Era uma noite tranquila em Piracicaba, e a lua cheia iluminava a rua Boa Morte, onde o Leandro, dono da funerária "Pé na Cova", fazia sua última checagem nas flores do altar no cemitério. Ele sempre achou que as flores eram como os clientes: tinham que estar sempre bem apresentáveis, mesmo que a maioria não estivesse mais entre os vivos.
Enquanto isso, Belarmino, um vendedor ambulante que passara os últimos anos viajando pelo Brasil, finalmente decidira voltar à sua cidade natal. Ele carregava uma sacola cheia de bugigangas variadas — desde chaveiros de plástico até garrafinhas de água com a imagem do Cristo Redentor. Seu retorno, no entanto, não era apenas para vender suas quinquilharias, mas também para visitar os túmulos dos pais.
Assim que Belarmino chegou ao cemitério, avistou Leandro, que estava concentrado em arrumar as flores. Um sorriso brotou em seu rosto ao ver o amigo de infância.
— E aí, Leandro! — gritou Belarmino, acenando com a mão. — O que você está fazendo tão tarde aqui? Esperando alguém?
Leandro virou-se, surpreso, e logo reconheceu a figura conhecida.
— Belarmino! Que surpresa! Você não mudou nada, só adicionou algumas bugigangas a mais! — riu Leandro, enquanto se aproximava.
— É, meu amigo! O mundo é cheio de coisas inúteis, e eu sou o mestre em vendê-las! — respondeu Belarmino, piscando.
— Que bom que você voltou! Estava pensando em quem eu poderia contratar para ajudar na funerária. Você não quer trabalhar comigo? Poderíamos usar alguém com seu talento de vendas.
Belarmino arregalou os olhos, como se Leandro tivesse sugerido que ele vendesse almas.
— Trabalhar em uma funerária? Ah, não, Leandro! Você sabe que eu sou supersticioso! — disse ele, dando um passo para trás, como se afastasse um espírito maligno.
— Supersticioso? E desde quando? Você sempre foi o primeiro a se arriscar em tudo! — provocou Leandro, cruzando os braços.
— Olha, eu já vendi de tudo, de cuia de chimarrão a saquinho de erva-dos-gatos. Mas trabalhar em um lugar que lida com a morte? Isso é de dar medo! — respondeu Belarmino, olhando ao redor como se esperasse ver fantasmas.
Leandro riu e gesticulou dramaticamente.
— Ah, vai! Você não precisa ter medo! Morto não morde! Venha passar um tempinho aqui. Você ia adorar. Podemos até criar promoções! “Compre um caixão e leve um jazigo de brinde!”
Belarmino fez uma careta.
— E se as almas não gostarem da promoção? Já pensou que eu posso atrair uma maldição? — a expressão no rosto era de receio genuíno.
— Maldição? Você já vendeu itens com zumbis e ainda está aqui, vivinho da silva! Olha, a gente poderia fazer um grande evento: “O Dia da Morte com Desconto!” — sugeriu Leandro, rindo.
— Isso é um marketing pesado, meu amigo! — Belarmino balançou a cabeça, tentando se conter. — E se, em vez de clientes, aparecerem só almas penadas?
— Então a gente oferece um pacote promocional: “Traga um amigo e ganhe uma lápide personalizada!” — Leandro se divertia com a ideia.
Belarmino não conseguia mais se conter.
— Você é maluco, sabia? Mas não posso negar que a ideia é boa! E quanto mais eu penso, mais eu imagino o caos que isso ia causar no cemitério.
Leandro, agora sério, perguntou:
— Mas, sinceramente, o que você tem contra a morte? Todo mundo vai passar por isso um dia. A diferença é que eu ajudo a tornar a passagem mais tranquila.
Belarmino suspirou, um pouco mais sério agora.
— Olha, eu só não gosto de lidar com essas coisas. É como se eu fosse um vendedor de sonhos e você fosse o vendedor do fim. Não dá! Eu prefiro o lado alegre da vida!
