sábado, 7 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 431

 


Eduardo Affonso (Talvez, com certeza)


Resolver as coisas com ela é sempre um desafio.

– Você prefere comer em casa ou pedir pizza?

– Prefiro.

– Qual das duas coisas?

– Pode ser.

Viaja, já devia ter chegado. Ligo para saber se houve algum problema.

– Onde você está?

– Voltando.

– Mas está onde, em que altura?

– Na estrada.

Ninguém consegue ser tão vaga com tanta precisão.

– Estou te esperando. Demora?

– Ok.

– Está onde, para eu saber se já posso descer ou não?

– Américas.

(Ela está numa ponta da Américas; eu, na outra. Não há como ela estar em outro lugar que não seja da Américas. )

– Mas antes ou depois do Barrashopping?

– Pista da lateral. A do meio está parada.

A culpa é minha, que tenho a mania de fazer perguntas abertas.

– Oi, estou indo pra casa. Precisa de alguma coisa do mercado?

– Precisa de um monte de coisas.

– O quê, por exemplo.

– Tem muita coisa faltando.

– E o que é que falta?

– Tenho que ver.

– Pode ver e me dizer?

– Compra só o que acabou. O resto ainda tem.

Ligo do mercado.

– Açúcar mascavo ou refinado?

– Um quilo.

Da farmácia.

– Como é que chamava mesmo aquele remédio para sinusite?

– Gotas.

Se eu fizer duas perguntas, ela responderá uma delas e ignorará a outra. E nunca saberei qual foi a respondida.

Se eu fizer uma pergunta só, esta é a que será ignorada.

Ou respondida com outra pergunta.

– Por que você é assim?

– Assim como?

– Não responde o que eu pergunto.

– Não respondo?

– Não. Você nunca responde o que eu pergunto.

– É?

– É. Ou responde com uma pergunta.

– Eu faço isso?

Claro que gosto dela. Menos quando quero saber alguma coisa.

– Você me ama?

– Claro.

– Que sim ou que não?

– Aham.

Deduzo que “aham” seja “sim”. Que prefira a pizza. Que já esteja no pedágio, ou na entrada do condomínio. Que só esteja faltando açúcar. O mascavo. E que eu talvez deva perguntar menos.

Fonte:
Site do autor

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 13

 


Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Caldeirão Poético XXXV



Francisco Miguel de Moura
Teresina/PI

A LÍNGUA


A língua portuguesa que falamos
palmilhou, no Brasil, ínvios caminhos,
ganhando mais bondades e carinhos,
debaixo deste sol que muito amamos.

Junto à mãe preta e junto à índia em flor,
o português saudoso em seu transporte,
aqui chegado do hemisfério norte,
pega brilho na voz, nos olhos, cor.

Selvagem, forte, dúctil, na verdade,
rica e serena, triste na saudade,
franca nas decisões, porém com calma.

A língua portuguesa é, docemente,
a minha voz (e a de milhões de gente)
como parte profunda de minh’alma.
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Olavo Bilac
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

LÍNGUA PORTUGUESA


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
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Oldney Lopes
Brumadinho/MG

POEMA À LÍNGUA PORTUGUESA


A língua portuguesa que amo tanto
Que canto enquanto encanto-me ao ouvi-la
Em cada canto é fala, é riso, é pranto
E nada há que a cale e que a repila.

É essa língua tórrida e faceira
Inebriante e meiga e doce e audaz
Que envolve e enleia a gente brasileira
E quem a utiliza é quem a faz.

É a língua dos domingos, no barzinho
A mesma das segundas, no escritório
A que fala o andrajoso, no caminho
E o cientista, no laboratório.

É a mesma língua, embora evoluída,
Que veio de outras terras com Cabral
Escrita por Caminha, foi trazida
Na descoberta do Monte Pascoal

Não há quem fale errado ou fale mal
De norte a sul, é belo o que é falado
Na língua de Brasil e Portugal.
Para julgar quem fala certo ou fala errado

Não há no mundo lei, nem haverá:
Quem faz da fala língua, é quem a fala
Gramática nenhuma a calará
Gramático nenhum irá cegá-la*!

(*Referência ao gramático Domingos Paschoal Cegalla, autor da Novíssima Gramática da Língua Portuguesa.)
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Paulo Leminski
Curitiba/PR, 1944 – 1989

O ASSASSINO ERA O ESCRIBA

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito
inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular
com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético
de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
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Salvador Araújo
Teófilo Otoni/MG

MADAME PORTUGUESA


Quando vejo você sorrindo
Não sei se é de mim ou por mim
Aí vejo interrogações queixosas
Você é como rosas
De perfume e de espinhos
Ou caminhos
De rumos diferentes
Mas mesmo assim
O hífen me liga a você
Você é uma vírgula
Quando olha para mim
Demora pouco
É uma exclamação
Quando é apenas você
Pois me faz entender
Que é a mais bela
Radiante como estrela
Fulgurante e passiva
No céu de minhas imaginações
Você é dois-pontos
Quando quer me falar
Gosta de despedaçar
As palavras em reticências
Para não falar de uma vez
Talvez
Para me deixar mais louco por você
Seu ponto-e-vírgula demora
Apenas o piscar dos meus olhos
Sem parágrafo nem travessão
Suas aspas não me abraçam
Nem me fazem especial
No meu triste ecossistema
Você é um trema
Circunflexos que cobrem minha cabeça
Til que só acentua palavras como ilusão
E no meu mundo sempre cheia de razão
Você é o apóstrofo de que nunca me esqueço
Crases ou agudos que não mereço
Oh Língua
Você é
Sem parênteses
Ponto-final

Rachel de Queiroz (História Alegre)


Era um arigó de cara larga, largo de ombros, largo de passos, riso mais largo ainda. Vestia uma roupa surrada, as calças remendadas no joelho, tamanco no pé. Mas a sua alegria não era apenas a famosa alegria do homem sem camisa: era mais complexa, de causa mais filosófica. Ele não gozava a simples satisfação animal de viver, sentia-se um predestinado, um querido dos deuses.

“Homem, não vê, dona, ― eu sempre fui pessoa de sorte. Desde o começo. Minha mãe teve onze filhos: veio o garrotilho e matou três num dia só, depois mais três foram morrendo de um em um, de doença de criança, e quando apareceu o paratifo no 32, matou o resto. Quero dizer, matou o resto menos eu. Fiquei sozinho com os velhos. Continuei vivendo nem sei como, que por esse tempo era esmirrado, amarelo, comedor de terra. Lá pelos quinze anos foi que comecei a botar corpo de homem; também comia tanto que até fazia vergonha. E mode não ver a velha ralhar, acabado o almoço eu ia na bodega escondido e comprava de bolacha o tostão que tinha no bolso, pra poder confortar o estômago. Comendo em casa alheia, saía sempre com fome.

“Sim, por esse tempo o velho meu pai já tinha morrido de uma dor que lhe deu, bem aqui no vazio ― lá nele. Minha mãe foi lavar roupa na casa duma gente rica, e eu tive que ir trabalhar à distância de dez léguas, num açude do governo. Porque me esqueci de dizer que era seca brava, nesse ano em que meu pai morreu. Ai a velha também deu para ficar doente, ― era uma dor, era um cansaço, uma falta de fôlego ― com pouco foi-se embora também, dizia ela que pra junto do finado e dos dez anjos que tinha no céu. Isso ela falava quando já estava variando, a bem dizer de vela na mão.

“Eu fui, acabou-se o serviço do açude, houve um inverninho escasso, me encostei nuns tios, trabalhando com eles. Mas sempre com esta minha sorte esquisita, quando dei fé morreu o tio, a família se espalhou, a viúva minha tia, foi morar com um genro. Dessa vez fiquei mesmo só no mundo. Me meti com uns tangerinos, levando gado do Quixeramobim para a cidade. Trabalho ingrato, porque com esses anos ruins o gado não engorda nem bota força, cai à toa, é raro se chegar com o lote de reses inteiro. Sempre morre um bocado em caminho.

“Com a idade de vinte e dois anos fiquei noivo de uma moça. E lá vem a sorte de sempre. Quero dizer...”

(Ele aí fez uma pausa e sorriu meio envergonhado, como se fosse contar que trapaceara com a sorte.)

“... eu ia dizer que ela também morreu e não mentia; mas a verdade é que morreu porque eu furei ela de faca. Descobri que andava de namoro com o cunhado, marido da própria irmã dela. E nem namoro não era só, coisa pior ainda, que o desgraçado tinha era feito mal à criatura. Deus que lhe perdoe, a todos os dois. Se bem que ele não morreu, a facada pegou muito embaixo, furou só a tripa e o doutor da Santa Casa costurou outra vez.

“No júri só peguei seis anos e assim mesmo me soltaram com quatro, porque teve uma revolta na cadeia e eu ajudei os guardas a pegarem os presos; tive uma pendenga com o chefe fujão, nos pegamos mesmo na hora e atrapalhou-se tudo.

“Quando saí da cadeia, isso foi em 47 ― fui trabalhar na estrada de ferro e tornei a ficar noivo e me casei. Mas não digo à senhora que minha sina é de sempre acabar só? Minha mulher morreu nos nove meses de casada, e com ela morreu a criancinha, na hora de nascer. Dessa vez fiquei desgostoso. Não é por ser minha mulher, mas era uma moça boa, trabalhadeira, me fez muita falta, que eu lhe tinha amizade e ela a mim.

“Continuei uns tempos na estrada e por duas vezes escapei de morrer de desastre; primeiro foi um trole que virou com todos os meus companheiros, justamente no dia em que eu tinha faltado ao serviço. Depois foi um trem doido que apareceu fora do horário, pegou a turma toda num corte da linha, escapamos por milagre, com as costas enterradas na barreira e os carros passando, tirando fogo no peito da gente.

