domingo, 12 de janeiro de 2025

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 07

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José Erigutemberg Meneses de Lima nasceu em Fortaleza/CE, radicou-se em Blumenau/SC. Advogado aposentado do Banco do Brasil, com graduação em Ciências Econômicas e Direito pela FURB - Fundação Universidade Regional de Blumenau, dedica-se às letras, escrevendo prosa na forma de crônicas, contos, ensaios, textos jurídicos e poesia, especialmente, sonetos. Publicou “Raptos Líricos” - Sonetos, 2005; Portas da Solidão pela Fundação Cultural de Blumenau, 1996.

Monteiro Lobato (História dos dois ladrões)

Era uma vez um boiadeiro lá do sertão, que tinha cara de bobo e fumaças de esperto. Um dia veio ao Rio de Janeiro gastar os cobres de uma boiada. Logo que desceu do trem e ia se encaminhando para um hotelzinho próximo, foi abordado por um homem de cara ainda mais boba que a sua.
 
— Boa noite, meu senhor! — saudou o homem humildemente.

O boiadeiro respondeu com um "boa noite" desconfiado, e foram andando juntos. O homem começou a contar uma história muito comprida. Disse que era da roça e estava completamente zonzo naquela capital. Não conhecia ninguém, não sabia tomar bondes, atrapalhava-se com qualquer coisinha — e o pior de tudo era o medão de ser roubado.

— Isto aqui — disse ele — é gatuno de todos os lados. Ninguém pode confiar em ninguém. Os piratas não dormem. Se a gente está com dinheiro no bolso, eles conhecem pelo cheiro — e tanto fazem que deixam uma pessoa limpa.

— Se o senhor tem tanto medo, é sinal de que está empatacado — disse o boiadeiro.

O homem correu os olhos, com desconfiança, dum lado e doutro; depois respondeu quase num cochicho:

— O senhor adivinhou. Todo o meu medo vem de trazer no bolso um pacote de notas no valor de dez mil cruzeiros, que lá na minha terra me encarregaram de entregar à Santa Casa. Mas não sei onde é a Santa Casa. Se pergunto, ensinam-me errado — ou então desconfiam de que estou com dinheiro...

E deu um suspiro. Depois continuou:

— Aquela gente lá da roça não imagina o que é isto aqui. Nem eu imaginava coisa nenhuma. Se soubesse, não vê que não me encarregava deste maldito dinheiro. Dez mil cruzeiros! Se perco o pacote, ou se algum pirata me passa a perna, vão dizer por lá que roubei — e fico desacreditado.

— E que pretende fazer? — indagou o boiadeiro.

— Minha ideia é descobrir um homem de bem que queira encarregar-se da entrega do dinheiro. Mas não acho esse homem. As caras desta terra não me inspiram a menor confiança. Só a sua. Assim que vi o senhor, tive um pressentimento no coração: "Aquele, sim, aquele tem cara de homem de bem." Por isso me aproximei.

O boiadeiro ficou muito lisonjeado com a boa impressão que o homem fazia dele.

— Lá isso, sou. Graças a Deus tenho um nome limpo. Quem quiser tratar com pessoa séria, me procure.

O homem do pacote suspirou.

— Deus seja louvado! Custou, mas achei. Meu coração não nega. Quando o vi descendo esta rua; palpitei cá comigo: "Meu salvador vai ser aquele homem..."

— Mas de que maneira acha que eu possa servi-lo? — perguntou o boiadeiro.

— De um modo muito simples. Eu lhe dou o pacote dos dez mil cruzeiros e o senhor faz a entrega à Santa Casa.

Os olhos do boiadeiro brilharam.

— Pois estou às suas ordens! — disse ele. — Neste mundo um tem de servir o outro. Já que lhe inspiro tanta confiança, disponha dos meus préstimos.

— Ora graças! — suspirou o homem, tirando o pacote do bolso. Era um pacote de notas graúdas, muito bem amarrado, com uma de cem cruzeiros em cima.

