quarta-feira, 8 de março de 2023

Vicente de Carvalho (Crianças)

Era o dia de S. José, daquele velho, barbudo, calvo São José, com a sua túnica vermelha caindo dos ombros, nas mãos o cajado de amendoeira milagrosamente abotoado em flores, e que, desde longínquos avós, de cuja memória já só ele restava, se mantinha como o santo predileto na devoção da família.

Era o seu dia, segundo a consagração do calendário. E, ao fundo do oratório aberto, destacado, dominando de toda a majestade da sua estatura de dois palmos uma corte de pequenas imagens secundárias, com um ramo fresco de lírios aos pés, o santo resplandecia no clarão da vela benta, piedosamente acesa em sua honra.

Ali estava ele, iluminado e glorioso, o bem-aventurado carpinteiro de Belém, escolhido por Deus, como o mais puro entre todos os homens puros, para depositário e guarda fiel da predestinada, fecunda virgindade de Nossa Senhora.

Segundo uma tradição remota e que vinha, de geração em geração, transmitida de pais a filhos, a velha e encardida imagem recebia pontualmente todos os anos, naquele dia que o calendário lhe destinava, uma singela homenagem de veneração, de confiança, e de amor, sob a forma de um ramo de lírios que se desfaziam em perfume aos seus pés, e de uma vela benta que ardia e se derretia em sua frente.

Os três pequenos, pilhando-se sozinhos, livres de qualquer intervenção adulta, tinham resolvido entre si dar uma busca ao interior do oratório, aberto. Jorge, o mais velho, concebera a ideia e dirigiu a ação. Era já um homenzinho de cinco anos, chefe natural e terrível do grupo. Fecundo em planos de travessuras, ousado na execução, distribuindo com mão forte e pródiga despojos e taponas, Jorge era acatado e seguido.

Puxou vigorosamente para junto da meia cômoda, em que assentava o oratório, uma cadeira; ergueu para esta o Joãozinho, cujos três anos eram ainda incapazes, sem apoio e sem auxílio, de altas cavalarias como essa.

— Agora você! disse com voz de comando, dirigindo-se à irmãzinha; e ajudou-a a subir. Em seguida, cumpridos os deveres de chefe, Jorge subiu por sua vez, colocando-se atrás dos outros dois.

E os três, encantados, puseram-se a examinar um por um os sagrados moradores do oratório.

Havia um São Pedro, com os olhos cheios de arrependimento de ter negado o Divino Mestre, fitando vagamente o teto. Tinha na mão a chave dourada com que abre às almas dos eleitos as portas da bem-aventurança; e, a seus pés, o galo tradicional, talhada toscamente, abria as asas desiguais, esticava o pescoço, um pescoço exagerado de cegonha, e repousava sobre a túnica azul do santo a sua crista quase quadrada. 

Fronteiro a S. Pedro, com o cordeirinho branco aos pés, a face rubicunda e moça, as pernas nuas até o joelho, S. João apoiava a mão esquerda na longa curva do seu cajado de pastor, e estendia o braço direito num gesto majestoso de bênção ou de prédica.

S. Francisco, dentro do seu comprido hábito negro, tinha um ar de suave humildade, com os olhos baixos, o rosto inclinado para o chão e emoldurado por umas enormes, incríveis barbas cor de chumbo.

Completava a coleção das pequenas imagens uma pequenina Senhora das Dores, doce figura de mãe angustiada, com o punhal simbólico cravado no coração até ao cabo, as mãos postas, os olhos aflitos e lacrimosos erguidos para o céu.

A primeira coisa que atraiu o olhar do mais pequeno foi o cordeirinho de S. João:

– Um bicho! disse ele apontando com o dedinho esticado.

– Não é bicho, corrigiu Jorge, é carneiro.

— Ele morde?

— Não, explicou o mais velho; só dá chifrada.

— Mas ele não tem chifres, interveio Vivi.

Jorge não gostou da objeção que infringia o respeito devido à sua autoridade em assuntos relativos aos animais. E retrucou:

— Tola! Ele dá chifrada com a cabeça.

— Eu tenho medo dele, disse Joãozinho.

— Não é carneiro de verdade, assegurou Jorge. Não se mexe. Quer ver?

Agarrou pelo pescoço o cordeirinho de São João, e puxou-o. A frágil massa partiu-se; e ficou solta na mão de Jorge a cabeça do animalzinho degolado.

— E agora? perguntou Vivi assustada. Eu não disse? 