“Chegou 50, 51, cada vez pior, trabalho acabou-se, a necessidade atacou todo o mundo, acabei resolvendo me chegar para cá, arrumei o dinheiro da passagem e embarquei num pau-de-arara desses. A senhora não viu falar num caminhão que virou na serra, com quarenta e seis pessoas dentro? Pois eu vinha nele. Saiu gente ferida, uns morreram, outros aleijaram ― mas eu escapei sem quebrar uma unha que fosse”.

(Deu a sua gargalhada clara e feliz.) “Não é uma sorte engraçada? Acho que pessoa mais feliz que eu, neste mundo não há. Agora trabalho numa pedreira; lido com dinamite, que é objeto perigoso danado. Os outros todos têm medo, menos eu. Sei que se aquele diabo estourar de mau jeito, pode pegar os companheiros, a mim não pega. Não é corpo fechado, não é reza, nunca fui homem de usar patuá; é sorte mesmo, sorte feliz. Dizia a finada minha mãe que era o anjo da guarda; quando eu era menino talvez fosse; mas hoje em dia, Deus que me perdoe se for pecado, não acredito que o anjo da guarda fosse andar atrás dum bicho feio e ruim que nem eu...

“E hoje estou por aqui, rolando... Por ora me dou bem, neste Rio de Janeiro. Mas casar não me caso mais, nem mesmo sigo esta moda de ajuntar, que aqui se usa muito. Gosto duma moça, mas falar a verdade, tenho medo... com essa sorte que eu tenho... A gente afinal de contas não gosta de ver os outros morrer... mormente se tem amizade, não é mesmo, dona? Deixa a pobrezinha continuar vivendo”...

Fonte:
O Cruzeiro. Coluna Última Página. RJ.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 430

 


Paulo Mendes Campos (Bom Dia, Ressaca)


Não é fácil, muito pelo contrário, despedir uma ressaca que se instale em seu quarto, disposta a ficar o dia todo, sobretudo quando a gente não é mais o que se chama um broto. São em geral as ressacas muito fieis e suscetíveis; para driblá-las, é preciso ser de circo e, como nos números acrobáticos, qualquer distração pode, no caso, causar a morte do artista. A primeira providência a tomar, quando você desprega os olhos e vê que ela está realmente a seu lado, é não demonstrar o mais ligeiro sinal de surpresa, mas tratá-la com um carinho um pouco distraído:

Bom dia, ressaquinha.

Então respire fundo três vezes. Não prestar atenção aos vagidos dela, às suas caretas, àquele hálito de abominável melancolia. Não se considere um crápula, que é isso o que ela quer. Mantenha a cabeça imóvel a fim de não denunciar, com um gemido, a sua dor sísmica. Esqueça os seus compromissos, por mais graves que sejam (o remorso é uma das brechas por onde pode penetrar a fera), fingindo-se absolutamente livre, como se dispusesse de seu tempo à vontade. É de todo necessário que ela não desconfie que você tem na cidade um encontro com um gerente de banco.

Se ela lhe oferecer maldosamente um cigarro, aceite-o, para abandoná-lo depois de três ou quatro tragadas lentas. Olhar pela janela é sempre perigoso; isso porque pode estar fazendo um magnífico dia frio e chuvoso; mas também pode uivar lá fora um sinistro e tempestuoso sol. A visão macabra de um dia luminoso costuma esmorecer sem remédio os ressacados de mais hábil talento.

Por mais violenta que seja a sua vontade de tossir, não o faça; tal coisa poderia trazer-lhe consequências imprevisíveis, sendo compensador qualquer sacrifício no sentido de adiar esse desejo para momento mais propício.

Evite o café. Faça como se fosse dormir ainda, sem cair na leviandade de prometer que jamais porá de novo a boca em álcool. Essa capitulação, além de falsa, condiciona uma desmoralização interior que insufla forças novas à inimiga.

As ressacas não morrem de amores pela cama, existindo algumas, no entanto, extremamente espertas, que se acomodam a essa situação, podendo permanecer indeterminadamente no seu leito. Escute o que lhe digo e mande vir o jornal: contorne os cronistas da noite, mergulhe com paciência nas seções de economia, caso você goste de futebol, e nas páginas esportivas, caso você se interesse por economia. Essa atitude é capaz de desorientá-la um pouco. Sem levar a mão ao coração (e se o fizer, pelo menos não revele o seu nervosismo pela taquicardia), peça um jarro de água geladíssima e duas aspirinas. Como o gato, a ressaca teme a água. Aguarde o momento preciso. No que a ressaca bobear, arraste-se até o chuveiro, escancare a torneira de água fria, enquanto escova os dentes com um exagero de pasta e por muito tempo. O jorro da água, prenunciando o impacto frio, amolece um pouco mais a covarde. Em seguida, com o destemor digno de um almirante batavo, enfrente o chuveiro, sem importar que a água o sufoque um pouco, pois a sufocação deverá também atingi-la. Reze então três padre-nossos e três ave-marias, e comece a tossir.

Se existe mar perto de sua casa, ótimo; se não existe, paciência. Almoce, não deixe de almoçar, faça-me o favor. Se gostar de jiló, pode-se ter em conta de um homem privilegiado, pois todas as ressacas de meu conhecimento, como quase todo mundo, detestam jiló. Fígado fresco de galinha é outro alimento que elas não apreciam nada. Bebida, o ideal, por enquanto, é mate gelado. Toque na vitrola discos de Bach ou Débussy, mas somente peças para piano ou cravo, jamais sinfônicas. Uma boa ressaca é tarada por música orquestral. Fuja igualmente das arestas do rock´n´roll, das espirais do bolero e dos círculos concêntricos da valsa vienense.

Vá deitar-se no divã e ler mais um pouco, de preferência uma história boba de revista frívola. Quando a ressaca já estiver bastante aborrecida com esse tratamento, levante-se e caia na rua, cometendo no primeiro botequim a violência final, um copo de chope bem tirado, um só. E vá enfrentar o gerente.

Mas há ressacas versáteis, assim como há sujeitos indefesos. Posto o quê, não aceitaremos reclamações.
 

Daniel Maurício (Poética) 8

 


Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 6


A GENTE NUNCA SE LEMBRA

A gente nunca se lembra
que sempre nos ronda a Morte...
E não há coisa mais certa
escrita na nossa Sorte…

Na mais profunda alegria
ou na tristeza mais forte,
— ela nunca escolhe o dia —
sorrateira vem a Morte...

Quem está hoje conosco,
amanhã vemos morrer;
mas pensamos que tal coisa
não nos pode acontecer...

E sempre estamos sonhando
em nossa vida futura,
projetos, sonhos, que vão
depois para sepultura...

Um atravessar de rua…
Uma só bala perdida...
Toda vida — a minha, a sua,
por um só fio é mantida...

E a gente nunca se lembra,
que sempre nos ronda a Morte,
E não há coisa mais certa
escrita na nossa Sorte…
****************************************

CONTRIÇÃO

Eu, pecador, humilde e arrependido,
venho até Vós,    Senhor, me confessar,
de todo e qualquer passo em mau sentido,
de todo gesto mau ou mal pensar.

Pesa-me Deus por ter-Vos ofendido,
por Pensamento, um gesto ou um olhar...
E pela Vossa Graça socorrido,
proponho para sempre me emendar!
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RENÚNCIA

Ela voltou de novo, e de surpresa,
reabrindo-me curadas cicatrizes…
Pois terei de mostrar igual frieza,
dos dias que fomos tão felizes...

Outrora eu demonstrava indiferença,
por julgar tudo apenas amizade...
Ela partiu... e eu vi então que imensa,
quão desoladora era a Saudade!

…E o Destino mudou a nossa vida...
E ela sofreu como também sofri!
E tendo o corpo e alma combalida,
que a amava como um louco então senti!

Ela porém pode perceber,
que grande mal eu trago dentro em mim…
E eu não tenho coragem de dizer
e confessar-lhe meu tristonho fim...

... E assim eu duplamente castigado,
me agiganto nas grades dessa Dor:
— A morte pela Vida condenado!
Condenado à renúncia de um amor!…
****************************************

SÚPLICA

À tia Nônô, minha enfermeira

Eu sou Moço, Senhor, e adoro a Vida !
E por isso, minh'alma agora inquieta,
envia aos Céus esta oração sentida...
Aflita e humilde prece de um poeta...

Sim... sou bem moço ainda, meu Senhor;
eu ia entrar em plena Primavera!
— Vinte e um anos — é como que uma flor
que sonha... mas ser fruto ainda espera...

Quanta coisa, meu Deus, eu esperava:
Ser bem rico, bem culto, bem atleta...
— Em amor, não... eu nem sequer pensava!
E nem sequer pensava em ser poeta...

Mas a Vida é volúvel como o vento,
e como o vento, arrasador, medonho,
ela arrasa, destrói, num só momento,
o mais prudente arquitetado sonho...

E estou agora assim; triste e doente...
(Eu que fui tão feliz, alegre e forte!)
pedindo a VÓS, Senhor, humildemente,
que me livreis, desta sentença: a Morte...

Pois eu sou Moço, Senhor, e adoro a Vida!
(Eu a quero volúvel mesmo assim...)
Como eu sofro ao pensar na despedida!
Quanta angústia ao sentir que vem o Fim!...

E morrendo... morrendo... lentamente...
Que cruel sina, meu Deus! Que triste fado!
Lá fora a Vida a gargalhar contente,
e eu tão triste, aqui dentro, neste estado. . .

Eu sou Moço, Senhor, e adoro a Vida!…
E por isso, minh’alma agora inquieta,
envia aos Céus esta oração sentida...
Aflita e humilde prece de um poeta...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Estudo sobre a obra "A Abadia de Northanger", de Jane Austen

A Abadia de Northanger (Northanger Abbey) é um romance da escritora inglesa Jane Austen, publicado postumamente em dezembro de 1817, e escrito entre 1798 e 1799, inicialmente intitulado Susan. A obra descreve a vida social em Bath, que Jane Austen conhecera em 1797, e parodia os romances góticos, muito apreciados na época: sua heroína, a jovem Catherine Morland, que imagina suas aventuras sombrias em antigos castelos ou mosteiros de arquitetura gótica, acredita que pode viver um desses sonhos quando é convidada a permanecer na Abadia de Northanger. Um romance se desenvolve entre ela e Henry Tilney, o filho do proprietário do lugar.