— Pois aqui está o pacote, meu senhor. E eu fico imensamente agradecido da sua bondade, Ah, nem imagina o peso que me tira do coração! Uf! Esse dinheiro estava me deixando doido...

O boiadeiro pegou no pacote e foi abrindo a mala para guardá-lo.

— Espere! — disse o homem. — Eu tenho no senhor a mais absoluta confiança, mas sempre é bom que me dê uma garantiazinha — aí um dinheirinho qualquer, porque afinal de contas eu acabo de lhe entregar dez mil cruzeiros. Dez mil cruzeiros é uma fortuninha...

O primeiro ímpeto do boiadeiro foi restituir o pacote. Depois mudou e disse, pondo a mão no bolso:

— Serve uma garantia de mil e quinhentos cruzeiros? É todo o dinheiro que tenho no bolso.

O homem cocou a cabeça vacilante. Afinal resolveu:

— Serve. É pouco, mas serve...

O boiadeiro puxou os cobres e deu a de mil e quinhentos cruzeiros.

Despediram-se cada qual seguindo numa direção.

— Dez mil cruzeiros! — foi murmurando o boiadeiro. — Dez mil cruzeiros! Para que precisa a Santa Casa de tanto dinheiro? Muito melhor eu distribuir isto lá pelos pobres da minha terra — pelo menos metade. É justo que a outra metade fique comigo, em pagamento do trabalho...

No hotel pediu um quarto, onde se fechou para contar o dinheiro. Só encontrou aquela nota de cem cruzeiros. O resto era papel de jornal…
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José Bento Renato Monteiro Lobato nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos. Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes: 
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia.  Publicado originalmente em 1937.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vereda da Poesia = 199


Trova de
ARI SANTOS CAMPOS 
Balneário Camboriú/ SC

Vou em frente e devagar 
procurando uma saída, 
pois não consigo acertar 
o rumo da minha vida!
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Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Orações

Frente a minha morada, o poste é sentinela alerta.
A janela está aberta.
Pingos de chuva luzentes riscam o ar.
Cheiro de terra molhada
Penetra minha alma enclausurada.
Quero sair correr, me perder no tempo,
Mas fico sozinha pingando saudade.
Chora o céu escuro,
Lembranças atravessam o muro.
Oh poeta triste!  Escuta o silêncio,
Entre cadeiras vazias, livros espalhados na mesa,
Ideias azuladas, sufocadas,
Veladas de mistério.
Sonha poeta; preenche linhas vazias,
Noite de melancolia inútil, profanada.
Procura as palavras espelhadas no vidro.
Suspiros embaçados, devaneios…
E, se esvai o dia, o agora.
Uma chuva de orações molha
Minha alma nua.
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Trova de
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

Não te aflijas, inda que
o agora em dor se resuma.
O homem sensato entrevê
a luz na mais densa bruma.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Roda de fiar

As lembranças tecidas em lãs,
Algodão e linho aquietam-se
E observam a antiga roda de fiar,
Transformando a palha em ouro -
"Rumpelstíltskin"...
A roca
Lembra? leme de um barco
Roda da Vida, num contínuo movimento
De fibras em fios,
As mãos invisíveis do Tempo
Ainda permanecem
A mover a roda de fiar - tecer destinos
Delicados fios entrelaçando
Sonhos e vida -
Enquanto,
Uma, curiosa, gota de sangue
Desliza no fuso...
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

A brisa afasta a cortina,
e uma nesga de luar,
fugindo à fria neblina,
vem aos meus pés se abrigar.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Pregados aos silêncios das paredes
(Mário Sousa Ribeiro, in “Textos de amor”, p.118)

Pregados aos silêncios das paredes
Há chapéus em retratos esquecidos
Bengalas e bigodes retorcidos
Luvas sobre anéis ricos que não vedes.

