domingo, 21 de agosto de 2022

Isabel Furini (Poema) 33: Desenhando a vida

 

Carlos Leite Ribeiro (Achado arqueológico)

Num dia de sol ardente, estava o José Pinoca a fazer umas escavações numa terra em Riba d’Aves, para a construção de uma casa.

(Riba d’Aves, para aqueles que não sabem, fica a cerca de 10 Km da cidade de Leiria)
 
A certa altura das escavações, o Pinoca começou a encontrar uns ossos "olha que engraçado encontrei uns ossos... Mas eles têm formas esquisitas...". Voltando-se para os trabalhadores que o estavam a ajudar nas escavações, disse-lhes: "Podem ir para as vossas casas descansar!".

Muito intrigado com o achado, o Pinoca dirigiu-se rapidamente a casa para ir contar a sua mulher, a D. Piquita, a boa nova, pois, se fosse aquilo que ele julgava ser, ia-lhe dar uns tostões na sua exploração.

Piquita, Piquita... Oh mulher, estás aí?” A mulher quando o ouviu assim tão aflito, começou logo a descer as escadas e por fim respondeu-lhe: "Sim, homem, estou aqui. Aonde é que querias que eu estivesse?!"

Oh mulher, tu nem calculas o que é que eu encontrei nas escavações que estou a fazer!" tentando dizer alguma coisa com graça, a Piquita respondeu-lhe: "Pela tua cara... deixa cá ver, deixa cá ver: já sei, encontraste uma cobra!" - disse-lhe a mulher em tom de gozação.

Qual cobra, qual carapuça! Encontrei uns ossos que não sei de quem poderão ser. Percebeste mulher?!"

“Oh, homem, eu não sou estúpida de todo e já compreendi há muito tempo o que tu encontraste. Mas diz-me uma coisa: já foste falar com o coveiro?"

José Pinoca, antes de responder à mulher, sentou-se num banco e só depois lhe respondeu: "Minha esposa esperta, é lógico que não fui falar com o coveiro, pois vim logo para casa e além disso, estou muito cansado. Talvez amanhã vá. Entretanto, estava a esquecer-me de algo muito importante. Peço à minha querida "comandante" que não vá contar isto a ninguém."

A D. Piquita tirou o avental, compôs o cabelo a pôs-se em posição de sentido, respondendo ao marido: "Muito bem, meu comandante! O meu excelentíssimo e digníssimo comandante quer que eu guarde mais alguma coisa, ou esta chega?" O Pinoca sorriu.

No outro dia logo pela manhã, o José Pinoca foi ter com o seu compadre Malaquias, que ao avistá-lo, logo o saudou: "Olha o compadre José Pinoca! então o que o trás por cá ?"

Compadre, nem sei como hei de começar...”. O Malaquias começou a ficar muito curioso e desconfiado com aquela visita do Pinoca e, em determinada altura disse-lhe:

"Não sei o que me quer, mas desde já peço-lhe que esteja à vontade comigo. Vá lá, diga-me lá o que me quer!"

"Então aqui vai... Sabe que eu tenho andado a fazer uns alicerces para uma casa e, qual o meu espanto quando em determinada altura encontrei uns ossos. Ora, como você é perito nesta matéria de ossos, gostaria de saber se aqueles ossos são ou não humanos."

Embora algo admirado, o Malaquias não "desarmou" e com uma certa vaidade, respondeu ao Tinoca: "Fez muito bem em vir ter comigo, pois como diz (e muito bem) eu sou um grande especialista em ossos! Vamos então lá ver esse seu achado."

E lá foram os dois compadres a caminho das fundações. Ao chegar ao local, logo o Malaquias se meteu na vala para melhor examinar os ossos. Depois de um demorado exame, saltou da vala, encarou o compadre, tossiu, piscou os olhos e com ar de pessoa "muito entendida" expressou-lhe a sua avalizada opinião: "Compadre... São ossadas de dinossauro!"

Oh, compadre, estou tão nervoso que nem sei se choro ou se rio! ... Olhe lá, e se fossemos contar o sucedido à D. Fúfia?".

Sou da sua opinião, Pinoca!"

E os dois compadres dirigiram-se a casa da D.Fúfia, uma senhora de certa idade, que não era nada bonita, mas que há muito tinha aprendido a comer com faca e garfo.

Chegaram e logo bateram à porta. Do outro lado respondeu-lhes uma voz muito rouca e autoritária: "Quem é ?!" Depois dos compadres se terem identificado, a D.Fúfia veio abrir-lhes a porta com o seu ar quase marcial, olhando-os por cima dos seus óculos encarapitados no seu quase adunco nariz.

Olá! Entrem, entrem e ponham-se à vontade. Querem um chazinho?... Pelas vossas caras estou mesmo a ver o que vocês queriam era aquilo que eu, para o conseguir beber, tenho sempre que fechar os olhos, ou seja, vinho! Mas infelizmente bebi ainda há pouco a última pinguinha que tinha cá em casa".

"D.Fúfia, por favor não se incomode, cá com a gente" - disse-lhe o Malaquias, e logo o Pinoca concluiu: "Para não incomodar muito a senhora, podemos ir já à questão que cá nos trouxe?"

