Entrando, de manhã, no meu escritório, vi o velho calendário murcho, a oscilar com a aragem na parede fronteira à minha mesa de trabalho — só lhe restava uma folha... Para que arrancá-la se nada mais havia atrás daquele número que representava apenas uma recordação? Que o mísero levasse aquela última folha para o lixo.
Outro calendário, novo e gordo, carregado de folhas, como uma árvore na primavera, foi substituir o velho bloco lentamente consumido e foi somente essa substituição que me fez sentir o tempo, porque não notei diferença alguma na manhã — nem mais moça, nem mais velha. No alto o mesmo azul, no azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos e as mesmas andorinhas; na terra às mesmas árvores, as mesmas flores, as mesmas águas, entretanto, durante a noite, o mundo silenciosamente vencerá outro marco. E porque só o calendário acusava a passagem destruidora do tempo?
Indiferentemente, todas as manhãs, eu lhe arrancava uma folha e a lançava à cesta dos papéis. E que representava aquela folha morta?
Quem lhe escrevesse o inventário teria de encher resmas e resmas de páginas largas registrando a campanha dos homens “pelo ventre”, como diz Epicuro: vidas e mortes, fomes e frios, agonias e prazeres, bodas e enterramentos, marchas de exércitos e convênios pacíficos, cerimônias rituais e conciliábulos covardes, inventos e desilusões, sonhos desfeitos e utopias realizadas, travessias de águas e de areais estéreis, ascensões arriscadas e mergulhos no seio da terra à cata do ouro das minas, trabalhos serenos, estudos calmos, ânsias desesperadas, ambições voracíssimas, e, superiormente, a marcha tranquila dos astros luminosos.
Tudo isso continha a miserável folha morta que eu atirava, com desprezo, à cesta dos papéis inúteis; cada uma delas representava um dia.
Ai de mim! Cada uma delas era como um recibo que eu dava de um dia que vivera e como eles são avaramente contados, como o dinheiro de Shylock (1), era o meu capital de alento que assim se esgotava. Era, pois, de mim mesmo que eu arrancava aquelas parcelas — o calendário era apenas um símbolo, o que eu ia destruindo era o meu próprio ser.
E fiquei a olhar o papelão onde estava estampado aquele número que era tudo quanto restava do velho calendário. Ocorreram-me, então, as palavras do filósofo: “a vida é como um rio que corre sobre um leito eterno — o tempo”.
Nós somos as águas que passam, águas, como as do Nilo santo, de origem misteriosa. Para onde correm elas? Para a eternidade, que é um oceano sem praias. As margens são de vários aspectos — aqui frondosas, ali estéreis, acolá sombrias, iluminadas além.
Há gotas de água que descem desde a nascente, pelo meio claro do rio, rolando em tumulto, refletindo o sol e as estrelas, numa alegria sem fim: são as vidas ligeiras e inúteis; que bem fazem? Que destino cumprem? Correm, engrossam apenas a caudal e passam.
Outras, como se houvessem petrificado para conservar em carcérula (2) uma centelha astral, cristalizam-se em diamantes imperecíveis e refulgem no seio das águas — a luz é a inspiração perene, o gênio cristaliza o esplendor em obras imorredouras. Outras remansam-se junto à raiz de uma árvore e transformam-se em seiva e, subindo, desabrocham em flor e metamorfoseiam-se em fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas, transbordam com as cheias, são repelidas pelo fluxo do rio e alastram alagando as margens, formam nateiros (3) pingues (férteis) onde reponta a messe de ouro. Essas são as gotas generosas, são o enxurdeiro (lamaçal) da fecundação, o tremedal da abundância. As outras passam — o rio é alvo e feliz e discorre cantando, o lodo é negro e parado.
Que nasce no rio? A ninfeia; o centro é estéril, só as margens tranquilas verdejam e o nateiro é todo trigo, é todo linho, é todo azeite.
Queres tu ser a gota que vai na derrama fertilizante? Não, por certo — preferes, sem dúvida, ser a gota ligeira e despreocupada que desce na correnteza para o oceano do eterno silêncio. O ideal é a “facilidade” — feliz é o que corre sem encontrar tropeço, brincando nos remoinhos, saltando nos pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz ainda é a bolha efêmera de espuma que vive apenas o tempo necessário para refletir o azul do céu e o verde formoso da paisagem.
Como são desiguais os desejos! Vede como variam nas almas os ideais. Cada qual trata com mais empenho de iludir o tempo. O menino imagina-se um homem — é guerreiro e, brandindo armas, que são brinquedos, afronta inimigos imaginários, ou é artífice e trabalha ajustando a ferramenta: aplaina, serra, prega e pule; ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e colhe. A menina, ainda balbucia, e já pensa em ser mãe — ei-la tartamudeando carícias à boneca e nina-a, e veste-a, e afaga-a. Chega-a ao colo agasalhando-a, alisa-lhe os cabelos, fecha-lhe as pálpebras e, à noite, cabeceando de sono, não há convencê-la a deixar a filha: leva-a nos braços e dorme com ela chegada ao coração.