O confronto das ideias românticas de Catherine e a realidade, durante suas discussões com Henry Tilney e Eleanor, a irmã dele, faz com que pouco ela ultrapasse a adolescência, o que pode ter transformado “Northanger Abbey” em um romance de aprendizagem.

Além das características estilísticas de Jane Austen (ironia, discurso indireto livre) e o aspecto de paródia da obra, há também a crítica aos romances góticos no tocante à sua influência na imaginação fértil de meninas jovens, assim como uma defesa incondicional dos romances em geral, que na época eram principalmente escritos por mulheres e considerados um gênero de segunda categoria.

Northanger Abbey fora o primeiro romance de Jane Austen que ficara totalmente pronto para a publicação após a finalização de sua redação, entre 1798 e 1799, segundo sua irmã Cassandra Austen. No entanto, ela também trabalha, em 1796, em First Impressions, a primeira versão de Orgulho e Preconceito. Quanto a razão e Sensibilidade, ela começa uma primeira versão em 1795, provavelmente um romance epistolar, conforme relatado pela tradição familiar e, portanto, bastante diferente da versão finalmente publicada.

Jane Austen, até por volta dos 23 ou 24 anos, morou na casa de sua família em Steventon, para onde fora após seu nascimento. Em 1797, faz uma viagem a Bath, uma importante cidade histórica. O romance fora intitulado inicialmente Susan, e alguns estudiosos viram aí uma referência ao conto para crianças, “Simple Susan”, escrita por Maria Edgeworth para sua coleção de contos de 1796, The Parent's Assistant.

Em 1802, a autora faz uma pequena correção, para evocar o romance de Maria Edgeworth, Belinda, lançado no ano anterior.

Anunciado como tendo sido redigido em 1816, fora, porém, totalmente concluído e pronto para ser publicado em 1803. Nesse ano, o editor londrino Benjamin Crosby comprara os direitos sobre o livro por dez libras esterlinas e anunciara a publicação, que não ocorreu. Seis anos depois, Jane – que então lhe escreve sob o pseudônimo de Mrs. Ashton Dennis – lhe pede pelo correio uma nova cópia do manuscrito, pois o primeiro se perdera, ameaçando entrar em contato com um novo editor caso ele nada fizesse. Crosby apenas responde que, nesse caso, ele iria enfrentar este editor e se mostra disposto a retroceder dos direitos pelo preço inicial de 10 libras. Na época, este montante parece alto demais para Jane Austen, não tendo ainda nada sido publicado.

Após a publicação de Emma, porém, em dezembro de 1815, a romancista resolve esta questão, por 10 libras, através de seu irmão Henry Austen. Ela prevê a publicação, em 1816, mudando o título para “Catherine” e escrevendo uma pequena nota, onde expressa seu espanto pela não publicação anterior por Crosby e o receio de que, "treze anos depois de sua conclusão", o romance tenha se tornado obsoleto.

Após a morte de Jane Austen, que ocorre em 18 de julho de 1817, seu irmão Henry Austen publica o romance, no final de dezembro de 1817 (a data de 1818, na página de título, resulta dos inúmeros desencontros e confusões acerca da publicação), e o título é mudado, provavelmente por Henry Austen, para Northanger Abbey. Talvez assim evocaria os romances góticos, em voga na época, apresentando castelos misteriosos.

No entanto, hoje se supõe que Jane Austen tenha abandonado o título original “Susan”, inspirado em The Parent's Assistant, já em 1809, após o surgimento de uma novela anônima com o mesmo nome. Sem dúvida com algum pesar, pois acabaria usando o nome da heroína de Maria Edgeworth, Susan, em Mansfield Park, onde é a irmã mais nova de Fanny Price, a heroína do romance.

A questão de quanto mudou o romance após o manuscrito vendido a Crosby fica sem resposta. No entanto, Brian Southam, um dos principais especialistas em crítica austeniana, acha que a autora pode ter feito mudanças significativas em seu trabalho em 1816, mas dificilmente está em concordância com outros especialistas, que defendem poucas modificações após 1803, por diversas passagens no texto que claramente se referem a eventos anteriores a esta data. E os muitos romances citados no texto, todos foram publicados antes de 1800, com exceção de duas referências a obras de Maria Edgeworth, publicada em 1800 e 1801.

A publicação em 1818 de Northanger Abbey e de Persuasion (Persuasão) é prefaciada por uma notificação biográfica do autor, escrita por Henry Austen e datada de 13 de dezembro de 1817, mais de 5 meses após a morte da irmã, essa observação teve grande importância mediante seu caráter hagiográfico: é a primeira homenagem calorosa para a mulher e escritora, trazendo a público informações sobre sua vida e seus últimos momentos, sua personalidade, seus gostos, sua leitura favorita, ou mesmo a forma como ela via suas obras.

É também a primeira apresentação de Jane Austen como autora e principalmente autora digna de inclusão em uma biblioteca, "ao lado de Fanny Burney (Madame DArblay)" e de “Maria Edgeworth”, ainda que sua reserva natural e suas dúvidas sobre o seu próprio talento a tenham levado a preservar o mais possível o seu anonimato. Este registro, este anonimato de elevação e a promoção do público, continuaram a ser os únicos dados biográficos disponíveis da autora por mais de cinquenta anos, até que foi publicada, em 1870, “A Memoir de Jane Austen”, primeira biografia escrita por seu sobrinho, James Edward Austen-Leigh.

ENREDO

O livro apresenta a personagem Catherine Morland, a quarta dos dez filhos de um clérigo de condições financeiras razoáveis, que mora em um vilarejo em Wiltshire. Catherine é descrita como uma jovem normal, sem grandes talentos e nada em especial que chame a atenção sobre si. Entre os 15 e 17 anos, lera todos os livros sobre heroínas que lhe fora possível, e isso era tudo o que conhecera da vida.

Mas, não havia ao seu redor nenhum jovem que lhe pudesse despertar a sensibilidade e a paixão, e nenhuma chance de transformar sua história de acordo com seus sonhos. O capítulo destaca, porém, que, quando se é fadada a ser uma heroína, o destino acaba intervindo, e Catherine é convidada a acompanhar o Sr. e a Sra. Allen, donos da mais valiosa propriedade local, em uma viagem para Bath, onde passarão um tempo para o tratamento da gota do Sr. Allen.

Em Bath, Catherine é introduzida na sociedade, e conhece o jovem Henry Tilney, por quem se interessa. Nesse entremeio, conhece Isabella Thorpe, que recebe a corte do irmão de Catherine, James, e que se torna sua amiga, e o jovem John Thorpe, irmão de Isabella, que se interessa por Catherine, sem ser correspondido.

Catherine aos poucos se apaixona por Henry Tilney, e aproxima-se da irmã dele, Eleanor, com quem faz amizade. Após conhecer o pai e o irmão de Henry, é convidada pela família Tiney para ficar um tempo em sua propriedade, a Abadia de Northanger. Antes de ir, toma conhecimento de que James deseja casar com Isabella, tendo ido pedir consentimento para os pais, mas percebe algum entrosamento entre Isabella e o irmão de Henry, Frederick.

Em Northanger, Catherine interessa-se pelos pretensos segredos da abadia, e é bem tratada pelo pai de Henry, o General Tilney. Catherine se impressiona tanto com a semelhança do lugar e o cenário de seus livros que acaba confundindo a realidade com a fantasia. Lá, recebe uma carta de James, relatando o fim do noivado com Isabella por conta do interesse dela por Frederick, e perde a consideração que tinha pela amiga.

Repentinamente, Catherine é induzida a sair da propriedade e voltar para casa, a pedido do General, que parece ter se aborrecido com ela, sem motivo aparente.

Em casa, após alguns dias, recebe a visita de Henry, que veio pedi-la em casamento, e esclarece que o pai a desconsiderara por sabê-la pobre. Anteriormente, o pai fora informado por John Thorpe que Catherine era abastada, daí o interesse que demonstrara, baseado em uma falsa expectativa. Ao saber a verdade, porém, o pai a desprezara. Henry não compartilha a mesma ideia do pai, e a pede em casamento, sendo aceito. Posteriormente, o general Tilney volta atrás, e tudo tem um final feliz.

Personagens

Catherine Morland: jovem e ingênua filha de um clérigo de Wiltshire, afeita a leituras góticas, que vai a Bath para ser introduzida na vida social. Ingênua e cheia de imaginação, vai aos poucos compreendendo o mundo que a rodeia.

Richard Morland: pai de Catherine.

Sra. Morland: mãe de Catherine.

Sr. Allen: proprietário vizinho dos Morland, um homem sensato e discreto, que vai a Bath para tratar de sua gota.

Sra. Allen: proprietária vizinha dos Morland, uma mulher comum, sem grandes atrativos, sem filhos, mas sendo afeiçoada a Catherine a leva para passar uns dias em Bath, e a ajuda a ser introduzida na sociedade.

Henry Tilney: pastor, sarcástico e inteligente, mas também simpático e bondoso, desperta o interesse de Catherine desde quando se conhecem. Bem educado, mas um tanto sarcástico, conduz Catherine para a percepção do mundo e das pessoas que a cercam.

Sra. Thorpe: antiga amiga de escola da Sra. Allen, reencontra-a quando visitam Bath. Mãe de Isabella e John.

Isabella Thorpe: jovem filha da Sra. Thorpe, irmã de John Thorpe, torna-se grande amiga de Catherine, e é cortejada pelo irmão dessa, James. Um tanto inconsequente, aceita a corte de Frederick Tilney, após saber que o casamento com James não a tornará tão abastada.

