Laureano, solteirão mais do que convicto, não se dava com Deóclides, o cunhado. Os dois não trocavam palavras, apesar de morarem no mesmo sítio. Aliás, o modo como essa situação se deu é até curiosa e, por isso, vale a pena ser contada.
Deóclides, aos 23 anos, se viu apaixonado por Gilda. A moça pareceu interessada, tanto é que aceitou o pedido de casamento sem esboçar qualquer indício de desapontamento. Talvez fosse boa atriz ou, então, tímida o suficiente para contrariar a aprovação da família, ainda mais porque o noivo apresentava boa procedência, sem contar que era proprietário de bom comércio na cidade e residia em bela propriedade rural.
O casal, apesar de algumas rusgas, viveu uma vida harmoniosa. Deóclides a tudo aceitava, inclusive o pedido da mulher para que o irmão dela, Laureano, residisse no sítio. Obviamente em um pequeno galpão, logo transformado em moradia. Gilda sabia que o irmão e o marido não se bicavam, mas Laureano, com as finanças às minguas, precisava de um teto.
O que parecia ser circunstância momentânea se estendeu por décadas. E, durante todo esse tempo, nenhuma palavra foi trocada entre os cunhados. Se precisassem se comunicar, usavam Gilda como intermediária. Mas eis que, por mera distração, Gilda tropeçou numa pedra qualquer de Drummond e bateu a cabeça em outra menos poética.
O enterro se deu no dia seguinte. Laureano e Deóclides, cada um no seu canto, verteram lágrimas sinceras. Em seguida, voltaram para o sítio, onde se isolaram ainda mais um do outro. É verdade que, diante de tamanha perda, pensaram em se reconciliar, fato que jamais aconteceu. Rabugentos que eram, deixaram de lado qualquer tentativa de aproximação.
Mais um par de anos, foi a vez de Laureano deixar o plano material. O corpo enrijecido foi encontrado na poltrona. Quem o achou foi Chiquinha, empregada de Deóclides. Não que ele estivesse preocupado com o sumiço do cunhado. Era mais por curiosidade sobre o que havia acontecido com o desafeto.
— Chiquinha, vá ver o que aconteceu com o irmão da falecida.
Assim que retornou, a mulher, cara mais branca do que vestido de noiva intocada, balbuciou:
— Patrão, o homi morreu.
— Desgraça! Agora vou ter que pagar até pelo enterro daquele traste.
Durante o velório, Deóclides não fez questão de manter as aparências. Tanto é que chegou bem perto do defunto e disse o que estava represado durante mais de 40 anos. Só não cuspiu no rosto do cunhado porque pensou que não valia a pena gastar ainda mais saliva.
Deóclides retornou à noite para o sítio. Sentou-se na cadeira de balanço na varanda e, pensativo, fitou a residência de Laureano madrugada adentro. Acabou adormecendo, sendo despertado pelo canto dos galos no amplo terreiro. Resmungou algumas palavras e ergueu o corpanzil dolorido.
Quase uma semana após o enterro, Deóclides mandou atear fogo no barraco do desafeiçoado. Foi momento de puro regozijo. Abriu a melhor garrafa de vinho tinto e a sorveu por inteiro, enquanto as labaredas tomavam paredes, telhado, assoalho e móveis do antigo abrigo do finado.
Livre! Finalmente livre! Deóclides não precisaria mais se preocupar com o cunhado. Ele até imaginou que o desagradável sujeito estivesse tendo uma conversinha com o Demônio em pessoa.
— O bate-papo deve estar fervendo!
No dia seguinte, Deóclides foi se certificar de que só havia cinzas. Para seu espanto, percebeu um cofre intacto. Chegou mais perto, pegou o lenço no bolso da calça e limpou o objeto, que estava trancado. Qual o segredo? Tentou pelos próximos dois dias, até que mandou vir o chaveiro.
— Seu Deóclides, faço o serviço.
— Pois faça!
— Hum... Quer o modo ligeiro ou demorado?
— Ligeiro, homem!
Menos de meia hora após, o cofre estava arrombado. Deóclides, precavido, pagou o preço combinado para o chaveiro e, em seguida, mandou o chaveiro ir embora. O dono do sítio observou o profissional entrar no automóvel e sumir na estrada de chão.
Somente após ter certeza de que ninguém o estava observando é que Deóclides, finalmente, abriu a porta do cofre. Caiu para trás, ofuscado pelos raios do sol refletidos nas diversas barras de ouro devidamente empilhadas. O miserável do cunhado, apesar de ter levado uma vida de favores, era milionário.
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.
Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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