Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir convenientemente. Quase sempre, na hora das refeições, uma das crianças ficava com fome. O Pai lastimava-se de sua miséria e, na falta de outro auxílio, deliberou abandonar um dos filhos na floresta. Tirou a sorte e recaiu na filhinha Maria que era muito inteligente, bonita e trabalhadora.
O homem levou a mocinha para a floresta e a deixou debaixo de uns pés de araçá, recomendando que se orientasse pelas pancadas do machado com que ele ia derrubar uma árvore para tirar uns favos de mel de abelhas.
Maria ficou, ficou, ficou. As horas passavam e o dia estava escurecendo quando ela ouviu umas pancadas. Procurou caminhar na direção do som e encontrou apenas o cabaço amarrado a um galho. O vento é que o fazia bater e provocava o barulho.
Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. Desceu e caminhou até deparar um casarão muito velho quase em ruínas, num descampado que metia medo aos mais corajosos.
Muito cansada e faminta, Maria rodeou a casa, entrou por uma porta larga e viu que as paredes estavam cheias de instrumentos de música e havia uma rede armada a um canto. A moça segurou um violino e tocou, tocou, tocou. De repente apareceu uma mesa coberta de iguarias fumegantes e apetitosas.
Uma voz misteriosa disse:
– Maria Gomes? O jantar está na mesa!
Maria jantou à vontade. Quando acabou, a voz se ouviu:
– Maria Gomes? Seu quarto é o último, no corredor!
A moça encontrou um quarto preparado de tudo, muito confortável, com roupa para mudar e objetos de uso. Deitou-se e dormiu tranquilamente.
Passaram-se muitas semanas. A moça tocava música; durante o dia, arranjava a casa, limpando-a. Não via pessoa alguma. Apenas a voz misteriosa dirigia o serviço.
Numa noite, a voz informou:
– Maria Gomes? Seu pai está doente. Quer ir vê-lo?
– Quero! – disse Maria Gomes.
A voz continuou:
– Amanhã pela manhã estará um cavalo branco selado esperando à porta. Dentro daquela gaveta há muito dinheiro. Leve quanto desejar para sua família. Tenha todo cuidado em obedecer a duas condições: primeira é não dizer onde e como está vivendo. A segunda é atender aos relinchos do cavalo. Quando ele der o primeiro relincho, despeça-se de todos. Ouvindo o segundo, esteja no meio do caminho e ao terceiro meta o pé no estribo. Se perder o cavalo nada mais posso fazer. Não esqueça!...
No outro dia tudo sucedeu como a voz ensinara. Maria encontrou o cavalo, com sela, montou-o e num minuto estava em casa do pai.
O velho melhorou logo que a viu e recebeu muito dinheiro, ficando todos satisfeitíssimos com a visita da moça que julgavam morta e devorada pelas feras da mata.
No meio da conversa, Maria ouviu o relincho do cavalo branco. Imediatamente abraçou o pai, os irmãos e as irmãs, recusando todos os oferecimentos, e correu para a estrada. Nada dissera de sua vida, embora fosse muito interrogada.
Ao segundo relincho do cavalo, a moça estava bem perto do animal e, mal este deu o terceiro sinal, Maria meteu o pé no estribo e foi transportada velozmente para o casarão misterioso no meio da floresta.
Assim outros tempos correram. Duas vezes Maria Gomes visitou seu pai. Na última ocasião o velho, já bem alquebrado pela idade e doença, faleceu. Maria chorou muito, agarrada com os irmãos. Soluçava tão alto que não ouviu o primeiro relincho do cavalo branco. Percebendo o segundo, correu como uma bala mas o terceiro relincho não a alcançou em ponto de montar.
O cavalo partiu e Maria Gomes continuou correndo atrás do cavalo, gritando, chamando e chorando. Já estava exausta quando o animal voltou, coberto de espuma e se deteve esperando que ela o montasse.
– Se você não corresse atrás de mim eu voltaria para matá-la à força de coices –, disse o cavalo encantado.
No outro dia a voz explicou:
– Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar você e completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.
A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.
Aí procurou empregar-se e, sendo robusto, benfeito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.
O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por quê, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas joias. O príncipe dizia à rainha velha: Minha Mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não!
A rainha velha dissuadia o filho dessa impressão, mas o príncipe teimava, teimava, teimava cada vez mais inseparável do Gomes.
Maria Gomes colocara o cavalo numa manjedoura vizinha ao seu quarto e não saía sem ele. Nunca montou outro animal apesar dos oferecimentos do príncipe.
Este vivia repetindo que os olhos de Gomes eram de mulher. A rainha velha aconselhou-o:
– Leve Gomes para uma caçada. Na hora de dormir arme as redes debaixo do jasmineiro grande que é encantado. As flores caem em cima das mulheres e as folhas em cima dos homens. Pela manhã, bote reparo onde ficaram as flores...
