“Quando não se pode dizer a verdade, mas se diz algo semelhante à verdade, não se está traindo a verdade”.
José Mauro de Vasconcelos (escritor)
O TELEFONE TOCOU INSISTENTEMENTE na residência da senhora Viviane Cardoso de Godói. Ao ouvir o som do aparelho se destrambelhando, fez sinal para que a sua filha Tati, uma criança ainda, que tomava seu café matinal, atendesse. Antes que a menina tirasse o auscultador do gancho, a mãe insistiu com veemência para que a pequena dissesse a quem quer que estivesse do outro lado da linha (ainda que a figura do papa ou do presidente da república), não importava quem fosse, ela não se encontrava em casa. A guria, contudo, cara de poucos amigos, sem entender bulhufas, contestou:
— Mas a senhora está aqui, mamãe. É feio mentir.
— Faça o que eu digo e não faça o que eu faço. Eu não estou. Não está vendo que eu saí cedo?
— E a senhora foi aonde mamãe, às oito e meia da manhã?
— Invente uma desculpa qualquer. Seja criativa. Sei que arranjará uma boa desculpa. Atenda logo essa porcaria. A campainha dessa droga me irrita os tímpanos e me tira do sério! Vamos, Tati, se mexa... não estou pra ninguém. NINGUÉM!
A menina obedeceu, o semblante fechado:
— Alô? Bom dia. Quem é?
— Bom dia, aqui é o Pedro das “bugigangas”. Dona Viviane se encontra?
— Não.
— Saiu?
— Mais ou menos...
— Como mais ou menos? Ela está ou não?
— Não sei não, senhor. Dona Rosa, a vizinha aqui do nosso lado esquerdo acabou de me dizer que ela foi abduzida.
— Não entendi. Foi o quê?!
— Abduzida.
— Abduzida?
— Foi o que eu disse.
— Meu Deus, que absurdo. A sua vizinha falou isso pra você?
— Sim, senhor...
— Essa senhora que disse essa barbaridade está aí do seu lado? Deixa-me falar com ela. Passe, por gentileza, o telefone. É urgente.
— Não senhor. Dona Rosa deu meia volta e correu para avisar aos outros moradores próximos...
— Mocinha, como é o seu nome?
— O meu?
— É.
— Tati.
— Muito bem, Tati. Lindo nome.
— Obrigada. Foi papai quem escolheu. Se fosse pela vontade de mamãe eu seria batizada Sara.
— Quantos anos você tem, Sara?
— Eu? Cinco. E não é Sara, é Tati.
— Perdão, minha jovem. Tati. Legal. Nossa! A mim está dando a impressão de ser uma garotinha inteligente, criativa e extrovertida. Pretende ser o que quando crescer?
— Olha, seu Pedro, estou pensando em Física.
— Professora de educação...?
— Não, física mesmo. Gosto de estudar as coisas absurdas.
— Entendo! Minha linda, pegando o gancho desse assunto, acaso saberia me dizer, em poucas palavras, o que eu, particularmente, poderia deduzir dessa expressão “abduzida?”. Confesso minha criança, até agora, essa coisa toda é muito nova e desconhecida para mim...
— Saberia sim senhor.
— Estou pasmo! Vá em frente. Sou todo ouvidos. O que é ser abduzida?
— O senhor está fazendo hora com a minha cara. Parece até o tio Pequinês. Tio Pequinês não me leva a sério!
— Quem é esse tio Pequinês?
— O irmão cachorro de meu pai.
Risos.
— Tá bom. O que significa ser abduzida? Juro a você, minha curiosidade não é outro senão a de aprender, claro. Hoje em dia adquirimos conhecimento com os mais novos. Essa juventude tem futuro.
— Tá bom. Pela sua conversa, seu Pedro, isso quer dizer que o senhor nunca foi abduzido! Acertei?
— Com todas as letras, minha princesa. O que é, afinal, ser abduzido ou como sua mãe abduzida?
— Abduzida ou abduzido tanto faz. A ordem dos cavalos não altera a rotina das cocheiras. Abduzida ou abduzido é tudo aquilo que a física ainda não conseguiu responder. E nos engambela afirmando que abduzido é a mesmíssima coisa que ser raptada ou sequestrada.
— E não é? Não entendi. Poderia ser mais explícita?
— No caso da mamãe?
— No caso da sua mamãe.
— Então, seu Pedro, ela foi abduzida, e não raptada, nem sequestrada, quando saia agora cedo, por volta das oito horas, em direção à padaria. Em resumo, ser abduzida é ser levada do nosso planeta terra para outra dimensão. Nossa empregada está de folga hoje e ela resolveu ir às compras por sua conta e risco. Mamãe é muito apressada.
— Que loucura! Estou passado, Tati. Conte todos os detalhes.
— Segundo dona Rosa...