James Morland: irmão de Catherine, torna-se amigo de John Thorpe em Oxford, e é apaixonado pela irmã do amigo, Isabella.

John Thorpe: jovem irmão de Isabella, corteja Catherine. Rude e inconveniente, acredita e espalha a história de que Catherine é rica, sendo o motivo pelo qual o General Tilney cria a ideia errônea de sua fortuna.

Eleanor Tilney: sensível irmã de Henry, torna-se aos poucos amiga de Catherine. Discreta e reservada, contrasta com a expansividade de Isabella.

General Tilney: pai de Henry, Eleanor e Frederick, viúvo, apresenta grande consideração por Catherine, acreditando, porém, que ela é rica. Mais tarde, Catherine percebe que sua consideração era por interesse num casamento abastado para Henry.

Capitão Frederick Tilney: irmão de Henry e Eleanor, interessa-se por Isabella Thorpe, porém tem consciência de que seu pai jamais aceitará um casamento com uma mulher de condições inferiores.

INFLUÊNCIAS

Este romance teve, sem dúvida, a influência de Fanny Burney, romancista preferida de Jane Austen, mais marcadamente em Northanger Abbey. Como em Evelina (1778), a obra se passa em Bath; como em Cecilia (1782), o herói pertence a uma família aristocrática; mas certamente é a Camilla, escrito em 1796, que Jane Austen tinha conhecido antes da sua publicação, que Northanger Abbey mais deve.

Certamente é de Camilla Tyrold, heroína do romance, que Catherine Morland deve muitos de seus traços. Como a Camilla é tutelada pelo seu tio Sir Hugh Tyrold, Catherine é confiada aos cuidados da Sra. Allen, o que lhe renderia alguns problemas mais tarde. Por outro lado, é encontrado também em Camilla um mentor, como Henry Tilney para Catherine, na pessoa de Edgar Mandelbert, e uma bela jovem, Indiana, cujos defeitos naturais realçam as qualidades de Camilla, como ocorre com Isabella Thorpe e Catherine Morland.

A influência de Maria Edgeworth se observa também em Northanger Abbey, especialmente seu romance de 1801, Belinda. Mas é especialmente com sua coleção de contos de fadas para crianças, The Parent's Assistant, inspirado em fábulas francesas e contos árabes, que Maria Edgeworth está presente no romance de Jane Austen. Além de Belinda, em sua revisão de “Susan”, em 1802, a segunda edição foi enriquecida com novas histórias, da coleção de Maria Edgeworth.

No entanto, enquanto as obras de Fanny Burney e Maria Edgeworth se insinuam na trama do romance, dando-lhe o caráter de “romance de aprendizagem”, marcando a passagem da heroína para a fase adulta, é a Ann Radcliffe, e mais particularmente às suas obras “A Sicilian Romance, The Romance of the Forest e Les Mystères d'Udolphe”, que se deve o toque gótico que particulariza o romance. E é justamente a esses três livros que Henry Tilney faz alusão quando descreve as aventuras que esperam inevitavelmente os personagens de romances góticos.

Tais obras servem como exemplo para a análise da influência de Ann Radcliffe, Horace Walpole e outros autores: em vez de descrever, narrador onisciente, a sequência de eventos e as ações do "vilão" do romance, a situação é apresentada pela visão subjetiva, através dos olhos da heroína. Esta, isolada, rodeada por inimigos ou falsos amigos, refugia-se em um grande edifício (em geral um castelo gótico...) que, à luz do dia, oferece um abrigo dos perigos externos, mas, depois do anoitecer, torna-se estranho e hostil, evocando alguns desenhos fantásticos de Piranesi. Então, a heroína mostra suas qualidades de senhora, à meia-noite, na exploração das escuras passagens que levam aos lugares ignorados e secretos do castelo do tirano. Depois de uma busca completa dos terrores reprimidos, descobre finalmente um misterioso objeto – um punhal, retratos evocando segredos de família, ou algum baú gigantesco contendo talvez algum esqueleto – a verdadeira "chave" que explica e desvenda os mistérios do passado...

LEITURA


A leitura, especificamente a de romances, aparece como um tema importante, se não o tema principal, de Northanger Abbey, desempenhando várias funções: distração apaixonante, então um centro de interesse, ainda pouco desenvolvido por causa da reputação mal estabelecida dos romances. Também é um caminho iniciático, uma opção para as jovens mentes se abrirem ao mundo, ajudando na diferenciação gradativa entre realidade e ficção, como, por exemplo, reconhecer uma amizade real e não apenas aparente.

ROMANCE GÓTICO

Northanger Abbey é geralmente citado pelo tratamento de paródia que faz dos romances góticos, então um dos gêneros em voga, visando entreter o leitor com um prazer apavorante. Tal sentimento tem apoio no ambiente apresentado (um velho castelo, como o Le Château d'Otrante, ou uma velha abadia, situada em um local lúgubre), além de uma intriga dramática, fértil em reviravoltas (L'Orpheline du Rhin) e recorrendo frequentemente ao sobrenatural (The Necromancer); além destas características, personagens emblemáticas: o monge demoníaco (The Monk, The Midnight Bell), o sombrio e atormentado "vilão" que persegue a heroína (Montoni em Les Mystères d'Udolphe, ou o conde Manfred em Le Château d'Otrante. Tal heroína seria, por exemplo em Les Mystères d'Udolphe, a bela Emily St. Aubert, salva pelo herói Valancourt. Todos estes temas e esses personagens bem conhecidos dos contemporâneos de Jane Austen, constituem o quadro de Northanger Abbey.

De forma um tanto anedótica, Northanger Abbey estabelece uma antologia seletiva dos romances góticos da época. Isabella Thorpe, a amiga de Catherine Morland, revela uma lista relevante de sete "romances abomináveis" em seu pequeno caderno de anotações, lista que ela calorosamente recomenda à sua amiga Catherine. Os romances em questão foram formalmente identificados em 1927 por Michael Sadleir e reeditados em 1968 The Folio Society sob o título The Northanger Set of Jane Austen Horrid Novels. São eles:

The Midnight Bell (1798), de Francis Lathom;  The Castle of Wolfenbach (1793), de Mrs Eliza Parsons;  Clermont (1798), de Regina Maria Roche; The Mysterious Warning – que é chamado erroneamente de Mysterious Warnings por Isabella Thorpe (1795), de Mrs Eliza Parsons; The Necromancer; or, The Tale of the Black Forest (1794), de Karl Friedrich Kahlert ; The Orphan of the Rhine (1798), d'Eleanor Sleath; Horrid Mysteries (1796), de Karl Grosse

Esta lista é frequentemente citada, pois representa a quintessência da novela gótica mais assustadora, e a seleção foi feita por Jane Austen. É também uma lista dos melhores títulos do gênero da Minerva Press, fundada em 1790 por William Lane, cuja especialidade corresponde aos romances góticos "horríveis", destinado a um público feminino de classe média: de fato, seis dos sete romances citados foram publicados pela Minerva Press, sendo a única exceção The Midnight Bell.

ROMANCE DE APRENDIZAGEM

Northanger Abbey apresenta características de um romance de aprendizagem, em que o herói ou heroína passam da adolescência para a idade adulta seguindo um caminho de aprendizagem. Através dos eventos, decepções, da confiança traída, Catherine Morland descobre a realidade da vida, aprende a reconhecer a verdadeira amizade e a distinguir as armadilhas da aparência, aprendendo no final que a vida real não se processa de acordo com as convenções da literatura que ela tanto ama.

Em vários dos livros mencionados em Northanger Abbey, como Camilla e Cecilia, de Fanny Burney, Belinda, de Maria Edgeworth, ou The History of Sir Charles Grandison, de Richardson, apresenta-se igualmente o tema da perigosa entrada no mundo dos adultos de uma heroína vulnerável e inexperiente. Os romances góticos de Ann Radcliffe que servem de pano de fundo à Northanger Abbey – tais como Les Mystères d'Udolphe, The Romance of the Forest ou A Sicilian Romance usam recursos semelhantes, simplesmente amplificando os perigos que entravam o caminho da heroína para o mundo adulto. Não é tão fácil, porém, separar os aparentemente muito diferentes gêneros do romance gótico e dos romances de iniciação de Richardson e Fanny Burney.

Jane Austen se inspirou igualmente nos contos para crianças publicados por Maria Edgeworth em 1796, The Parent's Assistant, que ela apreciava pelo fato de prepararem as crianças para a realidade do mundo moderno, orientando-os para a economia de mercado, convidando-os a conhecer o verdadeiro valor das coisas, sem se ater apenas à sedução imediata (como no conto The Purple Jar). Austen apresenta a diversão e futilidade da Sra. Allen, de Isabella e até mesmo de Catherine, quando do cabelo que adorna sua cabeça, ou até mesmo a forma como Sra. Allen não deixa de notar a renda que decora o manto de sua amiga Sra. Thorpe, mostrando assim aos olhos do leitor o ridículo de elevar renda e musselina a uma posição de importância na ordem das coisas.

DEFESA DO ROMANCE E DOS ROMANCISTAS

Em várias ocasiões, as obras de Austen tomam a defesa dos romances. Tal defesa é particularmente evidente em Northanger Abbey, através dos diálogos de Catherine Morland e Henry Tilney, e ao longo da trama, especialmente no fim do capítulo V (Jane Austen utiliza os mesmos termos que, mais tarde, utilizaria Margaret Oliphant).

Os romances estavam, então, em grande voga, especialmente entre as mulheres, cuja educação progredira consideravelmente no decurso do século XVIII. Tais obras são localizadas entre a origem desta evolução, entre 1692 e o final do século XVIII, quando a maioria dos romances era escrito por autores femininos. A cultura masculina do fim do século XVIII, compreendendo Swift ou Pope, vê com maus olhos a intrusão do espírito feminino na literatura, e um fácil jogo de palavras permitia a esses autores igualar as mulheres "publicadas" com "mulheres públicas", significando prostitutas. Muito gradualmente, até o fim do século XVIII, o romance passa a ser mais valorizado, especialmente com Clara Reeves e seu livro The Progress of Romance (1785), e depois com Joanna Baillie e William Godwin, precisamente na época em que Austen escreveu Northanger Abbey (1797-1798). Dessa forma, a defesa dos romances é, com Jane Austen, um fundamento para romancistas, haja vista serem eles próprios, muitas vezes, a denegrir o gênero: Maria Edgeworth, ao apresentar o romance Belinda, prefere classificá-lo como um "conto moral".

