domingo, 5 de março de 2023

Alberto Braga (A volta das andorinhas)

Ficava no beiral do meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha (pedreiro) vinha remediar os estragos da invernia e então, no Minho, quando o vento sopra do Gerez, oh! Pai do céu! por mais bem construída que seja uma casa, as telhas vão todas pelo ar, como se fosse um pobre telhado de levadia (telhas soltas)!) eu tinha sempre o cuidado de lhe recomendar:

— Se ainda lá topar o ninho, mestre, deixe-o ficar.

Imagine-se quanto custaria aquilo a um trolha, a um trolha que guarda sempre contra um passarinho o mesmo ódio que um velho lobo de mar conserva implacável contra um rato! Ter de remendar um telhado inteiro — façam ideia! — sem destruir um ninho fofo, pendurado num beiral!

Como eu morava só, aquele ninho, ali, era quase como um outro andar da casa, onde vinha passar o verão uma família minha conhecida. E eu tinha tanto zelo e canseira em conservá-lo no mesmo sítio, muito arranjado e pronto, como se fosse o caseiro daqueles alegres inquilinos!

As pessoas da cidade não dão valor nenhum a estas coisas, e até se riem delas; mas nós, os que vivemos na aldeia, temos um grande afeto pelas andorinhas, pelos melros, pelas toutinegras, pelos pintassilgos, pelos rouxinóis, enfim, por toda a passarada.

Os pardais, esses então, é que não gostam nada dos figurões da cidade. E a gente do campo, que lhes conhece o fraco, assim que eles espreitam cobiçosos as searas, dentre os ramos folhudos dos carvalhos, dizem logo:

— Esperai, que já vos arranjo.

E espetam no meio do campo um pinheiro muito alto, penduram-lhe uma vestia (jaqueta de couro) e põem-lhe por cima, de um modo arrogante, um pouco para o lado, como se aquilo fosse um grande janota — um enorme chapéu alto! Oh! fica admirável!

Poucos pardais, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão. E a gente, vendo-os, à tardinha, todos a chilrear na copa frente do arvoredo, até parece que os ouve dizer:

— Ainda lá está o espantalho?

— E estará, compadre, e estará!

— Se ainda se conservar até amanhã — acode o mais atrevido — diabos me levem, se lhe não prego uma peça!

— Sempre queríamos ver isso! — desafiam os outros.

— Pois então…

No dia seguinte, quando o sol radiante inundava todo o trigal, às onze horas da manhã, estava tudo a postos, tudo silencioso, para ver a partida. O arrojado observou atentamente pelos atalhos — que não fosse vir a rapaziada da escola — e voou rápido dentre um sobreiro, como se o tivesse desferido o arco de uma seta. Foi pousar direito na copa do chapéu alto do espantalho, e voltou-se depois para os amigos, a chilrear com uma grande troça.

Por toda a devesa (arvoredo) estalou então uma gargalhada frenética dos outros, que observavam, cheios de alegria, a imobilidade do janota!

Daí por meia hora — é sabido! — estava a sementeira desvastada!

Uma bela manhã, em meado de março, quando abri a janela do meu quarto, ouvi pipilar em cima. Debrucei-me no peitoril, olhei para o beiral, e lá vi a andorinha, que tinha chegado na véspera, à boca da noite, enquanto eu andava por fora.

— Bem! — disse eu comigo — já sei que tenho de ir fazer uma visita.

Ao cabo de meia hora, peguei no meu bordão, e pus-me a caminho pelo meio de uma bouça (terreno baldio com plantas agrestes), que ia dar à estrada. Eu ia visitar a sra. viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga, que chegava sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as amendoeiras.

Ao atravessar o pátio lajeado, que precedia o velho solar da fidalga, estavam ainda os criados, vestidos com blusas de riscadinho azul, atarefados na limpeza da carruagem e dos cavalos. As janelas da casa estavam todas abertas. Sentia-se que havia lá dentro uma criatura delicada, sequiosa dos perfumes balsâmicos dos pinheirais, do ar puro, da luz, como aquelas plantas aquáticas, as ninfas, que sobem do fundo escuro dos lagos à tona d'água para receber os raios quentes do sol do meio dia!

Apenas entrei no pátio, deparou-se-me a sra. viscondessa; e era mesmo uma pintura vê-la, como eu a vi então, com a cabeça lançada para trás, os braços muito erguidos, os seios arfantes, a aprumar-se, a subir, fincada no bico dos pés, para lançar o painço (tipo de milho) na gaiola dourada de um canário, que estava pendurada, em cima, entre os cortinados da janela!

Era lindo! lindo!

Quem primeiro aparecia a cumprimentar a fidalga era o sr. abade. E, então, conhecia-se logo que havia novidade na terra, porque o viam sair da residência todo asseado, de chapéu alto, cabeção de renda, a sua antiga sobrecasaca muito comprida a bater-lhe no cano das botas, e apanhado na mão direita, de um modo solene, o enorme lenço de seda da Índia com ramalhoças (estampado com ramagens) amarelas.

Feitos os cumprimentos do estilo, o sr. abade sacava da algibeira a sua caixa de tartaruga, e oferecia-a respeitosamente à viscondessa, como sinal da máxima etiqueta. E depois, ia falando e cheirando alternadamente.

— Pois minha senhora…

E fungava pela venta esquerda uma pitada de simonte (tabaco de pó fino), continuando:

— Este ano, o inverno, minha senhora, correu mal! E Jesus! muito mal!

