segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Pedágios)

MINHA MÃE (que Deus a tenha!), dizia sempre: “Filho, não deixe de colocar seus joelhos no chão e rezar pedindo proteção ao seu Anjo da Guarda. Não se esqueça, jamais, de agradecer por estar vivo, por ter a chance contínua e durável de acordar todas as manhãs e enxergar o mundo que Deus preparou para você. Clame por segurança, brade em alto e bom som agradecendo, ponha as mãos para cima e ore. Dê graças. Suplique ao Criador para que novos caminhos apareçam trazendo horizontes benfazejos, e portas se abram à sua frente, com perspectivas infindáveis de sucessos e brilhanturas”.

Eu seguia seus conselhos à risca. Rezava antes de sair do meu quarto, orava compenetrado, implorando ao céu que me desse um dia venturoso e afortunado, um dia de realizações flóreas e plenas, e que ao sair depois do breakfast, voltasse inteiro e ileso, sem um arranhão no final da tarde e pudesse pegar no colo meus filhos, um por um, e beijar, e abraçar a minha mulher e a minha mãe, que ficavam acenando da janela da sala. 

A nossa casa, apesar de se posicionar numa rua sem saída, morria, por conta disso, em nosso portão. A alvenaria do “tempo do ronca” (muito antigo), não tinha os privilégios dos ricos, nem ostentava as riquezas soberbas das outras construções próximas. A sua estrutura se fazia de edificação modesta e simples. 

Havia um alpendre enorme que circundava todo o seu entorno e lembro que as paredes dessa varanda envelheciam a cada dia, desprovidas de reparos, sem reboco, os tijolos expostos às intempéries e aos bochornos (calor causticante) duros do tempo inexorável. A cobertura também se sustentava nas asas do precário. Existia um monte de telhas quebradas carentes de serem trocadas. 

Quando chovia, ainda que por pouco tempo, precisávamos correr contra os relâmpagos e as trovoadas. Tamponar ligeiro os móveis, e eletrodomésticos, vedando com plásticos enormes para que não fossem atingidos pelos pingos que pareciam brotar de todos os lugares como minúsculos olhinhos de nascentes, gotejando das cantoneiras e dos caibros velhos e cheios de teias de aranha. 

As minhas implorações, acreditem, por incrível que pareçam, davam certo. Na verdade, confesso, deu no ponto exato por todos esses anos. Graças a minha fé no Anjo da guarda e, claro, atento aos ensinamentos sábios de mamãe, grudado em suas leis e preceitos internos advindos de uma alma boa e sem máculas, consegui atravessar por esse mundo de loucos e birutas e chegar íntegro e perfeito até onde estou agora. Uma glória digna de ser contada e comemorada. 

Do alto da fortaleza que me sustenta, ao olhar longamente para trás, consigo contemplar, vitorioso, mais de meio século de existência. E faço consciente do dever cumprido, sem ter deixado mágoas e dissabores pelas mais diversas sendas que cruzei. Está certo que nem tudo se fez um mar de flores. Paguei taxas e contribuições caras às autarquias e concessionárias por pecados cometidos ao longo dessas décadas. Urrei pelas transgressões que, de certa forma, chegaram a pesar nos meus costados, açoitando, como fardos enormes em lombos de burros envelhecidos. 

Muitos desses deslizes, pasmem, eu confesso, cometi por vontade própria! Outros tantos, por pura bobeira ou ignorância e desconhecimentos da vida. Os aprendizados do cotidiano, nós todos, só conseguimos com o decorrer do tempo que nos é concedido. O mundo é a melhor escola para nos tornarmos melhores e mais humanos. O fato é que, apesar dos pesares e equívocos, aceitei a tudo numa boa. Não tenho, pois, do que reclamar. 

Meu trilhar sempre se mostrou pontilhado por trancos e barrancos, altos e baixos. Atravessei anos ruins e desastrosos, cruzei noites claras e escuras, me vi frenteado às esquinas mais diversas, com fantasmas iracundos assustando meus medos e covardias, desbrios e horrores, sem me darem trégua e um minuto, sequer de paz. 

Foi, entretanto, tirando fora as absurdidades e alogias (despropósitos), um tempo bom. Um tempo excelente, sem dores maiores, sem machucados que se negassem a cicatrizar. Todas as minhas feridas restaram curadas, sem deixarem indícios ou abalos morais. Por sorte, do Pai Maior colhi igualmente tempos de calmarias e bonanças, sem doenças letais ou irremediáveis. 

Hoje, fazendo uma introspecção de todo meu tempo percorrido, percebo que essas primaveras vividas, dia após dia, em nenhum momento se mostraram cruéis e desumanas, celeradas ou bárbaras demais. Apagar um amontoado de velinhas não é coisa para qualquer um. Tornou-se um dote, para mim, particularmente, um apanágio, uma regalia, um dom. 

Quero crer, e creio piamente, somente chegam a este número de janeiros acumulados, pessoas com a patente carimbada no DNA, com as peculiaridades dos que nasceram privilegiados, criaturas que, de alguma forma, se tornaram escolhidas a dedo, pelo Criador. 

Eu estou feliz, realizado, satisfeito, jubiloso e exultante. Todavia, quieto no meu cantinho. Contente com meu destino, em festividade constante com a minha vida, mais ainda com o meu passado. Enfim, com a minha sorte, com a minha auriflama empunhada, com meu estandarte às vistas de todos, porque na verdade, na verdade, eu fui, de fato, eu fui não, eu sou, por tudo o que passei, eu sou um escolhido e, como tal, me sinto, de certa forma, um álacre literalmente iluminado. Reparem todos: aqui estou, firme e forte, forte e firme, a viver e gozar os meus trebelhos.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro “O menino de Andirá,” onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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