Margaret Oliphant faz em 1882 a defesa do romance feminino face à "nobre poesia» dos homens", pois na época o romance não possuía a aura literária da poesia, gênero nobre por excelência. Além disso, Oliphant, mãe de cinco filhos, historiadora e ensaísta, observa em 1882 que, se a cultura britânica celebra homens famosos por serem a origem do fluxo da poesia nobre na virada dos séculos XVIII e XIX, "negligencia o surgimento repentino, na mesma época, de uma forma puramente feminina de gênio literário”.

LUGARES E MODOS DE VIDA

BATH


Os “Assembly Rooms”, planejados por John Wood em 1769, são um conjunto elegante de "Quartos de férias", localizado no coração da parte histórica de Bath, Somerset, Inglaterra e hoje estão abertos ao público como um local turístico.

Apesar do título Northanger Abbey, a ação do romance não se passa inteiramente na abadia, mas em Bath, onde Catherine Morland permanece a maior parte do tempo, só chegando à abadia posteriormente. Ao comprometer-se com a escrita de Susan, Jane Austen passara algumas semanas em Bath, com sua mãe e sua irmã Cassandra, no final do ano de 1797. Lá, hospedaram-se na casa do irmão da Sra. Austen e sua esposa, Sr. e Sra. Leigh-Perrot, que costumavam passar os meses de inverno numa alta moradia, com vista para o Vale do Avon. Jane Austen e Cassandra se instalam em Bath quando seu pai, no final de 1800, decidiu ir para lá após a aposentadoria. Sem dúvida, esta segunda estadia contribui para uma visão um pouco diferente de Bath em outro romance de Jane Austen, Persuasão.

Bath é uma cidade turística, mas seu desenvolvimento na época de Northanger Abbey foi amplamente baseado na visita, por motivos de saúde, de Ana da Grã-Bretanha (1665-1714), no Século XVIII. Também é desta época Richard "Beau" Nash (1674-1762), que logo se tornaria o mestre da moda. No final do século XVIII, no entanto, Bath já inicia seu declínio, por causa de "novos ricos" e da classe média que fora atraída pela sua reputação.

É justamente nesse contexto que os Allen, acompanhantes de Catherine, vêm se instalar, a princípio por seis semanas, em uma confortável casa de Great Pulteney Street, recém construída a leste do Avon, que o separa do centro de Bath. Em sua primeira saída para o mundo, Catherine se rende às Assembly Rooms de Bath, situadas em Bennet Street, ao norte da cidade, perto da majestosa praça The Circus. Lá, ela descobre a agitação mundana da cidade, vai ao Upper Rooms e percebe não ter nenhum par que a acompanhe à pista de dança. Mais tarde, nos Lower Rooms, ao sul da cidade, não longe dos Pump Rooms, ela finalmente dança com Henry Tilney. Os antigos Lower Rooms, localizados na área onde atualmente estão os Parade Gardens, foram destruídos por um incêndio em 1820.

A ABADIA DE NORTHANGER

Enquanto Bath está ligado ao desenrolar do enredo do romance, em grande parte é na Abadia de Northanger que a segunda parte do romance se desenvolve.

A Abadia de Northanger, propriedade da família Tilney, constitui para Catherine Morland a realização de um sonho: que quadro mais bonito se pode imaginar para um romance gótico do que a velha Abadia? Como sugerido por Eleanor a Catherine, a abadia fora um convento da época da Reforma Inglesa, adquirida por um antepassado de Tilney na Dissolução dos Mosteiros, no século XVII, e os seus nobres elementos estavam preservados quando Catherine Morland os conheceu[6]. Após a dissolução, na verdade, muitos conventos foram reformados pelos seus novos proprietários para se tornarem residências, e Jane Austen estava provavelmente familiarizada com abadias convertidas, como a Abadia de Lacock, em Wiltshire, que visitara quando fora para Bath, com sua família, em 1797.

Um dos argumentos usados por Brian Southam para sustentar a ideia de que Jane Austen mudara significativamente sua obra após 1803, e provavelmente em 1816, é vinculado à proximidade dos temas revelados entre Northanger Abbey e Sanditon, o último romance da autora, escrito, segundo ela, em 1817. Sanditon realmente desenvolve temas de um modernismo inesperado, evocando uma sociedade de consumo, onde o desenvolvimento imobiliário era pleno, e onde a especulação e o afluxo de turistas inflacionaram o mercado. Sem ir tão longe, Northanger Abbey aborda muitos aspectos modernos, nomeadamente através do general Tilney, grande amante das últimas tecnologias avançadas.

Para o desapontamento de Catherine, com efeito, a venerável Abadia de Northanger sofreu nas mãos de seu proprietário muitas mudanças tecnológicas com a função de "melhorias": a antiga e majestosa lareira esculpida, que esperava encontrar na sala de estar, foi substituído por um hall adaptado e sem fumaça, com um mecanismo inventado dois anos antes por Benjamin Thompson; as janelas, que o general afirmara terem sido preservadas em seu modelo gótico, ganharam amplas vidraças, com uma iluminação mais moderna, “a forma era gótica [...] – mas todas as vidraças eram tão grandes, tão claras, tão iluminadas! Para uma imaginação que ansiara por compartimentos minúsculos e pela mais pesada cantaria, por vidros pintados, sujeira e teias de aranha, a diferença era bastante penosa”.

O general Tilney adota o modernismo em outros domínios: cultiva frutos exóticos, em grandes estufas aquecidas, para que possam ser usados na mesa fora de temporada. Nas cozinhas, também há uma organização moderna, em detrimento do caráter antigo da casa. A busca sistemática de eficiência reflete que sua associação à aristocracia ganhara agora ideias do capitalismo.

Catherine Morland, em visita ao presbitério de Henry, em Woodston, redescobre os prazeres simples da vida campestre, longe da aristocrática Abadia de Northanger.

OPOSIÇÃO ENTRE RICOS E POBRES

De modo mais geral, Jane Austen opõe, em Northanger Abbey, o espírito modernista dos «melhoradores», na acepção dos verdadeiros valores tradicionais de Henry Tilney e Catherine Morland. Isso irá refletir no maior interesse pela vida em Woodston, aldeia cheia de vida, onde está o presbitério de Henry, em comparação com o moderno e frio conforto da Abadia de Northanger, renovada pelo general. O surgimento de uma rica aristocracia leva, em 1790, a uma correspondente privação dos habitantes do campo inglês: em particular o “Inclosure Acts”, de 1801, que interrompera a vida do mundo agrícola em muitas partes da Grã-Bretanha.

Contudo, esta questão do “Inclosure Acts” não fora a única a aquecer os espíritos da época: assim, em 1795, quatro anos antes de Jane Austen se dedicar a seu romance, uma má colheita oferecera a oportunidade de ricos fazendeiros e comerciantes de grãos aumentarem seus lucros, reduzindo ainda mais suas entregas de trigo, para elevar o preço do pão. Esta manobra especulativa, conhecida sob o nome de forestalling, que resultou na visível riqueza para alguns e na “fome” para outros, foi condenada por Lord Kenyon, Chefe da Justiça da Grã-Bretanha e dos países de Galles, como contrária ao direito consuetudinário.

Sobre esse pano de fundo é interpretada a oposição entre o general Tilney, rico proprietário de terras, amante da modernidade, mas egoísta e calculista, e seu filho, o clérigo benevolente de uma aldeia hospedada pela indústria dos seus habitantes, em uma paisagem viva e variada (que é designada, então, pela expressão well-connected landscape). Essas questões políticas são evocadas por Henry Tilney no fim do passeio à Beechen Cliff, quando a vista sobre a paisagem lhe dá a oportunidade de passar das florestas de carvalho para as cercas que os rodeiam (inclosure), para as terras da Coroa e, finalmente, para qualquer política em geral.

CASAMENTO

Henry Tilney pede a mão de Catherine a seus pais, sob grande surpresa. Se o casamento de amor triunfa em Northanger Abbey, com a união de Catherine e Henry, permitindo o de Eleanor e seu pretendente de longa data, este é o primeiro e independente do dinheiro, que parece ser o propulsor do casamento para os outros protagonistas da novela, em particular para o general Tilney, totalmente desprovido de romantismo e puramente mercenário sobre a abordagem do casamento. Apesar de muito rico, o dinheiro é o derradeiro desafio para ele: ele trata Catherine com polidez excessiva quando acredita que ela é rica, mas quando descobre através de John Thorpe que, na verdade, não teria nenhuma esperança de dote, um pânico real toma conta dele. O General Tilney também coloca suas ideias em aplicação por conta própria, desde que se casou com sua esposa sem amor, apenas pelo seu dinheiro.

Por seu lado, Isabella e John Thorpe também têm uma visão muito mercenária do casamento; isto é aparente no caso de Isabella e torna-se evidente com seu irmão, quando o percebemos com divagações financeiras inspiradas na situação de Catherine Morland.

UM ROMANCE POLICIAL A DESVENDAR

Destaca-se o caráter de "romance policial sem policial" (uma história de detetive sem um detetive) de Emma. Em menor grau, destaca-se essa mesma característica em Northanger Abbey. Na verdade, ele pode ser o objeto de uma releitura, considerando-se as pistas reveladas ao longo do romance.