Leandro assentiu, compreendendo a perspectiva do amigo.
— Tá certo, Belarmino. Mas uma coisa é certa: se precisar de caixão, você sabe onde me encontrar! — disse, piscando.
— E se precisar de bugiganga, é só me contatar! — Belarmino respondeu, estendo a mão com um cartão.
Os dois se entreolharam e, por um momento, a amizade que os unia desde a infância se fortaleceu ainda mais.
— Então, vamos tomar uma cerveja? — sugeriu Leandro, mudando de assunto. — Para celebrar nossos trabalhos!
— Com certeza! E nada de ultrapassar os limites do cemitério, hein? — Belarmino disse, enquanto os dois caminhavam em direção à saída.
A cerveja que Leandro e Belarmino escolheram era uma artesanal local chamada "Pira Pura". Servida em canecos de vidro gelado, sua cor âmbar brilhante refletia a luz da lua, criando um brilho dourado que parecia dançar entre as bolhas.
Leandro e Belarmino estavam sentados em uma mesa de madeira rústica, com os canecos de "PiraPura" à frente. A conversa começou a fluir naturalmente, acompanhada de risadas.
Leandro começou a contar casos que ocorreram com ele: “Houve uma vez em que um cliente pediu um caixão "temático", sabia? Ele queria um que parecesse uma guitarra!”
— Ah, claro, lembro vagamente! E você acabou fazendo um caixão que mais parecia um palco de rock! O cara deveria ter sido enterrado com um microfone! (Fingindo ser solene) "Aqui jaz o grande roqueiro, que nunca parou de tocar até o fim!" E o que foi aquele funeral? Todo mundo dançando e batendo cabeça ao som de "Highway to Hell"!
Ambos riram muito.
Leandro abrindo os braços disse: “Foi o primeiro enterro que eu vi ser animado! Aposto que até as almas estavam batendo palmas! Mas teve uma vez que eu fui fazer uma visita a um cemitério onde um "cliente" pediu para ser cremado com seu gato. Fui até lá e, surpresa! O gato estava mais vivo que nunca!"
— O que você fez? Deu um jeito de convencer o gato a entrar no caixão? - disse, rindo.
— Até que tentei convencer o gato, ele simplesmente se recusou a entrar, deu um miado e sumiu de vista.
— É, gato é um bicho complicado. Eles têm um senso de sobrevivência bem apurado!” – disse Belarmino, rindo.
— E você, Belarmino? Alguma história engraçada das suas vendas de bugigangas?
— Ah, teve uma vez que eu tentei vender chapéus de palha em uma feira. Um cliente pegou um e disse: "Esse chapéu é tão bonito que me faz parecer rico!" E eu respondi: "Se você comprar dois, eu garanto que você vai parecer um milionário!"
Leandro rindo: “E o que aconteceu? O cara comprou dois?”
— Não! Ele ficou tão distraído que saiu correndo e deixou o chapéu pra trás!
Leandro se divertindo: “Então você se tornou o primeiro vendedor a vender chapéus invisíveis!”
— Exatamente! E ainda consegui um novo slogan: ‘Se você não vê, é porque é caro!’
Os dois gargalharam, e a cerveja "Pira Pura" descia suave, acompanhada de histórias que só reforçavam a amizade deles.
Leandro levantando o caneco: Às nossas aventuras! Que venham mais histórias malucas!
— E que cada caneco venha cheio de boas risadas! Saúde!
Os canecos se chocaram mais uma vez, ecoando na noite, enquanto eles continuavam a compartilhar suas memórias hilárias, cada gole de cerveja trazendo à tona mais risadas e lembranças.
E assim, sob a luz da lua e com risadas ecoando pelo cemitério, Leandro e Belarmino se afastaram, cada um com suas peculiaridades, mas unidos pela amizade que transcendia até mesmo a linha da vida e da morte.
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José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.
Fontes:
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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