Pestanas por detrás de finas redes
Complementos das rendas dos vestidos
De enlaces e noivados prometidos
Que saciem as mais que humanas sedes.

Crianças rindo em tão ingênuas poses
São cobaias das vis metamorfoses
Que ar sisudo lhes há de conferir.

São os nossos avós, nossos parentes
E se hoje nos achamos diferentes
É porque não sabemos nos despir. 
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Triverso de
FRANCISCO DE ASSIS NASCIMENTO
Goiânia/GO

Letras em fulgor
E solenes trilham.
Compor com amor.
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Virgens mortas

Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velo engaste azul do firmamento:
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

Ó vós, que, no silêncio e no recolhimento
Do campo, conversais a sós, quando anoitece,
Cuidado! – o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai sussurrar no céu, levado pelo vento...

Namorados, que andais, com a boca transbordando
De beijos, perturbando o campo sossegado
E o casto coração das flores inflamando,

- Piedade! elas veem tudo entre as moitas escuras...
Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras!
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Lágrimas, fuga das águas 
por um riacho inclemente 
que numa enchente de mágoas 
inunda o rosto da gente!
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Poema de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/ PR

Lira da poesia 

Quando a luz da manhã se faz presente,  
o poeta desperta, a alma em ebulição,  
a inspiração se faz reluzente,  
e a esperança surge com nova emoção.  

Ao entardecer, o sol se retira,  
as sombras bailam segredos no ar,  
mas a caneta persiste em sua lira,  
escrevendo versos que não vão cessar.  

Assim, entre o amanhecer e o anoitecer,  
o coração bate forte, anseia amar,  
cada estrofe é um sonho que está a crescer,  
e um futuro luminoso a se desenhar.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Sai do museu, braço dado 
com sua sogra, o Sinfrônio:
- e o guarda grita, alarmado: 
- "Tão roubando o patrimônio!"
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Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Canção da Garoa

Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.

O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.

E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin…
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Trova de
DOMITILLA BORGES BELTRAME
São Paulo/SP

Nesta vida rotineira,
tua saudade em minha alma
é cantiga de goteira
em noite de chuva calma!
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Hino de
ALVORADA DO SUL/ PR

O teu nome alvorada do sul
Sintetiza o despertar para o futuro
Em teu céu sempre azul o cruzeiro a brilhar
Mostra o rumo que tens a trilhar

E o alvorecer de um novo dia
Surge esperançoso de sucesso
Cheio de paz e alegria, na marcha firme.
Para o progresso

E o teu povo trabalhador confia no amanhã
Cheio de esplendor
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor
 
O teu nome alvorada do sul
Sintetiza o despertar para o futuro
Em teu céu sempre azul o cruzeiro a brilhar
Mostra o rumo que tens a trilhar
 
Em cada dileto filho teu
Vive a chama de um ideal
És o amor que nasceu
De um desejo bom e triunfal
 
E o teu povo trabalhador confia no amanhã
Cheio de esplendor
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor
 
O teu nome alvorada do sul
Sintetiza o despertar para o futuro
Em teu céu sempre azul o cruzeiro a brilhar
Mostra o rumo que tens a trilhar
 
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor 
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Liberdade

Eu quero a liberdade e a leveza do vento,
A brincar co'a folhagem  a rolar  na grama.
Eu quero a submissão  da criança que mama
E a  servidão do frade  a buscar seu intento.

Eu quero a autonomia  e a coragem de um cego
A andar pela avenida e ruas da cidade,
Buscando a sinergia entre o homem  e a liberdade,
Com a espontaneidade e a visão de seu ego.

Em busca da existência  e condição humana,
querendo a independência  e nada o desengana;
Nesse comportamento há medos que o consomem.

