, gentil, uma tez que só queria ser amada, tocada, beijada, acarinhada e ele, cego, não das vistas mas, igualmente, de âmago vazio, nunca entendeu verdadeiramente a complexidade dessa vida que só queria na verdade ser dele.

E não só ser dele. De viver para ele, ter com ele uma eternidade que por puro azar, somente se entrelaçava sozinha dentro do seu espírito de gostar infindo. Ele, intocável, soberbo, sem noção, idiotizado na sociedade da sua fraqueza, não percebeu (ou não quis dar o braço a torcer), seguiu idêntico atalho. Quando descobriu que ela se constituía verdadeiramente no elo perfeito que o levaria aos píncaros da plenitude, se deu conta que o tempo... ah, o tempo, esse havia se passado.

No lugar dele, deixou plantado um adeus estranho, inexorável, um até nunca mais sem volta, sem talvez os benfazejos de um novo amanhã. As impressões do amor que ela queria dar para ele viraram uma espécie de via indexada e sem retorno. Ficou retido nessa senda a sua enorme solidão. Ele se embruteceu. Não mais sorri, deixou de ser expansivo. E quando imprime um gesto de agrado, o faz, movido em pose maquinal, em trejeito temporário, frio, gélido. Ainda agora, ele debalde, tenta reencontrar os caquinhos da imagem do seu íntimo que se rompeu em mil fragmentos.

Em algum lugar por onde passou, minúsculos cavacos (farpas) ficaram enterrados, submersos num distante aquém do intransponível. Sabe, conscientemente, que não mais terá de volta às mãos, o espelho inteiro e intacto, que chamejava lindamente o seu paraíso sem máculas.  Na verdade, ele não distingue exatamente onde os carreiros (caminhos) se divorciaram. Sabe, porém, que ficou de tudo uma dor ingrata, um incômodo nojento, uma importunação pegajosa.

Ele conscientiza que o destino lhe fechou diante da sua opulenta imbecilidade, a porta que daria acesso ao voo da empolgação da paz interna, da sorte, da ventura, enfim, ele tem pleno conhecimento que o avião partiu sem que tivesse embarcado. Mesmo que adentre outra aeronave para seguir logo atrás, não conseguirá alcançar o ponto nevrálgico e pérnicie (ruína) na sequência do almejado. Em razão disso, recorda a todo instante os momentos que passou ao lado dela.

Vem à lembrança como água jorrando em nascente, os passeios que nunca foram dados, as deambulações que nunca se concretizaram ou melhor, que não se ampliaram além da pizzaria e do churrasquinho à noite, variando, ainda, essas breves marchas, às idas e vindas ao supermercado, ou ao banco, começo de mês, quando ela precisava sacar a sua aposentadoria.  De todo esse estrago, restou o “apartado”. Na bifurcação impiedosa do destino, cada um seguiu o seu lado escolhido.  

Ela e ele vivem o desatino cruel de terem seu próprio “armagedon” em tempo imediato. Ela se descobriu portadora de cardiomegalia (“coração grande”). Ele se pega ressabiado às voltas com uma “hiperplasia” (hipertrofia da próstata). Para ambos, grosso modo, uma espécie de atrofia decadente a ser vivida a longo prazo, para o resto de seus dias se faz latejante. Os dois se falam, trocam mensagens via WhatsApp.

No fundo, ele e ela —, ela e ele, são dois mortos insepultos, vivendo memórias de cicatrizes antigas. Cada um a seu bel prazer, tentando dizer a si mesmo, a todo instante, que o passado, num sopro milagroso do divino se foi para sempre, se desfraldou além fronteira, fugiu incólume, desapareceu temeroso, evaporou medrado, desassomou batendo em retirada. Ele e ela —, ela e ele vivem, ou melhor dito, vegetam na pele, a essência catártica de uma tragédia grega de um tempo desmesurado.

Nada para eles é apaziguador. Ao contrário, a longitude, a cada dia, aumenta o sofrimento. Se avolumam as tristezas, faz crescer, de modo centuplicado o pavor, engrossando a insegurança e, via igual, progredindo a largos passos ampliando o caos para que o vindouro se torne lúgubre e próximo de uma ruptura sem retorno. Viver um amor assim, bonito de se ver, porém apartado pelo longor (lonjura) da distância, não é outra coisa senão um infindável jogo de desprazeres obumbrados de cafifes (dificuldades) e desditas (infortúnios), azares e desgraças a se perderem no “horizonte desparalelado” de cada um algemado, a bem da verdade, em grossas correntes de um mundinho particular oculto bem longe da nossa conhecida realidade terrena.

Fonte:
Texto e foto enviado pelo autor

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