Vivi, note-se, nada tinha dito, àquele respeito. Jorge, porém, era corajoso e resoluto; meteu rapidamente no bolso a parte arrancada do cordeiro, dizendo: – Não faz mal, eu escondo. Ninguém conte, hein?

Pouco preocupado com aquele incidente, tão simples e tão vulgar, o despedaçamento de um objeto, Joãozinho olhava já atentamente para o galo posto aos pés de São Pedro.

— O que é aquilo? perguntou, desconhecendo a figura mal feita.

— É uma galinha, explicou Jorge.

— Eu quero a galinha! declarou Joãozinho.

— Não, acudiu Vivi. Aquilo é do santo.

— Mas eu quero!

Jorge era generoso: arrancou e deu ao irmão o galo de S. Pedro, com as pernas partidas, e sem a crista, que ficaram pregada à túnica azul do santo. 

Vivi reparou na imagem da Senhora das Dores, por cuja face desbotada pela mágoa corriam lágrimas de sangue; e, comovida, perguntou:

— Por que será que ela está chorando?

Jorge explicou prontamente:

— Você não vê que ela está com a faca enterrada no peito?

— Coitada! murmurou Vivi. É melhor tirar a faca.

Jorge tirou a faca.

— Quem seria o mau que deu a facada? perguntou Vivi.

— Foi o barbudo! opinou Joãozinho apontando para São Francisco.

Devia ter sido mesmo: São Francisco com a sua longa túnica negra, as suas enormes, incríveis barbas cor de chumbo, era a figura mais feia da coleção.

— Com certeza foi ele! concordou Vivi.

— Foi! decidiu Jorge. Pois vai de castigo.

E agarrando S. Francisco, meteu-o, preso, no vão escuro entre o oratório e a parede.

Chegara a vez de São José, que jazia, no lugar de honra, ao fundo do oratório. Jorge, com uma erudição pitoresca, apanhada nas conversas em que a família, de quando em quando comentava o padroeiro, começou a instruir os irmãozinhos:

— Aquele é o marido de Nossa Senhora, é o pai do Menino-Deus. Mas o Menino-Deus não é filho dele, é filho do Espírito Santo, que é uma pombinha.

— É uma pombinha que anda nas folias, em cima da bandeira, interrompeu Vivi. 

— Eu já vi! disse com importância e orgulho o Joãozinho.

— Chama-se São José, continuou Jorge. Dantes era carpinteiro; agora é santo. Quando o Menino-Deus nasceu, apareceu uma estrela. Os pastores todos foram rezar. Foram também três reis. Um era preto...

— Um rei preto? estranhou Vivi.

— Preto sim. Na terra dos negros o rei é preto. Mas é rei.

— E as princesas?

— As princesas, não; que boba! As princesas são umas moças muito bonitas, com cabelos de ouro, e uma estrela na testa... O outro rei mandou matar o Menino Deus...

— Por quê? perguntou Vivi.

Jorge hesitou. Na realidade, ele estava pouco a par das razões políticas de Herodes; mas não quis dar parte de fraco, e, depois de refletir um momento, respondeu a Vivi:

— Ora, porque... Porque era um rei muito malvado.

— E mataram o Menino-Deus?

— Não puderam, capaz! S. Jorge pôs Nossa Senhora, com o Menino-Deus no colo, em cima de um burrinho finito manso, um burrinho ensinado; e todos três fugiram para outra terra...

Joãozinho, apertando na mão o galo arrancado a São Pedro, dobrara sobre a cômoda o braço, encostara a este a cabecinha loura, e cochilava, no aborrecimento daquela exposição de História Sagrada que Jorge ia cosendo de farrapos. Mas a alusão de um burrinho muito manso, um burrinho ensinado, espertou e teve um aparte:

— O santo está sujo.

Efetivamente. O tempo e a fumaça da vela benta, acendida sempre, durante anos e anos, no dia consagrado a São José, haviam encardido a imagem, desbotando-lhe as cores, envolvendo-a como numa poeira baça e gordurosa.

— É mesmo, disse Vivi reparando. Está muito sujo. Coitado, é preciso limpar ele.

Jorge decidiu-se logo a limpar o santo. Fez descer da cadeira os irmãos. Afastou as pequenas imagens, e o ramo de lírios. Agarrou com a mão esquerda a peanha* (*pequeno pedestal onde se colocam estátuas), e com a direita o pescoço de São Jorge. E, num gesto decidido e forte, tirou-o do oratório.