Assim é o papel da família Thorpe e suas motivações, que permitem uma releitura mais bem-sucedida, considerando-se as fantasias de John Thorpe sobre a riqueza potencial de Catherine Morland, como sendo ela a única herdeira dos Allen. O interesse que ele manifesta, de maneira grosseira e sem grande disfarce, pela rica herdeira que imagina em Catherine, não é como o fruto de seus próprios pensamentos? Não é esse o interesse de sua irmã Isabella, e até de sua mãe?. Os jovens Thorpe, portanto, órfãos de pai, são pobres e sem dote em busca de um bom casamento para ambos. É realmente por uma feliz coincidência as três jovens Thorpe e sua mãe chegarem em Bath ao mesmo tempo que os Allen de Fullerton – ricos amigos da Sra. Thorpe e seus filhos – acompanhados de sua protegida Catherine? É coincidência que John Thorpe chega a Bath em companhia de seu amigo James Morland, que tanto falara de sua irmã Catherine e do interesse dos Allen para com ela, quando os Thorpe o receberam em Putney para o feriado de Natal? E até mesmo é por acaso que em primeiro lugar John Thorpe tenha feito amizade em Oxford com uma outra pessoa de Fullerton, James Morland? E como não poderia se deixar de notar com surpresa o interesse imediato que reflete a jovem Isabella para com Catherine e sua presença constante, ao longo de "oito ou nove dias" antes da chegada de seu irmão John?

Na primeira parte do romance, Isabella aparece, portanto, como uma formidável conspiradora, que não hesita em pôr em risco a felicidade de sua "amiga" Catherine, buscando constantemente deixá-la longe de Tilney, para o benefício de John, apesar de a fixação de Catherine por Henry lhe ser bem conhecida.

PARÓDIA

De todos os romances de Jane Austen, Northanger Abbey é aquele cujo aspecto de paródia é mais importante. A obra é sobretudo hoje conhecida pelo seu tratamento para com os romances góticos, e traz mais a vibrante zombaria paródica da adolescente Jane Austen do que os grandes romances realistas de sua maturidade, tais como Mansfield Park, Emma ou Persuasão.

Jane Austen parodia abertamente os romances góticos em três passagens específicas: Uma das passagens ocorre durante a primeira alegria violenta que toma conta de Catherine, quando ela compreende o que é capaz de viver numa abadia gótica, um ambiente ideal para uma aventura verdadeiramente romântica: então pensa em voz alta, evocando as suas expectativas neste lugar mágico, com seus longos corredores e paredes úmidas, sua capela em ruínas, e, talvez também, a chance de adentrar em alguma lenda do passado, ou mesmo "terríveis memórias da presença de alguma freira ferida no destino trágico".

Das palavras de Henry Tilney, neste momento, está a passagem que expõe Catherine, com um prazer lúdico, ante os "horrores" que provavelmente contém a antiga Abadia, casa isolada, enorme e cheia de trevas, que não podem ser atribuídas para o outro extremo da casa, “um retrato que exerce sobre você uma fascinação incompreensível, a tal ponto que não é possível desviar os olhos, ou uma porta que você vai descobrir, com um terror renovado, que não pode ser fechada". E Henry continua então, mediante o interesse de Catherine, a imaginar as aventuras que lhe trará a Abadia de Northanger, até o momento em que ela retorna para seu quarto após descobrir um manuscrito valioso nas entranhas da Abadia, “sua lâmpada de repente expira na tomada e deixa você na escuridão total”. Todas as aventuras imaginárias que podem reforçar a segurança de Catherine, e que aguardam terrores maravilhosos, assim como a descrição de Henry em todos os seus aspectos estão de acordo com a abordagem de Ann Radcliffe do romance gótico.

Ponto relevante, finalmente, das aventuras góticas, é a aplicação da teoria por Catherine. Após uma primeira busca, realizada à noite em seu quarto, que a pode levar a um resultado decepcionante, Catherine estabelece argumentos para provar que o general é maléfico, assassino de sua esposa, coisa que ela acredita ter adivinhado. Depois de submeter Eleanor a um fogo de perguntas sobre sua mãe, ela começa, então, uma exploração que leva aos apartamentos, claros e sem mistérios, da falecida. Suas suspeitas, quando são percebidas, recebem um verdadeiro sermão de Henry Tilney, que a surpreende no topo das escadas. Catherine, vermelha de vergonha, percebe que assimilou certos caracteres dos arquétipos dos romances que ela leu, e que perdeu qualquer espírito crítico, abandonando-se à imaginação mais extravagante.

JOGO DE PAPÉIS

O romance de Jane Austen segue maliciosamente conforme o cânone do romance gótico, através de cada um dos personagens, adequando-se às funções clássicas destes romances. Há, naturalmente, a própria heroína, Catherine Morland. Jane Austen mostra rapidamente, logo nas primeiras páginas, o mal que a garota assimila, pelo fato de aos seus quinze anos ser tão pouco preparada. Este é o centro do romance, através dos olhos do leitor, que vê a se desenrolar trama. Por sua parte, Henry Tilney encarna o herói cheio de mistério, que se empenhará em salvá-la.

Se o general Tilney é a transposição do "vilão" Montoni de Les Mystères d'Udolphe de Ann Radcliffe, papel que lhe é atribuído explicitamente por Catherine Morland, há também a figura do "raptor", que envolve a heroína, apesar de sua resistência; em Northanger Abbey esse personagem é John Thorpe, que leva Catherine contra a sua vontade em uma excursão distante, ao galope de seu cavalo. Sua irmã Isabella, por outro lado, aparece no papel de "falsa amiga", incluindo os reiterados protestos de amizade no início, abusando da credulidade da heroína.

No entanto, a fronteira entre as características góticas e a realidade às vezes é bastante teórica: foi observado que a única "evidência" que é oferecida da inocência do General Tilney é o seguinte argumento de Henry à Catherine: “Lembre-se de que somos ingleses, de que somos cristãos. (...) É possível que (tais atrocidades) sejam perpetradas e permaneçam ignoradas, num país como esse (...)?”. Tudo repousa sobre o fato de que Henry Tilney parece assumir o papel de “porta-voz de Jane Austen”. Também foi observado que a idade de Henry Tilney estava muito próxima à de Jane Austen, quando ela escreve o romance (tinha 24 anos em 1799).

IRONIA


Mais do que em seus outros romances - porque Northanger Abbey, obra da juventude de Austen, está mais próximo ao tom de Juvenilia - o bom humor e a ironia constante estão presentes no romance, mas atingem todos os da primeira fase. Assim, pode ser classificado rapidamente, como de um humor burlesco, inconsciente. Em outros momentos, as classificações são mais mordazes, indo para o tom de humor negro. Logo na primeira página, aprendemos, por exemplo, que a Sra. Morland teve três filhos antes do nascimento de Catherine: “Ela tivera três filhos antes do nascimento de Catherine, e em vez de morrer ao trazer esta última ao mundo, como seria de se esperar, seguiu vivendo – viveu para ter mais seis crianças”.

Da mesma forma, é com ironia que Jane Austen sublinha a ingenuidade de Catherine, quando acredita cegamente em sua amiga Isabella na ocasião em que ela expressa o amor por seu irmão, James Morland: “continuou Isabella, '(...) pensei que jamais tinha visto alguém tão bonito antes'. Aqui, Catherine reconheceu secretamente o poder do amor, pois, embora adorasse muitíssimo seu irmão, (...) nunca em sua vida o julgara bonito”.

A sabedoria e o conhecimento adquiridos por Catherine Morland na leitura dos romances góticos são também objeto de uma nota irônica da autora: “Bem versada na arte de esconder tesouros, não se esqueceu da possibilidade de que existissem revestimentos falsos nas gavetas, e tateou cada uma delas com ansioso zelo, em vão”.

Tanto a impaciência febril que demonstra Catherine, quanto seu enorme desejo de visitar Woodston, a aldeia onde se encontra o presbitério de Henry Tilney, ambos Jane Austen contrasta com o curso imprudente dos dias: “pois chegou, (a quarta-feira), exatamente quando se poderia esperar que chegasse”.

DISCURSO INDIRETO LIVRE


O primeiro dos grandes romances de Jane Austen, Northanger Abbey ao mesmo tempo é um romance de juventude, onde a autora ainda busca o seu estilo. Ela experimenta várias formas de narrativa, que às vezes se misturam, criando uma sensação de confusão ou perplexidade.

A. Walton Litz sublinha a impressão de que Jane Austen, na maioria das vezes, parece expressar sua opinião através da voz de Henry Tilney, e isso acontece na fala direta (intrusão do autor na narrativa), ou mesmo na ironia de Henry. A percepção do lugar do romance é afetada, de forma que o leitor a perceba como "chocante". Outras vezes, Jane Austen usa o que se tornaria uma das marcas de seu estilo, o discurso indireto livre: uma narrativa cuja característica é a não utilização do verbo introdutório ("falar", "dizer" ou "pensar"), apresentando livremente e sem intermediários os pensamentos dos personagens. Jane Austen faz, por exemplo, sua heroína Catherine Morland pensar em voz alta, durante suas voltas de frenética imaginação pela Abadia, em lugares escondidos e dramáticas sombras, entre a gótica extravagância que ela tanto aprecia: “O sangue de Catherine gelou com as pavorosas sugestões que emanaram naturalmente de tais palavras. Seria possível? Poderia o pai de Henry…? E contudo eram tanto os exemplos que justificavam até mesmo as mais negras suspeitas!”. Além disso, o discurso indireto livre permite frases incompletas e cortes, para explicar a emoção de Catherine, cujas ideias batem umas contra as outras. Esta forma de narrativa é emprestada das fábulas de Jean de la Fontaine, e foi introduzida, como recorda Margaret Anne Doody, na literatura inglesa por Fanny Burney e algumas outras mulheres escritoras no final do século XVIII.

O estilo indireto livre, pelo seu segmento, poderia ser visto como uma forma de ironia, na medida em que o autor pretenda aderir às palavras do personagem; por outro lado, também pode ser visto como um sinal de simpatia ou de empatia com o leitor. Esse tom irônico é evidente em Northanger Abbey, onde Jane Austen dá livre curso à imaginação juvenil de Catherine Morland.

