ENQUANTO ESPERAVA pela minha simpática secretária Carina, no saguão do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, onde voaríamos para Nova York, sentado praticamente na cara do portão de embarque dos voos internacionais, um sujeito tentou me contar uma historinha triste. Percebi que ele trazia no rosto corado (não de vergonha, mas pela falta de destreza em arranjar uma desculpa que convencesse), uma cronologia negativa de outras pessoas anteriormente abordadas.
Deve ter imaginado, ao olhar para mim, que eu era um desses idiotas improvidentes, com o rabo entre as pernas, cheio de medos, fácil de ser levado no bico, e que se afogava tropeçando os pés em pouca água. Como me considero macaco velho, e em razão disso não meto a mão em cumbuca, ando longe, portanto, de cair como um patinho nesses tipos de lorotas baratas expostas às voracidades construídas em botecos de esquina, diante da aproximação do cabra, fiquei, pois, em completo estado de alerta.
Em sentido idêntico, estou careca de saber que nos ajuntamentos de grandes terminais há sempre algum safardana contador de rodelas, procurando tirar proveito da ingenuidade alheia, notadamente dos sem malícia e dos puros de espírito, e, principalmente, fazendo valer a degenerescência de caráter, muito comum em quem não tem respeito pelos seus semelhantes. Assim, quando a criatura chegou com um sorriso maroto à mostra dos dentes bem tratados, já estava em guarda e tratei de me livrar rapidinho do estouvado, sem magoar a sua coragem, usando de toda elegância possível que me ia na alma.
Nos minutos que ficou ali na minha beira, jogando conversa fora tentando criar cenários ficcionais e se passar pelo bom moço, descobri que o meu interlocutor havia saído do interior de Belo Horizonte para trabalhar em São Paulo. O empregador (depois de ele ter laborado por trinta dias ininterruptos), não pagou ninguém, deu calote e fugiu com o dinheiro deixando todos os funcionários a verem ossos onde sequer existiam pedaços apodrecidos de “pecanhas” (carnes de galinhas sem unhas). Esses operários, como ele, chegavam a mais de duzentos. Corroborando a sua tese, exibiu um bilhete da Azul (companhia aérea datado de quatro meses atrás), referente à sua vinda com a respectiva taxa de embarque coletada no aeródromo da Pampulha.
Até aí, tudo bem. Casos assim acontecem. Pode, inclusive, suceder com qualquer um de nós, meros seres mortais. Para pegar a mentira do dito cujo, me fiz solidário à sua desdita. Ato contínuo me propus a ir com o prezado até o balcão de uma das companhias que cobrem o trecho e, no meu cartão de crédito, adquirir a passagem de volta para as Minas Gerais. Para meu espanto e incredulidade, aconteceu exatamente o que eu não esperava: o jovem recusou a oferta. E o fez veementemente!
— “Oxente – disse a ele meio que intrigado. – O amigo não quer regressar para a sua terra? Estou lhe pagando o bilhete sem pedir nada em troca. Aceite como um presente de coração!”.
Qual o quê! O engraçadinho tratou de sair da minha aba sem se beneficiar da alvissareira generosidade que lhe oferecia. Sumiu do pedaço e, de repente, se tornou invisível, mais difícil de pôr os olhos em cima que mulher virgem em terra de tarado. Graças à Deus, estava certo. Senti que ficou pairando no ar, no curto interregno de nosso bater de línguas, uma cansativa transição frustrada entre a verdade e a mentira em rejeitar a minha oferenda, e, por derradeiro, se eximir sem mais detenças, da auspiciosa ajuda.
Valeu, a bem da verdade. Tirei um peso da consciência. Penso sempre o seguinte: se não estendo à mão à caridade dos necessitados, me condenaria a depois. Poxa!... Poderia ter concordado... se ofereço ajuda, como de fato me dispus, de coração aberto, o que aconteceu? Me deparei com uma surpresa desagradável. A repugnante esquivança de uma negação fria e repulsiva. Nessa hora, a gente se sente impotente, fraco, débil, como se passado para trás. Ele não queria a passagem, deixou isso bem claro. Almejava o dinheiro vivo.
Fatos como esses, me levam a analisar o impasse, como se espiasse para quadros de um mesmo pintor com molduras diferentes: 1) o cidadão pretendia, realmente me enlear numa garabulha (embrulhada) maquiavélica e, ao final, passar a mão no meu rico e suado dinheirinho ou, 2): não viera de onde havia dito coisíssima nenhuma e só almejava inteirar a grana, não para uma passagem de regresso à terra de origem, obviamente com a finalidade preestabelecida de mergulhar no submundo das drogas.
Ou coisa pior, vai se saber, agora, nessa altura do campeonato. Embora estivesse vestido com certo apuro, acompanhado de uma porção de malas à tiracolo, percebi nessa mescla de tantas palavras ardilosas que o seu objetivo não se prendia a rever seu velho e abençoado lar, sua casa, seus pares. Ao contrário, tinha por pretensão me engambelar, como certamente tentaria (ou tentara) fazer com outros, antes de me acercar, numa patranha mal ajambrada (desajeitada) com finalidades inverídicas e escusas. Nesse escopo meio confuso, pela falta de lisura das pessoas, até pelas mentiras, falta de decoro e compostura, acaba o justo pagando pelo pecador.
Ora, se a intenção do cidadão se baseava, mesmo, em voltar nos passos que o trouxeram à um fiasco, por que recusou a minha oferta ao seu pedido de socorro? Diante dessa imprevista e inesperada rejeição, restou patente que ele não estava com nenhuma vontade de embarcar para Belo Horizonte. Recepcionava, por certo, dar o surrado “golpe da volta para casa” e, pior, repetindo, tricotando por conhecidos fios de uma malha de linhas retorcidas que não o levaria à lugar nenhum, a não ser a desgastante indução maligna de algum outro futuro imprudente desavisado a rodopiar feito pião bêbado em “esparrelado” (logrado) erro.
Não só ao juízo falso, igualmente ao desvio do caminho reto, sem mencionar a fraude, embutida no artigo 171 do Novo Código Penal, tendo como seslóio (*) à conversa mole que não convenceria nem uma dessas nobres velhinhas que não pensam duas vezes antes de abrirem as bolsas e doarem os poucos tostões disponíveis, pensando nas regalias do “emprestando aos pobres, se tornarão virtuosas aos olhos do Criador”. Apesar desse entrave, eis que a Carina apontou lá longe, cheia de malas e sacolas. A sua chegada, como sempre, despertando em mim, il bimbo nel vecchio (a criança no velho).
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* Seslóio – Não confundir com soslaio. Seslóio variante de referência, ou alusão.
Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.
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