À memória de meu pai
A casa da Mamma Luigia seria igual a tantas de imigrantes italianos nos fins do século dezenove, não fosse seu jeito de ser; alta, esguia, nariguda, magriça e mandona, a ponto de fazer seu marido Ângelo, coadjuvante no trato das coisas
A família ocupava uma residência com tarefas definidas: as noras e filhas - que não estivessem de resguardo cuidavam da cozinha, da ordenha, da roupa e da casa, enquanto os filhos e genros, da roça, da tarefa de pilar arroz, do moinho de fubá, dos animais. Aos bambini cabia o trato das galinhas e a obrigação de levar, aonde os homens estivessem, água fresca e café com broa por duas vezes ao dia.
A vida seguia na aspereza dos dias e nas noites nos aconchegos dos enormes colchões de palhas e, de resto, a lentidão do tempo em que a natureza com suas cores, clarões e vozes, comungava com a simplicidade do povo tendo Deus e os santos por guardiões do amor que gestava, de permeio.
Nessa labuta passou o tempo, até que num momento Mamma Luigia despejou:
- O "Dorfo" vai pra escola, precisamo de alguém mais sabido que noi, que leia o que 'essa gente' põe na nossa frente.
Tratava-se de Rodolpho, o caçula, e do contrato de meação que o proprietário da terra os fazia assinar para garantir sua estada no trato do cafezal. Daí a preocupação em ser menos lesados nos preços das compras, da entrega, pesagem, das somas e subtrações.
Ninguém se opôs. Já haviam passado da idade para a escola, e às mulheres, não era dado esse direito. Ângelo fez a matrícula do menino, comprou os materiais e um saco branco, para o embornal. O bambino Dorfo foi levado na manhã seguinte. De carroça. Depois iria sozinho, a pé, com a obrigação de sendo sabido, aprender para conseguir resolver os problemas de conhecimento da família.
O moleque arruivado logo aprendeu a ligação das letras compondo palavras e a formação de frases, que um mais um dá dois e muita coisa mais, o que chamou à atenção da professora. Fora feito para a escola, especialmente quando os cadernos voltavam com frases como: "parabéns, vá em frente", "isso mesmo! Estou satisfeita." escritos na parte superior das folhas.
- Buonno, buonno, bambino mio -, sorria ela, embevecida enquanto lhe gadanhava os cabelos. O Dorfo fora feito para os conhecimentos de que tanto precisavam. E teria um horizonte inteiro a si descortinado com as oportunidades derriçadas aos seus pés como os grãos de café, na colheita, a leitura e o aprendizado faziam dos homens pessoas importantes, traziam-lhe as chances dos bons negócios e até o céu derramaria em suas mãos a abençoada chuva da prosperidade, tal como aquela que volta e meia escorria dos telhados, ganhava as lavouras e as faziam florescer.
Bastasse seguir as regras da humildade e da decência: o mundo das letras, das mãos macias, do ordenado certo, enquanto eles continuariam a depender da lavoura, do meeiro-proprietário, do atravessador que os fiava na entressafra e cobrava em dobro depois. Da lida inglória do homem da roça.
Quanta sabedoria naqueles sonhos!
Quando o moleque chegou mostrando resolvidas as contas mais complicadas de aritmética, todos se empolgaram. Era mesmo o mais sabido, e chegara a hora dele começar a pagar pelo benefício. Então, ela ordenou:
- Dorfo, tu sarai il maestro de noi tutti.
Foi o que bastou para que nos começos das noites, ao redor da grande mesa da cozinha iluminada com lamparinas, lápis começassem a riscar copiando nos cadernos, as primeiras letras desenhadas por Dorfo na lousa improvisada: A-E-I-O-U.
Mamma Luigia observava a segurança do bambino que, apesar do respeito que dedicava aos irmãos, mostrava destreza e paciência diante da dificuldade que tinham em desenhar nas entrelinhas, os complicados rabiscos.
Com o tempo, mais familiarizados com os instrumentos de escrita e com suas pontas finas e frágeis, as mãos calosas foram se adaptando a juntar as letras em carreirinha e a montar seus nomes, os sobrenomes, as frases curtas do dia a dia como; o sol está quente, a lua está clara; e mais tarde, pensamentos longos e enigmáticos, saídos do coração.
O mestre Dorfo havia alfabetizado seus irmãos e cunhados como num passe de mágica, tão capaz, tão dono de si com um pedaço de giz na mão. Era um verdadeiro professor. E só não o fez, ensinando a mamma e su padre Angelo, porque eles não quiseram: - estavam tropo vecchi para pegar num lápis; era per i Giovani.
O vento que leva o cisco, leva também palavras e, nesse soprar, a notícia correu pela colônia. Foi o que bastou para que a cozinha da grande casa, de hora para outra, ficasse pequena para o abrigo de vizinhos que chegavam com cadeiras e lamparinas, dispostos a aprender. Homens de mãos calosas, mulheres de toucas e xales puseram-se ali, sentados em união, às lições encantadoras da aprendizagem das coisas estupendas que o pequeno Dorfo tinha a oferecer.
Il mestre Dorfo, agora de calças compridas, contava histórias dos navios de Cabral, dos textos de Machado de Assis sobre a aurora de esperança do país a cada amanhecer, da terra que nunca negou frutos a quem plantasse a semente, e explicava sobre os astros do céu, sobre as constelações, as mudanças da lua com a sua importância à pesca e agricultura, os planetas do cosmo, as intrigas políticas do poder republicano que o jornal semanal trazia, as coisas intrincadas da Primeira Guerra, o amor ao Ser Supremo e, pacientemente, os ensinava ler e escrever seus nomes, as datas, os acontecimentos, a fazer contas de mais, de menos, de dividir e de multiplicar.
Era il maestro, che solo deto la verità, como vaticinara a mamma.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs: Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas. Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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