— Calma lá. Você falou nessa dona Rosa não tem dois minutos. Quem é dona Rosa? Sua empregada?
— Dona Rosa é a vizinha aqui do lado, dois portões abaixo do nosso... e a nossa empregada se chama Elzira. Hoje é folga dela.
— Continue...
— Segundo dona Rosa, desceu uma nave espacial num campinho de futebol aqui pertinho, colada ao supermercado. O supermercado (não sei se o senhor conhece aqui onde a gente mora) fica uns duzentos metros, mais ou menos da padaria onde mamãe pretendia ir...
— Não, não conheço. Só falei duas vezes com a sua mãe por telefone e umas quatro, via WhatsApp.
— Entendi. Como dizia, de dentro dessa geringonça saíram vários seres pequenininhos todos verdes.
— Todos verdes?
— Sim senhor. Verde-musgo. E tinham anteninhas amarelinhas e compridas com bolinhas brancas no alto de suas cabeças. Pareciam os anõezinhos da Branca de Neve. O senhor se lembra dos anõezinhos da Branca de Neve, não lembra?
— Mais ou menos. Mas deixa pra lá. Prossiga...
— Assim! Essas criaturinhas simplesmente chegaram, viram a mamãe na rua, sozinha e sem mais nem menos, sem nenhuma explicação, “botaram ela” pra dentro da tal espaçonave.
— Meu Deus! Que coisa! Inacreditável!... e depois?
— Depois, seu Pedro, quando a dona Rosa deu o alarme os tais seres verde-musgo acho que se assustaram. Nisso se apressaram (arrastando a mamãe pelos cabelos) e sumiram de vez.
— Su... sumiram de vez?
— Sim e nesse sumiço...
— Minha princesa desculpe interromper. De onde você tirou essa historinha fantasiosa? Da sua imaginação, suponho?
— Não tirei. Aconteceu...
— Agora cedo?
— Cedinho mesmo. Tem uns quinze ou vinte minutinhos. A rua aqui onde eu moro, virou, num piscar de olhos, uma feira livre. O bairro em peso está sem saber o que fazer. Todo mundo abalado e em polvorosa.
— Com a chegada da tal nave?
— Não, senhor. Com a levada à força e contra a vontade da mamãe por essa cambada vinda do espaço. Como disse, ela acabou de ser abduzida. Abduzida não raptada... ou sequestrada.
— E seu pai? Cadê seu pai?
— Está trabalhando. Ia falar com a senhorita Norma do escritório dele avisando justamente na hora em que o senhor ligou.
— Meu Deus, criança! Vamos por etapa. Calma. Respira. Conta até dez. Quem é a senhorita Norma?
— A senhorita Norma é a secretária de meu pai. Quando dona Rosa me deu a notícia de mamãe, ia exatamente fazer isso. Ai então o telefone berrou. Saí aos tropeções da mesa, onde tomava meu café para atender. Era o senhor! Nem sei o que vou dizer a ele...
— A ele? A ele quem?!
— Ao meu pai...
— Não entendi.
— É que ele ainda não sabe.
— Tati, minha linda, o que ele, seu pai, ainda não sabe?
— O que eu disse ao senhor...
— Nossa, Tati, você me disse tantas coisas. Estou de queixo caído... tremendo... juro por Deus. Se pudesse me ver...
— Eu estou me referindo ao que lhe disse até agora de mais importante...
— OK! De mais importante?
— Sim senhor...
— E o que foi? Desculpe. Você me falou tanta coisa, me encheu de informações, contou uma novela, me enredou de tal forma... perdi o rumo. Não consegui digerir toda essa babel. É muita coisa pra minha cabeça...
— Seu Pedro, eu estou me referindo, repetindo o que informei ainda agorinha. O que eu disse de mais importante. Aliás, disse isso (o mais importante), se não me engano, pela segunda vez.
— Tá legal, desculpe. Falha minha. O que foi mesmo?! Me deu um branco áspero. Viajei como diz meu filho, na maionese...
— Eu disse que a mamãe não está. A mamãe como falei há pouco, foi A B D U Z I D A...
Tati tão convincente se fez no que abordava na conversação entabulada, que dona Viviane Cardoso de Godoi (que a tudo assistia e ouvia, diga-se de passagem, incrédula e estupefata), teve um piripaque momentâneo. Emoção, talvez. Caiu desmaiada. A menina largou o fone fora do gancho, com o tal do Pedro das “bugigangas” falando à deriva, dependurado no vácuo da sua ausência e se precipitou porta da frente, se esgoelando, literalmente por dona Rosa. Dona Rosa, desta vez, chegou, de fato, carne e osso, com meia dúzia de vizinhos, num alvoroço medonho. Alguém (da tropa que a acompanhava) ligou para o marido de dona Viviane. O pai de Tati chegou escoltado do doutor Marcos Capiloto (médico da família), vinte e cinco minutos depois.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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