Daí a instante, São José estava no chão, sozinho, no meio do quarto, anulado e pequenino. Jorge trouxe uma bacia de rosto, larga e funda; e, enquanto vazava nela a água do jarro, ordenou a Vivi que trouxesse o sabão.

Sentaram-se os três. Joãozinho quis logo meter na bacia o galo. Mas Jorge suspendeu-lhe o braço, asseverando que não se põe as galinhas n’água, porque se afogam. E, segurando com todo o cuidado o barbudo, calvo, venerável São José, deu-lhe um mergulho.

– Agora, você! disse ele, dirigindo-se a Vivi; Mulher é que lava.

Vivi não se fez rogada. E, carinhosamente, pôs-se a ensaboar o santo. Daí a momentos, na confusão das tintas que se desmanchavam, São José tinha a barba azulada, o rosto coberto de manchas, a sua calva, aquela austera calva tão lisa e tão lustrosa, aparecia salpicada de rubores que lembravam uma impingem* (*dermatose)...

Jorge reparou nisso; e ordenou a Vivi que lavasse melhor, com mais forças. Vivi esfregou com energia. A massa molhada começou a esfarelar-se.

— E agora? perguntou Vivi assustada.

Jorge não respondeu. Tinha ouvido passos na escada. Era a mãe, que subia, a ver de certo que é que faziam os três traquinas, tão sossegados havia tanto tempo... Jorge, muito ligeiro, nas pontas dos pés, escapou-se. Vivi seguiu-o logo, enxugando no vestidinho branco as mãos molhadas das tintas diluídas da imagem de São José.

Joãozinho, então, sem reparar em nada de todos esses incidentes, percebendo apenas que ficara único senhor do campo, apoderou-se do santo, e pôs-se, muito entretido, a lambuzá-lo de sabão.

Encontrou-o a mãe nessa tarefa, a que se entregava conscienciosamente; e avançou para ele no momento preciso em que Joãozinho acabava de esfarelar com todo o cuidado uma orelha de São José.

— Maroto! exclamou ela.

E ia fazer cair sobre Joãozinho o castigo merecido pelo horrendo crime, cujos vestígios e destroços via no soalho e no oratório devastado, quando lhe acudiu a reflexão de que tudo aquilo não podia ser obra só do pequerrucho, de que houvera forçosamente no caso intervenção de mãos mais hábeis, de braço mais forte, de figura mais taludinha...

— Foi aquele pestinha! murmurou indignada, pensando em Jorge.

Arrancou das mãos de Joãozinho aturdido a imagem escalavrada* (*esfolada) de São José; beijou-lhe os pés com palavras compungidas em que pedia perdão pelo sacrilégio dos filhos; e repôs o santo no seu oratório forrado de azul com estrelinhas de ouro, cercou-o da sua corte de pequenas imagens, todas mais ou menos mutiladas, só faltando São Francisco, que continuava oculto, de castigo, no vão escuro...

Cumpridos esses atos de piedade, voltou-se para Joãozinho, que apanhara do soalho o galo de São Pedro, e conservava-o na mão:

— Você fez uma coisa muito feia, e vai apanhar, e vai para o quarto escuro...

Joãozinho, aterrado, só respondeu:

— Não, não mamãe!... Não mamãe!...

Ela porém, muito enérgica:

— Escolha: ou apanha, ou vai para o quarto escuro!

— Joãozinho fitou-a. Percebeu no rosto severo da mãe — que não escapava mesmo. Ora ele nunca tinha apanhado — e conhecia já o quarto escuro.

Escolheu, choramingando:

— O quarto escuro, não...

— Vá então buscar o chinelo, para apanhar.

Joãozinho foi, vagaroso, de cabeça baixa, como um criminoso que era. Quando voltou, trazia sempre, na mão esquerda, o galo de São Pedro; e empunhava na direita um pé dos chinelinhos... de Vivi.

— Com este, sim? implorou.

E ia entregar o quase inofensivo instrumento do suplício — quando se arrependeu, retraiu o braço, susteve-se... E com o rosto aflito, os olhos suplicantes, numa vozinha entrecortada, de susto e de choro:

— Eu mesmo me dou, sim, Mamãe? Eu me dou com força. Eu prometo que me dou com toda a força!

Fonte:
Vicente de Carvalho. Luizinha. Publicado em 1924. 
Disponível em Domínio Público.

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