O menino julga-se capaz de realizar a conquista do mundo e orgulha-se da sua força e da sua agilidade levantando pesos, lutando ou subindo lentamente às árvores como um esquilo. A menina já se imagina sedutora e dengosamente ensaia a faceirice — um corre aos ninhos, corre a outra aos espelhos, e que fazem? Sonham com o amanhã, é o instinto que os impele através do tempo ao destino prescrito.
Para complemento da ilusão o menino põe-se a repuxar o lábio, a retorcer as guias de um bigode imaginário, engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando um bengalão, lá vai pela casa a pavonear ufano, e a menina reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o cabelo, adelgaça a cintura, toma atitudes lânguidas e, quando se reúnem, continuam a sonhar e o sonho é a família: são compadrios, crianças que nascem, projetos de batizados, mesas de lauto festim; ou intrigas na vizinhança, as rugas no casal e até (horresco referens! (4)) alusões ao divórcio por incompatibilidade entre os cônjuges — é uma comédia da vida por marionetes animadas. Esses querem avançar. Agora vede mais adiante — outra face da ilusão: os que procuram retroceder: É o homem que se encalamistra (5), é a dama que se maquilha (6); que fazem? Procuram reparar “des ans l’irreparable outrage” (7): são os regressivos.
Há aqui um cabelo branco indiscreto, há ali uma ruga denunciadora, a pele encarquilha-se, perde a frescura, vão-se os olhos tornando ternos, os lábios já não são tão róseos, que fazer? Pedir socorro ao artifício — e são tintas, pomadas, pastas, lápis, ferros de feitios complicados, toda uma farmácia, toda uma cutelaria no toucador.
O homem recorda, então, o tempo em que era um trêfego rapaz ágil e forte — ah! Dançava toda uma noite sem sentir fadiga, excedia-se em extravagâncias, sem jamais sofrer as consequências. Uma noite em claro... que era isso! Bom tempo!
A dama relembra os seus quinze anos viçosos, o seu primeiro namoro, os dias do seu noivado... como era feliz! Tudo lhe sorria e os espelhos eram mais puros... Porque não havia de tornar esse tempo amável?
E os velhos, os que já não podem esconder as injúrias do tempo? Esses tornam à infantilidade. O próprio tempo como que os transforma — tornam-se tartamudos, ficam desdentados, caminham à custa de apoios, alimentam-se como os petizes e até vão engelhando: — a velhice é a caricatura da infância, os extremos tocam-se.
Certos povos entendiam que era uma caridade matar os velhos — que ficavam eles fazendo na vida? Pobres ruínas, antes que aluíssem o melhor era deitá-las abaixo e os velhinhos, como era de uso o sacrifício, resignavam-se, e, arrimados aos mancebos, rindo, talvez, por entre os trigos e os fenos, ouvindo pela derradeira vez as vozes alegres dos pássaros, lá iam para o cutelo, desejando a paz aos que ficavam e abençoando os pequenitos.
Que nos importa mais um ano? Isso de idade é grave para os velhinhos — quando o copo está cheio basta uma gota de água para que transborde. Para nós outros, porém, que ainda vamos pelo meio, que nos importa essa gota que caiu da clepsidra (8)?
A vida é como aquela colina encantada do conto maravilhoso — para alcançar-lhe tranquilamente o viso é mister seguir de fronte erguida, olhando sempre em frente.
Ai! Dos que volvem os olhos ao Passado — ficam na melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam, como viram os irmãos de Parisada, vêm lápides tumbais e ilusões perdidas. Assim, pois — caminhemos de olhos no além! E que o novo caminho nos seja suave.
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NOTAS
(1) Shylock = personagem de o Mercador de Veneza, de William Shakespeare.
(2) carcérula =[ Botânica] Nome dado às cavidades de alguns frutos indeiscentes, como a romã.
(3) nateiro = Camada de lodo formada pela poeira, detritos orgânicos e água da chuva.
(4) horresco referens! = locução latina “tremo ao contá-lo”. Exclamação de Eneias (de Virgílio), referindo a morte de Laocoonte, nas roscas das serpentes, e que se emprega quase sempre em tom jocoso.
(5) encalamistra = torna crespo o cabelo.
(6) maquilha = se enfeita com cosméticos, se maquia.
(7) des ans l’irreparable outrage = dos anos de indignação irreparável.
(8) clepsidra = antigo instrumento constituído por dois cones que se comunicavam pelo ápice (sendo um deles cheio de água) e que era utilizado para medir o tempo com base na velocidade de escoamento da água do cone superior para o inferior; relógio de água.
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Henrique Maximiano Coelho Netto nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.
Fontes:
Coelho Neto. A bico de pena. Publicado originalmente em 1903.
Biografia = https://www.ebiografia.com/coelho_neto/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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