Depois, ao outro dia, vinha a sra. morgada do areal flanqueada das suas duas filhas. Aquilo é que era luxo! chapéus de plumas, vestidos de nobreza com três folhos, manteletes de moir antique (tipo de xale), e então o bonito era a profusão de pulseiras, de broches, de brincos, tudo ouro antigo, ouro de lei, maciço, mas muito feio!

As meninas não tiravam os olhos da viscondessa; e, como ficavam uma junto da outra, acotovelavam-se às vezes, e segredavam:

— Vê, mana?…

— O que é? — perguntava a mais velha por entre dentes.

— Agora já se não usa cuia! Ora repare.

A morgada falava do amanho (cultura) das terras, do peso da derrama, e às vezes para variar, dizia:

— Ora, não estar cá pelo Santo Amaro! Havia de gostar. É uma festa como poucas! Faça ideia, viscondessa: há arraial três dias, há fogo preso, missa cantada, sermão…

E arregalando os olhos, e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:

— Sermão! Mas que sermão!…

Quando chegava a vez da minha visita, já a sra. viscondessa sabia todas as grandes novidades da terra. Era assim castigada a minha preguiça!

— Então já sabe, — principiava eu — o comendador Antunes este ano despica-se (vinga-se)!

— Ah! já me disseram, — atalhava logo a viscondessa — é ele o juiz da festa.

— É isso, minha senhora, é isso…

Veem? Sabia sempre tudo aquilo que eu tinha para lhe dizer!

Ora sucedeu, que de uma vez, indo lá passar a noite, encontrei a viscondessa sentada em uma voltaire (poltrona), com a cabeça reclinada no espaldar, as pernas estendidas e os seus pés graciosos pousados no rebordo de um braseiro.

— V. exa. contradiz as tradições da primavera! — principiei eu, sentando-me ao seu lado.

— Não contradigo, meu caro — respondeu ela, removendo com a pá o rescaldo esmorecido — a primavera é que está agora conspirando contra os poetas, que lhe atribuem doçuras que não tem! Se o calendário não me desmentisse, estava a jurar que o janeiro deste ano aumentou, pelo menos, mais sessenta dias!

— Mas não está tanto frio, que se não prescinda do fogão!

— Não está calor que o dispense.

— Pois não é das melhores coisas para a saúde!

— Ora que ideia! — opôs ela, a rir — Não me consta que o fogão tenha sido o assassino de ninguém, tirante nos velhos dramas, em que a heroína ludibriada pelo amante, procurava no ácido carbônico a solução do problema.

Suponham como eu fiquei radiante de júbilo! Até que se me deparava ensejo de contar à sra. viscondessa uma história que ela desconhecia!

— Pois, minha senhora, — principiei eu com desvanecida firmeza — Filipe III, de Espanha, foi vítima do calor de um fogão! E, se v. exa. me permite, eu vou referir-lhe como o caso se passou.

Aproximei a minha cadeira do braseiro, expus os meus pés ao calor do rescaldo, para contradizer com a postura o que afirmava com a palavra, e prossegui:

– Estava El-Rei, assistindo a um conselho de ministros. Como fazia muito frio, diante de Sua Majestade tinham colocado um braseiro enorme. Passado pouco tempo, principiou El-Rei a transpirar, a transpirar cada vez mais e as faces a tornarem-se-lhe muito vermelhas. O conde de Pobar, que viu no rosto de Sua Majestade a aflição que ele sentia, dirigiu-se ao duque de Alba, gentil-homem, e disse-lhe baixo que mandasse retirar o braseiro.

— É contra a etiqueta — respondeu serenamente o duque de Alba. — Isso compete ao duque de Uzeda.

— Filipe III voltava para o lado os olhos suplicantes; mas não se atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um pontapé ao braseiro e aos cortesãos que o cercavam.

Mandou-se chamar à pressa o duque de Uzeda; mas, por fatalidade, o duque de Uzeda nesse dia não estava no palácio!

— E depois? — perguntou aflita a sra. viscondessa, afastando-se do braseiro.

— Depois — continuei eu pausadamente estirando mais as pernas — quando o duque de Uzeda chegou ao palácio…

— Hein? — perguntou de súbito a fidalga, pondo-se de pé.

— El-Rei estava morto! — conclui eu com voz sinistra.

Apenas proferi esta frase, abriu-se de repente a porta e entrou na sala o criado com a bandeja do chá.

A sra. viscondessa ordenou logo:

— André, amanhã não acenda o braseiro.

E eu, oferecendo-lhe uma chávena, disse-lhe então baixinho:

— Já vê que se devem apagar os fogões, quando voltam as andorinhas!
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Alberto Braga foi secretário do Instituto Comercial de Lisboa. Ao longo da sua carreira assinou diversas crônicas literárias em jornais portugueses e brasileiros. Como autor, escreveu peças de teatro e livros de contos sendo reconhecido pelo seu estilo direto e claro, pela sobriedade na escrita e pelo tom sentimental que imprimiu a algumas das suas obras. Desenvolveu peças teatrais com uma forte raiz romântica e com pendor naturalista. Foi diretor da revista A semana de Lisboa (1893-1895) e colaborou em várias publicações periódicas, nomeadamente nas revistas Brasil-Portugal (1899-1914), Ilustração portugueza (1903-1980), Serões (1901-1911) e A risota (1908).

São suas obras:
Contos da Aldeia (1916), Contos da Minha Lavra (1879), Os Confidentes (1887), e teatro: A Estrada de Damasco (1892), A Irmã (1894), O Estatuário (1897).
(fonte da biografia: Wikipedia)

Fonte:
Alberto Braga. Contos d' Aldeia. Publicado originalmente em 1916.
Disponível em Domínio Público.

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