E na disposição de sua liberdade
Está a proposição e na eterna vontade
A força propulsora  da liberdade do homem.
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Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Roxa ou preta quando antiga, 
mas rubra se a dor maltrata. 
Por isso não há quem diga 
da saudade a cor exata.
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Uma Lengalenga de Portugal

A Boneca
 
 Tia Anica Marreca
 Traga-me uma roca
 Pra minha boneca
 Que ela é careca.
 Tem um pé de pau
 Quando vai pra cama
 Faz trau tau tau.
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Quadra Popular de
DEODATO PIRES
Olhão/ Portugal

Quer tenha ou não tenha sorte
na vida que Deus lhe deu,
não pode fugir à morte
todo aquele que nasceu.
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Aluísio de Azevedo (No Maranhão)

Quando eu tinha treze anos, lá na província, uma das famílias que mais intimamente se dava com a minha era a do velho Cunha, um bom homem, já afastado do comércio de retalhos, onde fizera o seu pecúlio, e casado com uma senhora brasileira, Dona Mariana.

Tinham um casal de filhos: Luís e Rosa, ou Rosinha, como lhe chamávamos. Luís era mais velho que a irmã apenas um ano e mais moço do que eu apenas meses. 

Fomos, por bem dizer, criados juntos, porque quando não era eu que ia visitá-los, eram eles dois que vinham passar o dia comigo.

Moravam na praia de Santo Antônio, num grande e belo sobrado, cujos fundos, como o de todas as casas do litoral da ilha do Maranhão, davam diretamente para o mar. 

O Cunha, além desta casa, que era de sua propriedade, tinha um sítio onde ia frequentemente passear com a família.

Quase sempre levavam-me também. O sítio chamava-se “Boa-Vinda” e ficava à margem do rio Anil, para além de Vinhais. Embarcava-se no próprio quintal da casa. 

Estes passeios à Boa-Vinda constituíam um dos maiores encantos da minha infância. Criado à beira mar na minha ilha, eu adorava a água; aos doze anos era já valente nadador, sabia governar um escaler ou uma canoa, amainar com destreza a vela num temporal, e meu remo não se deixava abater facilmente pelo remo de pá de qualquer jacumaúba* pescador de piabas.

Saíamos quase sempre no segredo da primeira madrugada e chegávamos ao sítio ao despontar do sol.

Ah! que deliciosos passeios! Que belas manhãs, frescas, deslizadas por entre os mangais, sentindo-se rescender forte o odor salgado das maresias!

E depois, lá no sítio, instalados na varanda de telha vã, que prazer não era devorar o almoço, assentados todos em bancos de pau, em volta de uma mesa coberta de linho claro, a beber-se o vinho novo do caju por grandes canecas de terra vermelha! E depois — toca a brincar! Toca a correr por aí afora, em pleno mato, cabelos ao vento, corpo e coração à larga! 

E, à tarde, depois do jantar, quando a natureza principiava a cair nos desfalecimentos chorosos do crepúsculo, vínhamos todos assentar-nos na eira, defronte da casa, ouvindo o pio mavioso e plangente das sururinas que se açoitavam para dormir nas matas próximas. Então, Luís ia buscar a sua flauta, Rosinha o seu violão, e eu, acompanhado por eles, punha-me a cantar as modas mais bonitas de minha terra.

Dona Mariana e o Cunha gostavam de ouvir-me cantar. Nesse tempo a minha voz tinha ainda, como minha alma, toda a frescura da inocência.

À noite, enfim, metiam-se de novo no balaio as vasilhas do farnel, carregava-se com tudo para bordo da canoa, estendia-se por cima uma vela de lona, em que nós assentávamos os três, Luís, a irmã e eu; o Cunha tomava conta do leme, com a mulher ao lado; três escravos encarregavam-se dos remos, e rebatíamos para a cidade.

Tanto era risonha e viva a ida pela manhã, quanto era arrastada e quase triste a volta pela noite. Dona Mariana começava a cabecear de sono; o Cunha punha-se a falar conosco sobre as nossas obrigações de aula no dia seguinte. Luís em geral deitava-se com a cabeça no regaço da irmã, e eu esticava-me sobre a lona, de rosto para o céu, a olhar as estrelas.