O príncipe foi com Gomes caçar. Armaram as redes, pela tardinha, debaixo do jasmineiro. O príncipe adormeceu logo e Gomes depois. As flores caíam na rede de Maria e as folhas em cima do príncipe. O cavalo branco que estava perto aproximou-se, relinchou e as flores caíram no príncipe e as folhas em Gomes.
Pela manhã o príncipe estava que parecia uma noiva ou um anjo, todo vestidinho de jasmins. Ficou decepcionado e voltou ao palácio sem saber da verdade.
A rainha velha deu outra orientação:
– Leve Gomes para um banho no rio. O jeito é você ficar sabendo...
Foram os dois. O príncipe caiu logo n’água e Gomes começou a despir-se lentamente, conforme o cavalo lhe dissera. Quando ficou apenas com a camisa, o cavalo começou a pular, a piafar, atirando patadas e desembestou pelo campo, obrigando Gomes e o príncipe, este nu em pelo, a correrem para aquietá-lo. Quando o conseguiram, Gomes estava molhado de suor e o príncipe cansadíssimo.
A rainha velha escolheu outro caminho:
– Convide ele para almoçar no palácio. Se for mulher sentar-se-á em cadeira baixa e esperará que a sopa esfrie.
O príncipe convidou Gomes e este foi ouvir o cavalo que lhe explicou tudo. No almoço, Gomes escolheu uma cadeira alta e tomou a sopa bem quente.
A rainha velha não desanimou:
– Quando estiverem conversando, em roda, sacuda uma laranja para ele. Se for mulher, habituada com a saia, abrirá as pernas para ter maior espaço e melhor aparar a fruta. Se for homem, juntará as pernas.
O cavalo, que adivinhava, avisou a Gomes. Sacudiram a laranja e Gomes apertou as pernas.
A rainha velha falou ainda:
– Só resta uma forma. Durma uma noite no mesmo quarto.
O príncipe convidou Gomes para um trabalho no palácio e o prolongou tanto que o falso rapaz foi obrigado a ficar para dormir nos aposentos do amigo. O príncipe esperou que Gomes adormecesse mas a moça resistiu toda a noite. Assim ainda a segunda, mas, na terceira, não podendo com as pálpebras, dormiu. O príncipe passou a mão pelo busto do amigo e encontrou a saliência dos seios.
– Eu bem sabia que você era mulher e não homem. Como estou apaixonado, prepare-se para casar comigo.
Pela manhã Maria Gomes foi onde estava o cavalo e contou tudo.
– Sei perfeitamente. Já chegou meu tempo de liberdade. Daqui a dias é 13 de junho, dia de Santo Antônio, meu padrinho. Peça ao Rei velho que marque umas cavalhadas para esse dia, convidando todo mundo. Eu comparecerei e te levarei comigo porque teu noivo sou eu!
Maria Gomes ficou radiante e foi pedir ao Rei velho que anunciasse umas cavalhadas, com jogo de argolinhas, para o dia de Santo Antônio. O Rei velho, que era muito influído para essas festas, convidou toda a gente e preparou um terreiro enorme, com arquibancadas para os fidalgos e as famílias assistirem.
No dia de Santo Antônio o terreiro ficou negrejando de gente. Cavaleiros sem conta compareceram, vestindo luxuosamente. Logo ao começar a justa surgiu um cavaleiro desconhecido, coberto de prata, magnificamente montado e correu argolinhas com todos os outros vencendo-os facilmente. Trouxe todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do Rei muito lisonjeado.
O príncipe achou o cavaleiro muito antipático e não o aplaudiu.
No segundo dia, o cavaleiro voltou, vestindo roupa de ouro, e venceu a todos, entregando as argolinhas à rainha velha.
No último dia o cavaleiro, vestindo diamantes, derrotou todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do príncipe, que virou o rosto para não fazer a vênia de agradecimento.
Nesse momento o cavaleiro atirou uma fita azul em Maria Gomes. Esta segurou uma ponta com o bico do pé e a outra com os lábios, fechando os olhos, como lhe dissera o cavalo, dias antes. Instantaneamente encontrou-se na garupa do cavalo que o cavaleiro montava.
Rei, rainha, príncipe, povo, todos correram para prender o raptor mas ninguém viu senão a poeira.
O cavaleiro galopou até o casarão velho. Parou e desceu Maria Gomes. Assim que esta pisou no chão, ouviu-se um estrondo e o casarão transformou-se num lindo palácio, resplandecente de luzes e cheio de criados, fidalgos e camareiros. Maria Gomes casou-se com o cavaleiro que era o cavalo encantado, e foram felizes como Deus com os anjos.
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LUÍS DA CÂMARA CASCUDO nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.
Fontes>
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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