ADAPTAÇÕES PARA A TELA


Embora tenha havido várias adaptações de rádio pela BBC desde 1949 e muitas adaptações teatrais, a primeira, por Miss Rosina Filippi, data de 1895, a mais recente em 2008, pela Dorset Corset Theatre Company, há apenas duas adaptações para a tela:

2018 : Orgulho e Paixão (novela). A personagem Cecília, interpretada por Anaju Dorigon, é inspirada no livro

2007 : Northanger Abbey, telefilme de Jon Jones para a ITV1, com Felicity Jones no papel de Catherine Morland e J.J. Feild no papel de Henry Tilney;

1986 : Northanger Abbey, filme de 88 min de Giles Foster, com Katharine Schlesinger no papel de Catherine Morland e Peter Firth no papel de Henry Tilney, estreando em 15 de fevereiro de 1987 pela BBC, na transmissão de Screen Two.

Fonte:
Wikipedia

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 429

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando Três) Pra tudo há solução


Os dois homens,  o senhor Alceu e o senhor Moacir, conversam na porta do  galpão. O galpão é de propriedade do senhor Alceu, que aparentemente parece furioso.

Senhor Alceu:

— Só me responda uma pergunta, senhor Moacir

Senhor Moacir:

— Se estiver ao meu alcance...

Senhor Alceu:

— Estará, com certeza. O velho Euclides me deu a cunha. Seu Assis passou nos cobres o machado, seu Jânio foi na feira de domingo e trocou os quadros por batatas, cenouras, melancias e bananas.. Aquele baixotinho... Diabo, como era mesmo o nome dele?

Senhor Moacir:

— O Pero Vaz?

Senhor Alceu:

— Esse mesmo. Nome mais desgraçado!

Senhor Moacir:

— O que tem o senhor Pero Vaz?

Senhor Alceu:

— Vendeu a caminha onde dormia para meu filho Bisoião.

Senhor Moacir:

— E lhe deu o dinheiro, certamente?

Senhor Alceu:

— Não. Botou no bolso e deu linha à pipa. O Silvio, que parecia ser o mais responsável, fugiu pra Santos. O Fernando, sabino que só ele, anoiteceu e não amanheceu, o Paulo, outro sem vergonha, me deixou um coelho. Nem sei o que vou fazer com o pobre bichinho. E o Guimarães, quase bati nele. Deu uma rosa para minha esposa. Carinha safada, esse um... Afinal, nessa confusão toda, seu Moacir, quem me pagará o aluguel aqui do galpão que eu aluguei pra vocês?

Senhor Moacir:

— Seu Cristóvão.

Senhor Alceu:

— E posso saber com quê?

Senhor Moacir:

— Claro

Senhor Alceu:

— Então diga ai...

Senhor Moacir:

— Co’ lombo.    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 12


Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) IV


CANSAÇO

No cansaço da noite, entre os cansaços,
tive um sonho esquisito e diferente,
pois, sonhei abraçado noutros braços,
entre os braços da noite, descontente.

Ante um sonho, outro sonho e, de repente,
eu me sinto algemado noutros laços,
como quem segue a vida loucamente,
controlando as pegadas de outros passos...

E, eu sonhando e sonhando pouco a pouco,
fui ficando no sonho quase louco
nessa louca paixão que não passou...

Se os teus beijos, neguei sem ter ressábios,
quero agora, pagá-los noutros lábios
esses beijos que a vida me negou!
****************************************

DELÍRIOS DA AURORA

Quando a aurora bem cedo abre a cortina,
ante os raios do Sol, o orvalho chora,
pestaneja no céu a luz divina
e resplende, na terra, a luz da aurora!

Basta o olhar dessa aurora peregrina,
passageira que, ao longe, o céu decora,
e, aos pouquinhos, dos braços da campina,
o silêncio da noite vai embora!

Sobre as copas de antigos arvoredos,
lindas aves revelam seus segredos,
dando vivas, à luz do Sol nascente...

E entre coros, canções, ressurge a vida,
despertando essa paz adormecida,
que adormece de novo ao sol poente!
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ILHA DE SANT'ANA

Tua origem, de fato, ninguém sabe,
mas nasceste das cinzas deste pó;
Ilha amada, em teu ventre, tudo cabe,
aos sussurros do velho Seridó!

Que teu nome, no tempo, não desabe,
nem te deixem viver assim tão só;
que o teu canto de amor nunca se acabe,
ante o olhar de Sant'Ana, nossa avó!

Sob as bênçãos de nossa padroeira,
e os arpejos de cada cachoeira,
que deságua nas terras deste chão...

Quando o rio, de verde se reveste,
tens a imagem mais pura do Nordeste,
e és a Ilha mais linda do sertão!
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MATIZES DA AURORA

Brindo e abraço, na aurora, outra alvorada,
todo dia, da porta do meu quarto,
no silêncio da velha madrugada,
ouço o choro da luz de um novo parto!

Esse raio de luz que eu não descarto,
no meu teto, depressa, faz morada...
Abro portas, janelas, não me farto,
não me canso do olhar da luz dourada!

E essa luz, em silêncio, a caminhar,
traz o brilho da aurora, em seu olhar,
apagando, da noite, a treva ardente...

E entre cantos, sussurro e mil respingos,
põe, nas luzes do orvalho e em ternos pingos,
os matizes da luz do Sol nascente!
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VIVA PLENAMENTE

Pelas trilhas tortuosas dos caminhos,
há empecilhos, bravatas e há temores...
Quanto sonho vencido entre os sozinhos,
quanta glória perdida entre os amores!

Nas angústias do mundo há mais espinhos
do que o cheiro da paz que tem nas flores...
Mas sem ódio e sem mágoa, em nossos ninhos,
nosso sonho de amor inibe as dores!

Deixo, em poucas palavras, meus apelos;
- Por que sempre guardar seus pesadelos
se a esperança cochila ao pé da porta.

Pode haver plenitude, em meio aos trapos;
A esperança não morre entre os farrapos
e viver plenamente, é o que me importa!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Carlos Eduardo Novaes (Aeroporto de Congonhas, uma, duas, várias vergonhas)


Ao ser inaugurado, em agosto de 1934, Congonhas era considerado um modelo de “obra aeroviária”. Como todo bom aeroporto que se preza, também ficava a alguns minutos da cidade. Cedo, porém, os executivos paulistas, sempre muito atarefados, começaram a reclamar que não podiam perder esses minutos entre a cidade e o aeroporto.

– O senhor compreende – queixou-se um executivo a uma autoridade da época – esse percurso nos rouba um precioso tempo. Será que não dá pra chegar a cidade um pouquinho mais para perto do aeroporto?

A autoridade fez um ar de indignação e exclamou que a proposta “era um absurdo”; mas como São Paulo não pode parar – e não pode parar nem pra pensar – não tomou nenhuma providência. A cidade então foi se aproximando, já ajudada pela população em geral, que desde o início se amarrou em fazer programa no aeroporto. Várias famílias inclusive venderam suas casas de campo e compraram outras em Congonhas para poderem passar um fim de semana mais tranquilo no aeroporto. A cidade continuou sorrateiramente se aproximando, se aproximando, pegou as autoridades distraídas e de repente fez o que os índios fazem com as diligências nos bangue-bangues americanos: cercou o aeroporto.

Hoje, os aviões sobem e descem passando a dois palmos dos telhados das casas e, enquanto outros locais da cidade exaltam suas pracinhas, igrejas, monumentos, lagos, residências, Congonhas se vangloria de ser o único bairro metropolitano em todo o mundo que possui um aeroporto internacional na esquina de suas ruas.

O Aeroporto de Congonhas é um digno exemplo do milagre brasileiro. É realmente um milagre que no local ainda não tenha havido um acidente de proporções supersônicas. O aeroporto está condenado desde o congresso brasileiro aeronáutico, realizado em 1958. Sua pista principal tem 1 mil 867 metros e não oferece os padrões de segurança necessários às operações com jatos. Para vocês terem uma ideia: um Boeing-727 necessita de 3 quilômetros de pista para aterrissar ou decolar. E não é muito raro se ver um avião, ao pousar, abrir os paraquedas, para não varar a pista e sair lá pela Avenida Rubem Berta. Ano passado, um turboélice errou nas contas, atravessou a pista e foi bater num poste na Avenida Jabaquara, causando o maior congestionamento no trânsito. A perícia demorou três horas para chegar (o que não é muito: para os carros demora duas horas) e entre outras coisas concluiu que a empresa deveria pagar uma multa ao Detran.

– Mas – indagou o funcionário da empresa – multa por quê?

– Por avanço de sinal, é claro – disse o perito. ­ Várias testemunhas afirmaram que o sinal estava fechado para o seu avião.

E o pior, meus amigos, é que as pistas de Congonhas não podem ser aumentadas, sob pena de se misturarem com as ruas. Já se pensou na solução dos viadutos. São Paulo seria a primeira cidade do mundo a ter uma pista de pouso em cima de um viaduto. Depois, porém, chegou-se à conclusão de que, pelo tamanho, seria muito oneroso: para satisfazer aos jumbos a pista do aeroporto teria que começar mais ou menos na Praça da República.

Vivendo anos debaixo do ruído permanente das aeronaves, os. moradores de Congonhas, aos poucos, foram modificando seus hábitos, seus costumes, seus encontros:

– Eu queria dar um pulinho aí para lhe ver – disse uma amiga da tia do Aristides, falando pelo telefone.

– Venha mesmo – respondeu a tia – que nós precisamos conversar.

– E qual é a melhor hora pra você? Ah, venha depois do Boeing das oito.

As janelas das casas, por exemplo, só tem a armação.