Uma noite voltávamos do sítio nessas condições. Mas havia luar.

E que luar! Desse que parece feito para quem anda embarcado; desse que vai espalhando pelo caminho adiante brancos fantasmas que soluçam correndo pelas águas, surgindo e desaparecendo com as suas mortalhas de prata, numa agonia de morte, como se fossem as almas aflitas dos afogados.

Tínhamos, já passado Vinhais havia muito e íamos agora deixando atrás de nós, uma por uma, todas as velhas quintas do Caminho-Grande, que dão um lado para o Anil. Dona Mariana toscanejava como de costume, recostada numa almofada, o rosto pousado na palma da mão; Rosinha, com um braço fora da canoa, brincava pensativa, com as pontas dos dedos na orla fosforescente que se fazia nas águas a cada rumorosa braceagem dos reinos; Luís cantarolava distraído; e o velho Cunha, vergado sobre o braço do leme, como seu grande chapéu de carnaúba derreado para a nuca, a camisa e o casaco de brim pardo abertos sobre o peito, fitava as praias que íamos percorrendo, como se a beleza daquela noite do Norte e a solidão aquele formoso rio azul lhe enleassem traiçoeiramente o espírito burguês, fazendo o milagre de arrebatá-lo para um devaneio contemplativo e poético.

Qual! No fim de longo recolhimento, quando passávamos em certa altura do rio, disse-me ele com um suspiro de lástima: 

— Que desperdício de dinheiro e quanta incúria vai por aqui!... Vês aquelas ruínas cobertas de mato? Aquilo foi principiado há bem quarenta anos para um grande armazém de alfândega... nunca passou do começo! Teve a mesma sorte do cais da Sagração e do dique das Mercês! Que gente!

E eu pus-me a considerar as ruínas, que pareciam crescer à luz do luar; e o Cunha, possuído de uma febre de censura, continuava a derramar pelas tristes águas do Anil a sua cansada indignação contra os malditos presidentes de província, que tão mal cuidavam da nossa pobre e querida capital.

E, à marcha monótona e vagarosa da canoa, ia-se desdobrando lentamente ao lado de nós todo o flanco alcantilado da cidade.

Surgiu à distância o largo dos Remédios, elevando-se da praia como um velho baluarte dos tempos guerreiros.

Ouvia-se já um rumor tristonho de casuarinas. 

— Está ali! exclamou o Cunha, estendendo o braço para o lado de terra. Para que esbanjar dinheiro com uma estátua daquela ordem, quando há por aí tanta coisa de necessidade séria de que se não cuida?... 

Olhei na direção que o Cunha indicava e vi a estátua de Gonçalves Dias, erguida no meio do largo dos Remédios, toda branca, muito alta, riste ao luar como a solitária coluna de um túmulo.

Não achei ânimo nem palavras para protestar contra o que dizia o velho Cunha. De Gonçalves Dias sabia apenas que fora um poeta infeliz e nada mais.

— É!  rosnou o pobre homem. Para o luxo de encarapitar aquele grande boneco no tope daquele imenso canudo de mármore — houve dinheiro! E dinheiro grosso! Todo o povo do Maranhão concorreu! Ao passo que para concluir o trapiche de Campos Melo, que é uma necessidade reclamada todos os dias pelo comércio não apareceu ainda quem se mexesse? Súcia de doidos! Isto é uma coisa tão revoltante que eu confesso, chego quase a arrepender-me de me ter naturalizado!

Tornei a olhar para a estátua e, não sei porque, as palavras do velho Cunha não me produziram desta vez a impressão de respeito que costumavam exercer sobre o meu espírito de criança. Pungia-me aquilo até como uma blasfêmia cuspida sobre uma imagem sagrada. Lá em casa de minha família todos veneravam a memória do nosso poeta, e na escola onde eu aprendia a escrever a língua portuguesa o meu próprio mestre chamava a ele mestre.