A senhora mais uma vez os convidou a sentarem-se, sentando-se em seguida, tirando antes de um cesto a sua enorme jiboia de estimação que a pôs ao pescoço.

"Digam-me lá então que questão é essa... será dinheiro?"

Os compadres sorriram e o Pinoca adiantou-se:

"A questão desta vez não é de dinheiro. É o seguinte, eu estava a fazer um buraco numa construção que ando a fazer perto da Lameira, e qual o meu espanto que em determinada altura encontrei umas ossadas, que aqui o nosso distinto coveiro diz que são ossos de dinossauro".

Ao ouvir isto, a D.Fúfia quase que deu um pulo na cadeira e, agarrando a jiboia com a mão esquerda e espetando o dedo indicador em direção dos compadres, logo deu a sua opinião:

"Oh, pessoal!... Vocês tomem muito cuidado, pois o que encontraram pode ser uma manobra política/desportiva. Tomem muito cuidado!".

O Pinoca ficou um tanto ou quanto atrapalhado e foi o seu compadre Malaquias que ousou perguntar à D.Fúfia:

"Então o que é que podemos fazer com as ossadas?!"

"Pois é... deixem-me cá ver, deixem-me cá ver... Ah já sei! Vocês vão já falar com o diretor do Museu de Arte Natural de Riba d` Aves, e apresentem este caso."

Em princípio, o Pinoca não estava nada, mas mesmo nada disposto a ir falar com o diretor do Museu, pois chegou a pensar que aquelas ossadas de dinossauro lhe podiam dar-lhe umas boas coroas (notas...). Mas por fim e aproveitando a sugestão da D.Fúfia, lá foram os compadres falar com o diretor.

Algum tempo depois vieram uns técnicos de Lisboa e, ao fim de alguns meses o enorme esqueleto já se encontrava montado.

No dia da exposição para a apresentação ao público das ossadas do dinossauro, a D.Fúfia, embrulhada na sua enorme echarpe bolorenta e já com alguns buracos de traça, orgulhosamente dizia a toda a gente que tinha sido dela a iniciativa para que as ossadas fossem entregues ao Museu.

Nisto aproximou-se mais do esqueleto para o melhor poder admirar, quando perante a estupefação geral deu um enorme grito e exclamou:

Mas... Mas estas ossadas são do meu querido e único namorado que morreu há mais de 60 anos!!!"

E dizendo isto, caiu redondamente no chão.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 18


claro calar sobre uma cidade sem ruínas
(ruinogramas)


Em Brasília, admirei.
Não a niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata-borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra adentro.

Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.

Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.
Muito me admirastes,
muito te admirei.
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o náufrago náugrafo

a letra A a
funda no A
tlântico
e pacífico com
templo a luta
entre a rápida letra
e o oceano
lento

assim
fundo e me afundo
de todos os náufragos
náugrafo
o náufrago
mais
profundo
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bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
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sem budismo

Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero. Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.
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o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro
ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos
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a lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!
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anch’io son pittore

fra angélico
quando pintava
uma madona col bambino
se ajoelhava e rezava
como se fosse um menino

orava diante da obra
como se fosse pecado
pintar aquela senhora
sem estar ajoelhado

orava como se a obra
fosse de deus não do homem
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podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
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litogravura

Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco de triunfo.
Mil duzentos e cinquenta.

Qualquer pedra na Europa
é suspeita de ser
mais do que aparenta.

Felizes as pedras da minha terra
que nunca foram senão pedras.
Pedras, a lua esfria
e o sol esquenta.
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parada cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento
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imprecisa premissa

(quantas curitibas cabem numa só Curitiba?)

Cidades pequenas,
como dói esse silêncio,
cantilenas, ladainhas,
tudo aquilo que nem penso,
esse excesso
que me faz ver todo o senso,
imprecisa premissa,
definitiva preguiça
com que sobe, indeciso,
o mais ou menos do incenso.
Vila de Nossa Senhora
da Luz dos Pinhais,
tende piedade de nós.
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sujeito indireto

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.

Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos.  Publicado em 1987.

Sammis Reachers (Ri por último quem ri de bolso cheio)

 As catanças de ferro-velho abarcavam, a partir de nosso sub-bairro Jardim Nazareth ou Palha Seca (a “fronteira” entre os bairros de Tribobó e Arsenal) diversos outros bairros: No poder arcano da canela, alcançávamos Jockey Club e Anaia, Capote e Arsenal, chegando até a Rio do Ouro e Maria Paula, quando não Colubandê e Bairro Almerinda. Era muito chão!

Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia: Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua...

Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões, ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que, em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda era um péssimo ou inútil boxer de rua, colocamos a viola no saco e ficamos quietinhos...

Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub-bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário, instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa dessas andanças naquelas paragens que acabamos descobrindo em que casa moravam os tais Romeus valentões?

Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela, coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas, percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam, do lado de fora de seu quintal, um depósito de reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado, fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de mel.

Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou. Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta daquele sorriso! Eu entendi o que faríamos.

Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde-e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena “carga” das mercadorias, para que as vítimas não sentissem o impacto.

A marra daqueles garotões, que depois acabaram “expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes da Kibon, nossos preferidos...

O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado trabalho – e nossa justa e vingativa rapina!

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.