segunda-feira, 6 de março de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Uma parte de mim acabou de morrer...)

UMA PARTE DE MIM se atirou num buraco sem volta. A partir desse evento inesperado, uma lacuna pungente se abriu ferida e acabou em chaga dentro de meu peito. Tudo por causa de meus livros. Eu tinha uma biblioteca e tanto. Causava inveja às pessoas que vinham me visitar e ficavam abismadas com tantos volumes ocupando um espaço tão imenso. Nossa!  Dava gosto chegar na minha sala, à noite, e depois do banho e do jantar, sentar no meu sofazinho de um lugar só, acionar o som baixinho e, ao acaso, passar as mãos num dos mais de trezentos bambas da literatura e me deleitar... 

Os temas variavam, igualmente como os autores: José Lins do Rego, Jorge Amado, Luís F. Veríssimo, Paulo Coelho, Nélida Pinõn, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Humberto de Campos, Cassandra Rios, Rubem Braga, Adelaide Carraro, Graciliano Ramos, Gabriel Garcia Márquez, Chico Xavier, e tantos mais, lembrando, de cada escritor acima citado as obras completas. A contra gosto, precisei me desfazer do acervo. Quando não se tem a casa própria, se vive de aluguel, ou de favores, jogado por aí, em moradas alheias, algumas coisas “importantes” que fazem parte da nossa vida cotidiana, precisam ser descartadas. As pessoas que nos rodeiam, mesmo os parentes mais próximos, não se importam com os nossos cacarecos. Nos chamam de “bestas quadradas” e de “acumuladores de tranqueiras”, por mantermos um amontoado de lixo ocupando um quadrado que bem poderia ser destinado a coisas mais importantes.  

Lembro, dias antes de me desfazer das relíquias (para mim, eram relíquias), liguei para as minhas filhas Amanda e Luana. Falei que estava precisando urgentemente me divorciar de todas as coleções de escritores que sempre fizeram parte constante da minha vida. Talvez, amanhã, ou depois, meus netos se interessassem pelas “coisas do velho avô” e seguissem pelo mesmo caminho que sempre pontilhei desde que me entendo por gente. Amanda se prestou a perguntar, em retorno, pelos títulos. Eu disse alguns. Rezei um terço. São mais de “trocentos” e ela, em resposta, indagou se nessa leva iriam os livros de E. L. James e L. J. Smith, respectivamente a trilogia dos “Cinquenta Tons de Cinza” e os “Diários do Vampiro”. Esse último em quatro volumes. 

Uma semana se passou e eu, apalavrado em compromisso com a pessoa que viria resgatar os volumes (encaixotados previamente), não podia deixar furo e confirmei uma data para que buscasse toda a biblioteca. Voltei a ligar para a Amanda numa última tentativa e ela “ironicamente” me jogou na cara dizendo que “não esperei por ela, nem falei que iria disponibilizar todos os livros”. Ora, quando alguém quer doar alguma coisa em caráter urgente e nos pergunta se temos interesse, qual é a resposta mais sensata? “Não, claro, vou buscar hoje à noite, depois do serviço, ou pedirei para alguém que vá até você e cuide da remoção”.  Ainda mais em se tratando de cultura. Resumindo: minha filha não deu as caras. Luana idem.

Os livros se foram, entre outros cacarecos que estavam em linha de dispensados. Como não guardo raiva (aos setenta anos a gente aprende que o furor e o rompante só trazem dissabores e contrariedades, mágoas e angústias) separei, num canto, os tais livros que a minha filha Amanda mencionou. Não sei, se um dia, virá buscá-los, ou se ainda haverá de se lembrar que somente pelo fato de aventar os nomes, eu os deixei num canto, à espera de serem resgatados. Quando a galera da instituição chegou com a Kombi para a retirada das muitas e muitas caixas, entreguei às chaves do apartamento e sai a dar uma volta. 

Seria penoso demais, custoso, embaraçoso e torturante ver meus livros (companheiros de tantos anos) indo embora, num adeus para sempre, sem que eu nada pudesse fazer para que ficassem e permanecessem ao manejo de minhas mãos carentes por uma boa leitura. Depois dos livros, outras coisas seguiram o mesmo destino. Roupas, sapatos, móveis, louças, quadros, um aparelho de som, enfim... a limpeza se fez completa. Contudo, nada me doeu tanto na alma, quanto a agonia cruciante de saber que os meus livros iriam, a partir daquele momento, ter outro endereço, outro dono, outras mãos os pegando e os manuseando, enfim, outros olhares percorrendo as suas páginas... 

Talvez essas criaturas não tenham o mesmo objetivo que eu. A bem da verdade, nada me dói mais na alma e no coração, saber que eles (meus velhos e queridos livros) não voltarão... que seguiram por sendas diferentes e que os meus sonhos nunca mais voltarão a ser divagados junto aos autores que me fizeram, por tantos janeiros, viajar em quimeras e embevecimentos jamais imaginados. Confesso, outrossim, sem me envergonhar, morreu em mim, um pouco da alegria. Lá no fundo, enterrei uma parte da minha existência. Sepultei à terra fria, uma quota bastante significativa da minha história. 

Acredito, será difícil me recompor quando a saudade vier bater à porta procurando uma aventura nova, um romance, uma crônica, que seja, acaso não lida, para me encantar e me encorajar a voar por mundos e planetas que nunca foram por meus pés pisados. Bem sei, o que está feito, remediado está. Infelizmente, uma parte de mim, repito, se atirou num buraco sem volta. A partir desse inesperado, uma lacuna pungente abriu uma ferida e acabou em chaga dentro de meu coração. Tudo por causa de meus livros.  É como se eu olhasse para dentro de mim mesmo e não desse de cara com os gritos lamuriantes de meu próprio “corpo” se decompondo em frangalhos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.  

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