Os vidros foram dispensados em 1958, quando chegou o primeiro jato. Sempre que levantava voo, o jato quebrava todas as vidraças do bairro. Os espelhos, para não estilhaçarem, já são comprados aos cacos. As antenas de televisão são subterrâneas. Uma vez, um Lockheed calculou mal a descida e aterrissou com 11 antenas de televisão espetadas no bojo. Apesar de todas as precauções dos moradores, às vezes ocorrem certos imprevistos. Não faz muito tempo, um Jumbo passou tão baixo que arrastou as roupas que estavam estendidas num quintal. A dona da casa teve que ir reclamar no balcão da companhia:

– Boa tarde – disse ela – eu vim buscar minhas roupas que vieram nesse Jumbo que acabou de descer.

– Pois não – falou a recepcionista – qual é o número de sua mala?

– Não. Elas não estavam na mala.

– Não? – voltou a moça. – Estavam onde, então?

– Estavam no varal lá de casa.

Ninguém no bairro usa relógio. Todos se orientam pelos voos. Na casa da tia do Aristides a família acorda às 6h43m quando passa o Viscount prefixo PP-PTB; toma banho às l0h29m, na passagem do Boeing-747; almoça às 12h43m com o Caravelle. Aristides, que passou uns dias em Congonhas, ficou impressionado com a tarimba da tia. Um dia acordou e perguntou a ela como estava o tempo lá fora.

– Nublado.

– Mas como é que a senhora sabe, se nem olhou? Nem precisa. Tem um YS-11 há meia-hora roncando aqui em cima. Não há teto para descer.

Em Congonhas, entretanto, corre-se o risco de dormir na cama e acordar na poltrona de um DC-10. Uma vizinha da tia de Aristides conta que uma noite bateram na sua casa às quatro horas da manhã. Ela se levantou e quando abriu a porta deu de cara com um Boeing. Mais desagradável, porém, do que ver um Boeing entrando pela sala sem ser chamado são os problemas causados pela poluição sonora. São 300 decolagens ou aterrissagens por dia, o que dá em média um ronco de avião a cada quatro minutos. Como o ruído dos jatos alcança 140 decibéis – o ouvido humano suporta sem danos 85 – conclui-se que os moradores de Congonhas em matéria de barulho são vice-campeões mundiais. Só perdem mesmo para os moradores do Cabo Kennedy, onde os foguetes espaciais decolam a 180 decibéis. Segundo um trabalho da UNESCO, o maior consumo de algodão em todo o mundo é no bairro de Congonhas.

No Hospital do Servidor Público, próximo ao aeroporto, a primeira providência para com uma criança ao nascer é botar-lhe algodão nos ouvidos. Depois, então, corta-se o cordão umbilical. Aliás, é curioso como o resultado de uma pesquisa recente revelou que 90% dos meninos do bairro ao crescerem querem ser soldados. E por que isso?

– Pra poder servir nas baterias antiaéreas.

– E o pessoal aqui do bairro normalmente dorme bem? – perguntou o entrevistador.

– Dorme.

– Ninguém tem insônia?

– Às vezes. Um ou outro.

– E quando não se consegue dormir – voltou o en­trevistador – que é que vocês fazem? Contam carneirinhos?

– Não senhor. Contar carneirinho é coisa do passado.

– Também acho – concordou o entrevistador. ­Que fazem, então?

– Contamos aviões.

Há, contudo, casos excepcionais, como o do marido da tia do Aristides, um senhor de 92 anos (20 a mais que ela), cujas profundas olheiras impressionaram tanto a Aristides que ele foi perguntar à tia: “Ele está doente?”

– Não. É que não dorme desde 1958.

– E por quê?

– Não conseguiu se adaptar ao barulho dos jatos – explicou ela – estamos aqui desde 1930. O ruído dos aviões a pistão e turboélices ele não teve dificuldades em assimilar, mas com os jatos não conseguiu. Disse que já estava muito velho para se adaptar a um novo ronco.

Quando, porém, soube da chegada do primeiro super­sônico a Congonhas, o velho correu para a janela. E ficou maravilhado diante do silêncio com que o avião pousou… Voltou para dentro de casa aos berros: “Estou salvo, viva, viva, até que enfim inventaram um avião silencioso, agora poderei dormir, viva” – e comemorando abraçava a todos até ser interrompido bruscamente por um vigoroso estrondo que parecia estar rachando o céu. Parou lívido no meio da sala e perguntou:

– Que foi isso?

– O som do avião.

– Mas que avião? – perguntou o velho consultando os céus. – Não tem avião agora.

– Foi do que acabou de descer. Ele não é mais rápido que o som? Então. Com avião supersônico é assim mesmo. O som chega sempre com 10 minutos de atraso.

Mas afinal, perguntarão vocês, por que essa conversa toda sobre o aeroporto de São Paulo, se nós moramos no Rio? Porque parece que agora as coisas vão mudar. Reconhecendo que o ruído dos aviões vem criando graves problemas para os moradores de Congonhas, as autoridades resolveram interditar os voos das 22 às 6 horas da manhã, para que o pessoal possa dormir mais um pouco.

– Mas por que só em Congonhas? – perguntou um carioca. – E o pessoal da Ilha do Governador?

– Bem – respondeu um funcionário do DAC – o pessoal da Ilha tem que esperar. Afinal, não pode dormir todo mundo ao mesmo tempo.

E eu fico aqui pensando, irmãos, que isso, e muito mais que não contei, acontece exatamente na terra do pai da aviação. Como não estaríamos, então, se isso fosse apenas a terra de um primo da aviação?

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. O caos nosso de cada dia. Publicado em 1976.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 428

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 7 e 8


A PERFEITA SABEDORIA

A verdadeira sabedoria está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco, reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.

Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na superfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas páginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de interpretação.

Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por alguém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.

Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu.

O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.

O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os estilhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a perfeita sabedoria. Nunca mais foi feliz.
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A SALVAÇÃO DA PÁTRIA

No bar, os bêbados salvaram a pátria. Se os planos eram em forma de chope, a salvação fazia-se tranquila, e o superempréstimo internacional, garantido pela exploração intensiva da Manihot utilissima durante vinte anos, traria o desejado equilíbrio financeiro, social e humano.

Os argumentos revestidos de uísque suscitavam maior debate, diversificando-se de modo a abranger desde o resgate da dívida externa, mediante empréstimo compulsório de mil cruzeiros por cidadão, durante doze meses, até a redistribuição efetiva da renda nacional, fosse qual fosse o per capita, ficando cada brasileiro, daí por diante, pago e quite com o governo, sem direito a reclamar senão votos de boas-festas.

Uma sugestão à base de vodca foi repelida, porque exigia de cada cidadão três horas de serviço braçal pesado em usinas, abertura de estradas, construção de viadutos etc.

O garçom Foguinho, estimado por todos, sugeriu que, à vista de já raiar sanguínea e fresca a madrugada, a salvação da pátria fosse adiada para a noite seguinte. Todos aplaudiram o alvitre e, retirando-se cambaleantes, entraram em acordo, fosse qual fosse o plano a ser adotado. Foguinho foi incumbido de executá-lo, no mais alto posto da nação. Agradeceu a prova de confiança e jurou que, na eventualidade, tudo faria para o bem de todos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 8


ÁPICE

No ápice do sucesso
percebe o apagar
das luzes

reflete a escuridão
em que se aventura
longe do futuro

o tempo disponibilizado
no alargar da terra
ao largar a terra
no largo abraço de despedida

o ápice recontado
prepondera no corpo
estendido: nas cobertas
o frio esquecimento.
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APRENDENDO A VOLTAR

I


aprendo a voltar
e me perco
em recordações:

o passado
petrificado
em passos
o retorno
fechado
em acasos

aprendo ser a volta
o pior do encontro

o rasgo instantâneo
do corpo ao mistério.

XXIX

voltar é a representação gráfica
do naufrágio
e
a antevisão do encontro
não acontecido
ao acaso

nos cestos os ovos permanecem
estáticos em vidas
interiores

anteriormente
pensei desenhos
decompostos em traços
onde enredei
o sentido
da lembrança

a vida explode receptáculos
e retorna como sina.
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CERCAS

Fragilizo a cerca e com passos rápidos
encerro minha carreira: o esconderijo guarda
o medo ressentido no vento contra os vidros:
aguardo o tempo anunciado e do escuro
saio assustado buscando
na distância a cerca
onde me instalo: o vento geme a minha dor
desacostumada: o ar gira o grito desumano
em que perco as lembranças: fortifico
a cerca com incertezas: escondo a lágrima
e com o rosto seco saio ao relento:
ouço a voz do irrealizável: abro
a cerca ao farpado arame
e deposito a carne: encerro a vista
em lamentos: a tormenta se afasta.
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DEPOIS

Depois: irmanado em tanques
de tiros desajustados invado a obra
e retiro dos escombros o motivo
preso ao desafio de pazes descumpridas.

Declaro guerras aos insanos tímpanos
insistentes em músicas e letras no artifício
de transformar barro em coisa: coisificar
a pedra: estátuas acompanham a passagem
e me entregam com a falta de respeito: quieto
e saliente permito o passo da conquista.

Depois: interrompo a luz e me desfaço na poeira.
Exalo suspiros de vingança e ao perceber a falha
pego no ar a fragrância daquele corpo de mulher.
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NÃO

Não desgosto estar contigo
comigo o anzol pesca
o sol queima o mosquito
o mar avança suas ondas

teu sonho impenetrável
não me recebe e não sonho
no sono que me faz acordado

meu livro marca a folha ilegível
e na música – a minha – o tom
agudiza a lembrança: a solidão
contempla de forma amigável

estar contigo é aguardar
a hora – que me falta –
necessária ao corte da fruta
amadurecida: reter no copo
o líquido e esquecer o anzol
dentro d’água.
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VERGONHA

Rubro rosto
na vergonha
da palavra

o comprimido sobre a mesa
o copo d’água

rubra face
na vergonha
do encontro

comprimidos sobre a mesa
o copo d’água

lívida face no desencontro
sobre a mesa o copo vazio.
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outros poemas:
http://pedrodubois.blogspot.com.br


Fonte:
Poemas enviados pelo poeta