No entanto não opus uma palavra de defesa; mas, fitando agora de mais perto, a branca figura de pedra, que na sua mudez gloriosa encara aquele mesmo mar que serviu de sepultura ao cantor das palmeiras de minha terra, achei-lhe o ar tão tranquilo, tão superior, tão distante de mim e do Cunha, que balbuciei para este, timidamente:

— Mas, seu Cunha, se o povo lhe fez aquela estátua, é porque ele naturalmente a mereceu, coitado!

— Mereceu?! Por quê?! O que foi que ele fez?... "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá" ?! Está aí o que ele fez! Fez versos!

E o Cunha, no auge da sua indignação, redobrou de fúria contra a loucura dos homens, que levantavam estátuas a poetas em vez de cuidar dos trapiches que o comércio a retalho reclamava.

Nesse instante a canoa desusava justamente por defronte do largo dos Remédios.

A lua, perdida e só no meio do céu luminoso, banhava no seu misterioso eflúvio a imóvel e branca figura de mármore.

É Rosinha, que não prestara atenção à nossa conversa, abriu a cantar, com a sua voz cristalina de donzela, uma das cantigas mais populares do Brasil:

Se queres saber os meios
Porque às vezes me arrebata
Nas asas do pensamento
A poesia tão grata;
Porque vejo nos meus sonhos
Tantos anjinhos dos céus,
Vem comigo, oh doce amada!
Que eu te direi os caminhos
Donde se enxergam os anjinhos,
Donde se trata com Deus.

E aquela menina, na sua virginal singeleza, estava desafrontando Gonçalves Dias, porque são dele os versos que ela ia cantando aos pés da sua estátua, inocentemente; rendendo, sem saber, enquanto o pai o amaldiçoava, o maior preito que se pode render a um poeta: repetir-lhe os versos, sem indagar quem os fez. 

Não sou supersticioso, nem o era nesse tempo, apesar dos meus treze anos, mas quis parecer-me que naquele momento a estátua sorriu. 

Efeitos do luar, naturalmente.
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* jacumaúba = piloto de canoa em navegação arriscada
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Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís/MA, em 1857 e faleceu em 1913, em Buenos Aires/Argentina. Caricaturista, jornalista, escritor e cônsul brasileiro. Sua trajetória literária inaugurou a estética naturalista no Brasil. Demonstrou, desde muito jovem, grande interesse por desenho e pintura, o que o levou a mudar-se para o Rio de Janeiro em 1876, a fim de matricular-se na Imperial Academia de Belas Artes. Para manter-se na capital, desenhava caricaturas para os jornais O Fígaro, A Semana Ilustrada, O Mequetrefe, e Zig-Zag. Também rascunhava cenas de romances. Em 1878, retorna a São Luís, onde dá início à sua carreira de escritor no ano seguinte, com o romance “Uma lágrima de mulher”, ainda aos moldes da estética romântica. Trabalha também para a fundação do jornal O Pensador, publicação anticlerical e abolicionista. Em 1881, lança seu primeiro romance naturalista, “O mulato”, abordando o assunto do preconceito racial. Bem recebido na corte, apesar da temática da obra ter sido considerada escandalosa, Aluísio embarca de volta para o Rio de Janeiro, decidido a ganhar a vida como escritor. Produz diversos folhetins, que garantiam sua sobrevivência. Nos intervalos dessas publicações, geralmente melodramáticas e românticas, dedicava-se à pesquisa e à escrita naturalista, que o consagrou como grande autor brasileiro. Foi nessa época que lançou suas principais obras, Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). Aprovado em concurso para o cargo de cônsul em 1895, abandona a carreira literária. Reside na Espanha, no Japão, na Inglaterra, na Itália, na França, no Uruguai, no Paraguai e na Argentina, onde falece, em Buenos Aires, em 1913.

Fontes: 
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing