quarta-feira, 26 de julho de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 9

 

Marques de Carvalho (Um como tantos)

Haviam já passado para Nazareth, de volta do Vero-peso, os derradeiros bondes do espetáculo. A pouco e pouco, os peões tinham rareado no cimento dos largos passeios das avenidas, — o trânsito fizera-se nulo, um ou outro noctívago impenitente andava errante à sombra propícia das folhudas mangueiras, investigando a distância com olhares incendidos de uma ponta de lubricidade contida a contra-gosto. Nos renques da iluminação elétrica manifestavam-se eclipses intermitentes, contra os quais praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro de uma carruagem estacionada em frente ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço do Café Riche. Entretanto, um criado sonolento, não obstante a ausência de frequentadores, persistia, pelo hábito, em dispô-las em simetria, rodeando-as de cadeiras. O chão estava zebrado de umidades adocicadas, escorrido de Apolinaris transbordante, coalhado de rolhas, aqui e acolá brilhante de pedaços de cápsulas das garrafas de cerveja. Perto, gania um cão. Mas outro cachorro irrompera do centro da enorme praça, viera em linha reta, cabeça baixa e cauda erguida, para junto daquele e, após as rápidas saudações peculiares, foram-se ambos, General Gurjão a baixo. Libérrimos animais!

Silvério, meio voltado para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distraidamente; até desaparecerem na silente escuridão da rua. Estava sentado num banco, havia muitas horas, defronte da curva dos bondes. O olhar avistara um cartaz colado à parede da Casa Adolpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento de Montmartre, puxava um carro-anúncio, formoso preconício (propaganda) do estabelecimento. Pareceu-lhe que a sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garridos. Ele também andava atrelado ao carro da vida, fustigado e zurzido pelo tufão dos dissabores domésticos. As tintas, porém, com que se devera pintar a sua existência tinham de ser amassadas na palheta das desditas, — toda a gama sombria das cores carregadas, desde o roxo dos goivos ao negro da infelicidade.

Desviou a vista do obsidiante cartaz, pois não fora para atiçar tristes lembranças que saíra de casa. Bem ao contrário, necessitava de distrair o espírito, refrescar o cérebro na suave tranquilidade da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservando-o na mão direita e estendeu os braços pelo espaldar do banco. A cabeça, de largas entradas, pendeu para trás: dir-se-ia um crucificado; e o olhar foi ao alto, cravou-se na insondável amplidão do espaço, ao fundo da qual fosforesciam estrelas, aos milhares. Afundou-se então na tremenda reviviscência dos seus infortúnios.

— Lá vai ela outra vez. - bradou alguém, à direita.

Silvério, com um estremecimento, voltou à vida exterior, buscando descobrir quem falava. Era o cocheiro, — o Cadete ou o Bruzegas, — à porta do Club, encarapitado na boleia, a denunciar em solilóquio cada intermissão na luz do foco elétrico mais próximo.

— Feliz mortal - murmurou Silvério, invejoso da despreocupação daquele homem.

O Riche, a cuja porta cabeceava o proprietário, estava sempre iluminado, e o servente, fatigado ao fim de ordenar mesas e cadeiras que ninguém desarrumava, ia toscanejando (cabeceando com sono), mesmo de pé, escorado à cerca de uma das mangueiras. Cessara todo o movimento de transeuntes. Os demais cafés da avenida haviam fechado. Pelas janelas abertas do Universal, desciam ondas da iluminação dos salões desertos. Nos dois passeios, varredores urbanos passavam sobre o cimento, em largos gestos, longas vassouras de sacaís (gravetos). E bem adiante de si, viu Silvério, ao meio do enorme quadrilongo, com o pedestal rodeado de fulgurantes globos elétricos, ereta no alto da desproporcionada coluna, a estátua da Liberdade, emergindo por sobre a folhagem da arborização.

— Liberdade! Não ser eu também livre! – murmurou suspirando. 

E, malgrado o seu empenho em distrair as ideias, voltou a concentrar-se nas magoadas recordações da própria desgraça. Casado há quatro anos, com uma compatriota, uma italiana, a quem aliás dera lugar em seu leito por um impulso de generosidade, ante a extrema pobreza dos pais dela, a breve prazo começou a verificar que disparidades capitais de gênios e educação os incompatibilizavam para a vida comum. A princípio, insignificantes arrufos chegaram a oferecer-lhe um sabor novo na existência: das pazes que se lhes seguiam vinha um renascimento de ternura, uma inefável delícia para a intimidade dos longos e mudos amplexos. Ilusórios aperitivos, tais amuos. Pouco e pouco avultaram, tomaram corpo, assumiram as proporções de graves pendências barulhentas. A mulher tinha a bossa da loquacidade desenvolvida; e, quando se enfurecia, eram intermináveis gritarias, que o desesperavam na razão direta do natural sossegado e taciturno do infeliz.

Agravou-se depois esta situação, já bem penosa, com a intromissão dos pais de Luíza. A sogra levou-lhe para o lar a contribuição de torturas inéditas. A cada gesto, a cada passo de Silvério, uma recriminação. Debalde buscava o pobre comprar a paz do lar a custa de pequenos presentes para seus três algozes: nada prestava, tudo de ínfima espécie. «Já viram homem com tal falta de gosto?» O Silvério experimentara ao princípio chamar à ordem a mulher, com o auxílio de raciocínios discretos, arriscados a medo, mansamente, meigamente. Entanto, por amor dos dois filhinhos que tinham surgido entre acessos de raiva e curtas calmarias, sacrificou todo o resquício de sua virilidade moral: recolheu-se ao impassível silêncio de quem aceita resignado a brutalidade do destino. Quando rebentavam-lhe no lar os grandes temporais, recolhia-se a um quarto, embrulhava-se na rede, tapava ambos os ouvidos. E mulher e sogra, espicaçadas pela inesperada evasiva, iam levar-lhe a saraivada das injúrias superagudas, esganiçadas em falsete, — enquanto o sogro, impando (ofegando) da farta bona-chira (farta mesa) de malandro obeso, fazia em voz cava os soturnos trovões das ameaças: «Hei de quebrar-te as pernas, cão!»

Todo o seu afeto reverteu para as duas crianças, um pequeno e uma rapariguinha adoráveis, que chegavam a ter graça, tal a sua candidez, mesmo repetindo em tímidos balbucios as caluniosas exclamações da velha: «Papai é mau! Papai é feio!»

Feio, sim, e não era por sua vontade que nascera com uma caraça espalmada, que o sol da América do Sul tostara duramente. Mau, porém, não; e em silêncio protestava contra o qualificativo. Dizia-lhe a consciência não ser merecida a apóstrofe; contudo, sem escorraçar os meninos com a mais leve sombra de censura, tomava-os ternamente pela cinta, sentava-os ao colo, um em cada joelho, acariciava-os de manso, amimava-os, cobrindo-os de beijos e de silenciosas lágrimas.

De tudo isto lembrava-se o desditoso Silvério, inerte no banco da avenida, as pernas entorpecidas pela demorada imobilidade. Ainda há pouco, ao anoitecer, houvera em casa uma terrível cena. Persuadira-se Luíza estar o marido auferindo grandes lucros numa indústria inaugurada meses antes, lucros que desviava às ocultas para a Europa. E deu para exigir-lhe «a sua parte no negócio». Sogro e sogra tinham acudido com argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E, desenvolvendo preceitos jurídicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material dos cônjuges recolhidos sob o mesmo teto não impedia a co-participação na pecúnia». Dispensou-se de se desculpar, o Silvério e, para não irem mais longe os brados, que estavam já a incomodar a vizinhança, tomou dissimuladamente o chapéu, fugiu precipitadamente rua adiante, até a avenida. Ali, ao menos, estava fora da confusão alçada. Safa!

A vista da estátua suscitara-lhe a nostalgia da liberdade. Relanceou um olhar pelo passado, desde a sua chegada a Belém e pasmou de ainda sentir dentro de si o que se chama um coração e uma alma, após sofrimentos tão longos e tamanhos. Onde teria ele o bom senso, já revelado desde a adolescência, quando cometeu a leviandade de casar com Luíza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza de ânimo, a sua correção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-no ao cepo abençoadas cadeias: os filhos, que eram os doces elos ligando o seu alvedrio (decisões) á desdita.

As crianças! Ele também fora pequenininho, descuidado e travesso infante, nas amplas veigas lombardas, rescendentes a rosmaninho. Criara-o a inesgotável ternura da velha mãe, e tinha sido ao som dos rudes ósculos bonachões do pai que ele, paparicado à porfia, encetara a soletração do singelo alfabeto das carícias familiares. Em casa, no antigo e pobre lar, tão arejado no verão e tão cheio de tépidos braseiros pelo inverno, quando o norte inclemente bramia ríspido nos olivais e carvalhais, só recebera edificantes exemplos de tolerância mútua entre esposos amantes, de respeito calmo, de intensíssima afeição. E na dupla contemplação do carinho de seus progenitores e da forte paixão com que o gado amava na pradaria, manhã cedo, ao abalar da arribana (choupana), iniciara Silvério, desde jovem, o seu grande sonho de um lar todo meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fora deveras fugaz. Em pesadelo tornara-se depressa, nestes ardentes países americanos, onde tudo parece crescer, desenvolver-se e passar vertiginosamente. Aqueles saudosos tempos estavam longe, formavam um grupo separado, distinto, na vasta coleção de suas recordações de outrora. Presentemente, nada restava da tranquilidade em que se formara a sua adolescência, na Europa, nem dos esperançosos, dulcíssimos sobressaltos que chegavam a tirar-lhe o sono, retendo-o até alta horas da noite no sombrio tombadilho do vapor, quando fizera a travessia do Atlântico. Tudo fugira, na definitiva liquidação da sua felicidade.

Esta dolorosa introversão foi interrompida por um relinchar de cavalo. Olhou Silvério à direita, como voltando de um sonho. Tinham-se afastado os varredores, andava ainda no ar, peneirada na luz dos focos elétricos, a poeira levantada pelas compridas vassouras. Sempre aberto, o Universal manchava de claro a ramaria das mangueiras com a projeção das salas iluminadas. Em frente à porta, o cocheiro falava manso aos animais impacientados. E o criado do Riche, desperto pelo relincho, obtivera do patrão a ventura de um gesto, ordem muda para fechar.

Entrou Silvério a acompanhar-lhe com a vista os movimentos, as idas e vindas, mesas levadas aos pares, cadeiras conduzidas a duas e duas em cada mão. Feliz homem, esse criado, pensava, se não tinha a inenarrável desdita de possuir um inferno em vez de lar. Ia dormir sossegado, tendo trabalhado materialmente, — reparadoramente. De repente, atravessou-se-lhe uma ideia no cérebro. Erguendo-se num esforço, bateu forte com os pés no lajedo, para os desentorpecer, e chamou o servente:

— Deixe essa mesa, – disse - traga um conhaque.

E sentou-se, com esta sentença espipada (saliente) de sua ironia dolorida:

— O álcool é a mortalha da dor.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Atualização do Português por J. Feldman

Exposição da AVIPAF: Vida uma passagem só de ida (Poesias) - 1 -


Realizada pela AVIPAF, Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia

Local: Feira do Poeta de Curitiba.

Duração: 23 de julho/23 à 25 de Setembro/23.

Curadoras: Isabel Furini e Elciana Goedert.

ANGELA DONDONI
AVIPAF | Cadeira 47
Patronesse | Júlia Lopes de Almeida

Você em mim

Suas mãos são
As minhas, eu sei
Brotar de novo
Em outro amanhecer
Nascer de novo
Em um novo ser
Toque de algodão
Estrela de felicidade
Perfume de açafrão
Fio de eternidade
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ANTERO JERÓNIMO
AVIPAF | Cadeira 55
Patrono | Eugénio de Andrade

Vida

Olho a vida
como uma eterna namorada
sempre presente
sempre apaixonada

sempre renovada de vestes
num perpétuo movimento
sem se escravizar às sombras
dança que seduz o pensamento

é tal o prazer do nosso espírito
que penetramos a vida sem lamento
descobrindo a sua natureza
um sonho a engravidar o tempo

fremente tinta de escrita
cópula intensa de sensações
quando a nudez da alma se agita
num libertador orgasmo de emoções.
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ATÍLIO ANDRADE
AVIPAF | Cadeira 45
Patrono | Mario de Andrade

A Viagem

O trem parou
De repente...

Abriram se as portas:

- A passagem!!!
- Para onde vamos?
- Não sabemos!

Fecham-se as portas...

A poeira dos anos começa a desbotar
as distâncias, na biblioteca da vida...
Iniciamos a longa viagem para voltar
E a passagem é só de ida....
O trem partiu...
E no sem-fim...
Sumiu.. Sumiu.
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CARLA RAMOS
AVIPAF | Cadeira 24
Patronesse | Nise da Silveira

Viva

Viva!
A Vida Viva!
Viva à Vida:
Viva!
A imensidão
Que nos absorve
Mergulha em nosso abissal
Transborda
Em vasta superfície
Nas nossas margens
De Contornos
Em seres: Humanos…
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CHRIS HERRMANN
AVIPAF | Cadeira 51
Patronesse | Hilda Hilst

Vida longa aos escritores!

a vida do escritor
é um mar de prosas

a vida do poeta
é um poema atrás do outro

a vida do jornalista
se reporta nas janelas

a vida do tradutor
é questão de interpretação

a vida do editor
é cheia de gráfica

a vida do livro
sempre vale a pena
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DANIEL MAURÍCIO
AVIPAF | Cadeira 17
Patrono | Paulo Leminski

Na palavra V(ida)
Tem uma ida
Mas com um V
Indicando dois caminhos
Como opção.
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DECIO ROMANO
AVIPAF | Cadeira 18
Patrono | García Lorca

Sonetilho

Na vida
Se sonha.
No sonho
Se vive.

Vive-se
O sonho.
Sonha-se
A vida.

E vive-se
Sonhando
Em vida.

E sonha-se
Vivendo
Em sonho.
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DEVORA DANTE
AVIPAF | Cadeira 42
Patrono | Mariano Salcedo Zaragoza

Sou

Sou
Me reconheço...
Em minha avó camponesa
Em minha mãe, dona de casa e leitora
Em minha sogra parteira, refinada e lutadora
Em mulheres mestras das letras, música
pintura e poesia
Que são mestras nas ruas, nas escolas
e também nas cozinhas
Sou mulher branca, negra
alma nobre, alma orgulhosa e corajosa
Mulher de altos voos
de algumas duras quedas
Sou mulher que cumpre promessas
e os sonhos realiza
Creio na magia das mãos
e no amor de um sorriso
Sou musa, deusa, ventre, sou
vida

Fonte:
Enviado por Isabel Furini

Mör Jokai (O Catavento infeliz)

Parece que a fortuna se diverte estendendo a mão favoravelmente a alguns indivíduos, enquanto que a outros só os engana e tortura a vida toda. Os seus caprichos fornecem-nos saliente exemplo dos dois modos de proceder. Relatamos os factos como os ouvimos, sem acrescentar uma palavra.

No final do ano de 1840, a guerra era o único assunto em voga. Especialmente em Peste, a palavra "paz" estava fora de moda. Os hotéis viviam plenos de hóspedes, que se encontravam em especial para discutirem o assunto predileto. Ouviam-se músicas marciais de manhã à noite; preparava-se a guerra europeia. 

Estavam sentadas diante de uma pequena mesa do Hotel Nagy Pipa duas personagens a quem se poderia aplicar o ditado alemão: “um cala e o outro o escuta”, porque uma dessas personagens parecia meditar atentamente a causa provável ou possível do silêncio do seu companheiro, deitando-lhe de vez em quando um olhar curioso como se quisesse sondar algum projeto secreto que ele tivesse forjado. 

Este sujeito observador era, nem mais nem menos, do que o compassivo Mestre Janos, cabo da polícia e vice-carcereiro da pobre cidade de Peste; e quando informamos aos nossos leitores de que ele ocupava este posto no tempo de Metternich, e que, apesar da queda deste ministro, ainda conservava o seu lugar, o que não costuma ser a sorte de um ministério caído, com certeza haverão de admitir que o favorecido pela fortuna era este Mestre Janos em pessoa. Da mesma maneira não se pode negar que o indivíduo à sua frente fosse perseguido pela deusa volúvel como era favorecido Mestre Janos, não só porque era alvo dos olhares desconfiados do honrado Mestre Janos, mas muito especialmente porque aprendiz de serralheiro de Viena não podia fazer pior coisa do que vir a Hungria, país onde este ofício é exercido a cada canto das vilas pelos ciganos wallachios. 

Mestre Janos não havia estudado Lavater, mas uma longa experiência levara-o a julgar, depois de um minucioso exame no rosto do homem, que estava ele ruminando algum plano contra-revolucionário. Como consequência disto, aproximou-se mais da cadeira, resolvido a quebrar aquele silêncio. 

- De onde vem o senhor, se me dá licença de perguntar? - indagou ele ao companheiro de mesa, com um olhar astuto. 

- Ah! de Viena - suspirou o outro, olhando o seu copo vazio. 

- E que notícias nos traz da cidade? 

- Hum... nada boas! 

- Nesse caso, quais as más notícias? 

- Receia-se muito que haja uma guerra. 

- Receia-se? Mas que audácia! Como se arriscam a temê-la? 

- Ah, meu senhor, eu também não a temo, desde que esteja a uma distância de trinta léguas; escutei numa adega, uma vez, bombardearem as ruas, e não achei isso nada agradável. 

Mestre Janos ficou mais desconfiado ainda. Resolveu fazê-lo com que bebesse um pouco mais. Seria provável que, assim, acabasse descobrindo algum tipo de conspiração perigosa. Quantos copos um serralheiro demandaria? À segunda caneca, a cabeça descaiu-lhe, e a língua movia-se com dificuldade. "Agora é a hora certa", pensou Mestre Janos, enchendo o copo de novo. 

- Viva a liberdade! - exclamou, esperando que o serralheiro lhe tocasse no copo, para completar a saudação. 

O austríaco não levou muito tempo para atender o convite, e repetiu o "Viva!", tanto quanto sua língua embriagada o permitiu. 

- Agora é a sua vez de levantar um brinde - disse o vice-carcereiro, olhando sua vítima com o canto do olho. 

- Bem, eu não estou acostumado a brindar, senhor: só a acompanhar o brinde dos outros... 

- Vamos lá, não seja egoísta e beba a saúde de quem considera o homem mais notável do mundo, ande. 

- Do mundo inteiro? - perguntou o serralheiro, pensando que o mundo era imenso e ele pouco conhecia dele. 

- Sim, do mundo inteiro, de todo o globo terrestre - continuou Mestre Janos, em tom de confidência. 

O serralheiro hesitou, esfregou o nariz e finalmente gritou: 

- Viva o Mestre Slimak! 

Com esta demonstração, o vice-carcereiro estremeceu. Com certeza este Mestre Slimak era algum chefe eleito, não havia dúvida! E sem aquela, agarrou o serralheiro pela gola do casaco e, conduziu-o até a casa da câmara, onde o arrastou para uma sala estreita e lúgubre, à presença de um sujeito gordo e de rosto rosado. 

- Este homem é um suspeito - exclamou ele. - Em primeiro lugar, teve o atrevimento de temer a guerra; em segundo, esteve sentado das sete às nove e meia, duas horas inteiras sem abrir a boca! E finalmente teve a petulância de brindar publicamente um tal Mestre Slimak, que muito provavelmente é um indivíduo tão suspeito como próprio. 

- Quem é Mestre Slimak? - perguntou, com ar severo, o homem gordo e corado. 

- Ninguém, senhor - respondeu o vienense, tremendo -, a não ser o meu primeiro patrão, um honrado serralheiro como eu a quem servi durante quatro anos e ainda estaria servindo se a mulher dele não tivesse me espancado. 

- Impossível! - replicou o sujeito gordo e corado. - Ninguém faz um brinde em público a um personagem como este! 

- Mas eu não conheço os costumes cá desta terra. 

- Se queria fazer um brinde, porque não brindou à liberdade constitucional, aos exércitos do Danúbio ou à liberdade de imprensa, ou algum brinde semelhante? 

- Mas, meu senhor. Em um mês aqui eu não poderia ter aprendido isso tudo. 

- Mas em três meses espero que possa aprendê-lo muito bem. Mestre Janos, prenda esse homem! O compassivo Mestre Janos agarrou o delinquente pela gola, e levou-o para o lugar reservado aos malfeitores dessa espécie, onde teria tempo para meditar sobre as razões que o tinham ali colocado. 

Os três meses passaram-se com muito vagar para o serralheiro. Eram meados de março. Mestre Janos colocou seu prisioneiro em liberdade. O honrado homem, para provar que tinha modificado seus sentimentos e assim enaltecer-se aos olhos de Mestre Janos, saudou-o com as seguintes palavras: 

- Viva a Liberdade e viva o Exército húngaro! 

Mestre Janos tremeu nas bases, encostou-se à parede, mudo e horrorizado e, ao retomar o equilíbrio, agarrou o serralheiro atônito que, quando deu por si, achava-se mais uma vez na sala estreita e lúgubre. Desta vez, porém, em lugar do homem gordo e corado, encontrava-se diante de um outro, escuro e magro, o qual, ao compreender a acusação contra o prisioneiro, sem permitir explicações, condenou-o a três meses de prisão, informando-se que dali em diante, se não pretendesse pior sorte, deveria de gritar: - Viva o Exército Imperial, viva a grande Constituição e a única e poderosa Áustria! 

E o serralheiro, tendo apenas dado três passos para fora de sua cela, voltou à prisão, refletindo sobre sua pouca sorte. 

Passaram-se mais três meses. Era junho. O compassivo Mestre Janos não deixou de libertar seu prisioneiro. O pobre homem começou logo, ainda na porta da cela, a pronunciar as palavras redentoras: 

- Viva o Príncipe Winischgrätz! Viva a gloriosa Áustria! 

Mestre Janos levou a mão à espada, como se quisesse defender-se daquele homem incorrigível. 

- Como é? Pois não lhe bastaram duas prisões? Ainda não aprendeu o que deve dizer? Tenha a bondade de vir até aqui. 

E pela terceira vez entrava na pequena sala. Em lugar do sujeito escuro e magro estava o outro, gordo e corado, em cuja presença a nossa vítima foi instado a responder pelo seu delito. 

- Traidor teimoso! - exclamou o homem. - Não compreende a gravidade de sua ofensa e que, sob a minha responsabilidade, em vez de tê-lo condenado a três meses de encarceramento eu o tivesse entregue a Justiça, você estaria a esta hora cortado em quatro pedaços, como bem o merecia? 

O pobre serralheiro teve de se consolar, em meio a seu terror, com a suavidade do seu castigo. 

- Mas o que é que eu deveria ter dito? - perguntou ao seu indulgente juiz, em tom de desespero. 

- Como? O que deveria ter dito? Viva a República! Viva a Democracia! Viva a Revolução! 

O pobre homem repetiu as três saudações e, prometendo fielmente atendê-los, resignou-se pacientemente a mais uma pequena jornada em sua escura toca. 

Durante os três seguintes meses, tudo mudara, menos a boa sorte do Mestre Janos. Nem o tempo nem o acaso tinham conseguido despojá-lo do seu lugar, como acontecera a tantos outros. Ele era ainda vice-carcereiro da nobre cidade de Peste, como sempre o fora. Era o mês de setembro. A pena do serralheiro terminara; Mestre Janos chamou por ele. O rosto do prisioneiro traduziu que havia alguma coisa de importante; e logo que o dito carcereiro se aproximou dele, segurando-lhe a mão, exclamou entre soluços: 

- Ó Mestre Janos, diga àquela pessoa que lhe beijo humildemente a mão e que desejo do mais fundo da minha alma as prosperidades da República. 

Como o lobo faminto cai sobre o cordeiro, Mestre Janos mais uma vez agarrou o serralheiro pela sua mal cuidada gola. De fato, o digno carcereiro estava tão ofendido que, tendo conduzido o prisioneiro à sala estreita, levou algum tempo até voltar a si, o suficiente para explicar os acontecimentos ao sujeito negro e magro que mais uma vez ocupava o lugar do outro, grande e corado; e grande foi seu desgosto quando aquele cavalheiro, em vez de condenar o delinquente a ser esmagado na roda, apenas lhe deu mais três meses de detenção. 

No dia três de novembro todas as pessoas detidas por pequenos delitos políticos foram postas em liberdade; o serralheiro, entre elas. Quando Mestre Janos abriu a porta, o infeliz serralheiro tapou a boca com o lenço, dando a entender ao carcereiro que dali em diante guardaria suas íntimas saudações apenas para si mesmo. Poderia ter-lhe servido de consolo o fato de se saber que não fora ele o único a gritar "Viva!" na hora errada.

Fonte:
Mör Jokai. Publicado originalmente em 1854, 
em Hungarian Sketches in Peace and War

terça-feira, 25 de julho de 2023

Varal de Trovas n. 585

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 88

Daquelas manhãs rabugentas de agosto - - umidade, frio e a costumeira neblina no vale do Iguaçu. O professor Werno, o "Wernão", entra na sala de aula com a caixinha de giz e livros de chamada embaixo do braço. Nas quartas-feiras são três aulas com ele - Português, Latim e OSPB. Após o "bom dia" a ordem, "abram-se as janelas para que saiam os ares infectos". 

Com aquele frio! 

Quase uma centena de alunos moravam no internato mais conhecido nas barrancas do Iguaçu e cidades lindeiras, de onde vinham para estudar. 

Tempos gloriosos quando a garotada vivia em ebulição, ativa, esperta, a receber conhecimentos. Internatos são educandários referência em termos de educação, respeito, lazer sadio. E lembrar os "quebras" (futebol) lá no bosco dos eucaliptos, o basquete na cancha, o pingue-pongue na sala de jogos. 

Dias e dias, meses e meses, o ano escolar. O internato esplende vida. Passado já das dez da noite alguns ouvem futebol no rádio quando, de repente, estoura uma guerra de travesseiros no dormitório dos menores. 

Tiroteio de travesseiros. Logo o frei Francisco (botafoguense doente) toma as atitudes. Arranca o cíngulo, cordão usado na barriga pelos franciscanos, e distribui laçaços nos mais bagunceiros. Logo o silêncio. A gurizada dorme o sono necessário. Aulas logo cedo. 

Fonte:
Enviado pelo autor.

Graciliano Ramos (Uma canoa furada)

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. 

— Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

— Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança (lorota) de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção (intento) de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens.

“Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome.

“Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. 

"A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. 

“Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco  minutos deixa lá o esqueleto. 

“Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado (entupido), soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. — “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada: — “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” 

“Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos (preveníamos), o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia (barulhada), numa choradeira dos pecados. — “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.” — “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado. — “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” 

“A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo. — “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços (bofetões), que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: — “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça."

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 16 -


ARTILHEIROS DA CULTURA

A cada vez que comprimimos o gatilho
da emoção, a nossa arte se projeta,
não temos alvo, pois na mira de um poeta
Está o amor que a emoção chama de filho.

As nossas fardas se confundem, os paisanos
e os militares se diluem na vontade
de abençoar a sua sensibilidade,
com os mesmos sonhos de aprendizes e decanos.

O Forte é sempre um coração dentro da história,
a inspiração é uma sutil onda de mar
que acaricia a solidão de cada olhar,
criando imagens que borbulham na memória...

Nossos canhões não silenciam... o festim
dos seus disparos sobre nossa antologia
são ecos soltos que declamam poesia,
de todo amor que vive em ti e existe em mim.

Nossas palavras são registros de ternura,
somos iguais com rara sensibilidade,
e por criarmos a poesia em liberdade
é que nos chamam de Artilheiros da Cultura.
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CINEMA MUDO

Meu coração está no porto, a despedida
É iminente... o adeus não marca hora,
E eu só sei que, se a tristeza for embora,
A minha dor esquecerá cada partida.

Minha razão nem sempre aponta uma saída,
Mesmo escondida, eu percebo que ela chora...
E quando minha solidão a apavora,
Ela dilui-se em minha dor mais... dolorida.

Um pleonasmo é necessário, quando a falta
De uma palavra não conserta uma ferida,
Por isso, a dor mais insistente e atrevida
Apaga as luzes que enfeitam a ribalta.

Sou o Carlitos de um velho cinema mudo,
Fazendo mímica de cada sentimento,
E quando o pano cai no último momento,
É que um piano silencia... ao fim de tudo.
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NO INSTANTE EM QUE TU VENS ME VISITAR

Multiplico tua face se te penso...
São milhares de olhares me percorrendo,
Fico louco, entorpecido, quente...tenso
Mas me lembro que sequer tu estás me vendo.

Tua imagem poliforma-se em meus sonhos
Atraente, envolvente, glamorosa...
Dissolvendo-se em meus olhos tão... tristonhos...
Tua imagem excitante e... vã... teimosa.

Eu procuro evitar teus olhos, tento
Dissolvê-los em mudanças de atitudes,
Mas teu corpo não me sai do pensamento,
Como eu tento... tu me tentas e...me iludes!

Sem poder raciocinar... inebriado
Com teus olhos percorrendo o meu olhar,
Fecho os olhos e te beijo...extasiado
Mas... coitado...eu nem posso te tocar.

A paixão é uma espécie de licor
Que embriaga a razão com a fantasia,
Mas depois que essa razão torna-se dor,
O amor é essa dor que se extasia...

Minha lágrima embaça a imagem
Sensual que o meu olhar pensa que vê,
Minha angústia só disfarça a maquiagem
E a razão nem sabe mais no que ela crê...

Um sorriso melancólico se instala
Nos meus lábios, parecendo aceitar
Uma eterna solidão que a dor embala
No instante em que tu vens... me visitar.
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POR QUE POR QUÊ?

Por que é que tudo tem que ter sempre um porquê?
... o amor, amada, não precisa de respostas
e o desamor e a solidão nos dão as costas,
...se eu expresso o amor que sinto por você.

Bom é amar, sem ter que dar explicações...
as emoções libertam todo o nosso encanto
e a cada pranto, sempre há novas sensações
de ouvir a voz dos mais sublimes acalantos.

O nosso amor, tão preocupado com sonhar
nunca dá tempo à indagação inconveniente...
... porque o amor mais sedutor que a gente sente,
responde sempre com o brilho do nosso olhar

Portanto, amada... se alguém lhe perguntar
- com esse "porquê" que interroga e não responde,
diga: - Não sei, o nosso amor só vai aonde
a emoção faz a razão brincar... de amar.
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SINTAXE

Precisava impressioná-la.
Estudou,
com afinco,
as colocações pronominais.

Optou pela mesóclise:

Amar-te-ei
- quase declamou -
emocionado.

- Não enche! - Ela gritou.
Empurrou-o irritada
e foi embora.

Se iniciasse a frase
- coloquialmente -
com um pronome oblíquo,
contrariando
propositalmente
a gramática,
a discordância - apenas sintática -
seria perfeita

... e não mataria
a concordância...
... amorosa.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Contos e Lendas da África (O que os matou?)

(por Robert Hamill Nassau)

Personagens
Mbwa (cachorro)
Kudu (jabuti)
Mbala (esquilo)

PREFÁCIO
O cachorro e o esquilo tinham a mesma idade e ambos tiveram o mesmo fim. A obsessão de cada um foi a causa de sua morte.
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O cachorro Mbwa, o esquilo Mbala, o jabuti Kudu e outros animais viviam todos em uma mesma aldeia. Na época, todos se alimentavam com o mesmo tipo de comida. De repente, a paz que reinava no local acabou, então Mbala e Mbwa propuseram a Kudu:

— Vamos nos separar e viver em paz cada um em sua própria aldeia. Se você quiser, Kudu, pode continuar morando aqui com os outros.

O esquilo anunciou que se mudaria para um lugar a cerca de cinco quilômetros ao norte. O cachorro escolheu um local cinco quilômetros na direção oposta. Assim, todos se instalaram em seus pequenos povoados. 

Certo dia Mbala avisou sua esposa:

— Vou visitar meu amigo Mbwa.

E viajou, acompanhado de uma de suas esposas, até chegar à casa do cachorro. Lá, foram recebidos e entretidos por Mbwa, que matou uma ave para o jantar.

Mbwa e Mbala ficaram conversando na sala de estar enquanto as mulheres cozinhavam. Passado algum tempo, o cachorro pediu licença para ver como estava o preparo do jantar. Deixou o esquilo sozinho e foi para os fundos da casa, onde deitou-se em frente à lareira.

Lá ficou até que o jantar ficasse pronto. Então voltou para onde estava seu amigo e arrumou a mesa. Em seguida as mulheres chegaram com os pratos e sentaram-se todos para a refeição.

Durante o jantar, Mbala perguntou:

— Meu amigo! Aonde você foi enquanto as mulheres cozinhavam? Fiquei sozinho na sala.

— Ah, você sabe o quanto eu gosto de fogo. Quando estávamos conversando, o frio me incomodou.

— Você gosta de fogo até demais. Um dia ele será sua morte.

Após a refeição, o esquilo preparou-se para voltar à sua aldeia.

— Meu amigo Mbwa, devo esperar sua visita para daqui a quantos dias? — perguntou ao cachorro.

— Irei em dois dias. — respondeu Mbwa.

Ao chegar em casa, as esposas e filhos de Mbala lhe contaram o que havia se passado em sua ausência. Por sua vez, o esquilo contou o que havia visto na casa do cachorro.

— E notei uma coisa. Meu amigo Mbwa é obcecado por fogo. — acrescentou.

Dali a dois dias, Mbwa foi visitá-lo. Mbala matou uma ave e pediu para sua esposa prepará-la para o jantar. Enquanto esperavam, os dois amigos sentaram-se na sala de estar para conversar.

— Com licença, já volto. — disse o esquilo.

Então saiu para o quintal e subiu em uma bananeira para comer as bananas que já estavam maduras. Depois de algum tempo, desceu e voltou à casa para arrumar a mesa. Em seguida sentaram-se todos para a refeição, o esquilo, o cachorro e suas respectivas esposas.

— Meu amigo, aonde foi quando me deixou sozinho? — indagou Mbwa.

— Você sabe o quanto eu gosto de bananas, meu caro. Por isso, subi na bananeira para comer algumas.

— Você gosta de bananas até demais. Um dia morrerá por causa delas.

Terminado o jantar, Mbwa anunciou:

— Agora voltarei à minha aldeia. — e assim fez.

Apenas dois dias após seu retorno, o cachorro acidentalmente caiu na lareira e morreu queimado. Ao saber sobre sua morte, o esquilo comentou:

— Eu avisei. Ele gostava demais de fogo.

Certo dia, na Cidade dos Homens, um dos habitantes notou que todos os cachos de sua bananeira haviam sido comidos por algum animal. Então colocou uma armadilha na árvore.

No dia seguinte, Mbala pensou: “Estou com tanta vontade de comer bananas que vou subir na primeira bananeira que encontrar.”

Chegou até a Cidade dos Homens e, ao subir na bananeira, foi capturado e morto pela armadilha. O Homem o encontrou e ficou satisfeito por ter apanhado o ladrão de frutas.

As notícias da morte do esquilo chegaram até sua aldeia natal. Seus filhos, ao saberem que havia sido morto comendo bananas, disseram:

— Pois é, nosso pai gostava muito de bananas. Sempre dizia que Mbwa morreria queimado, de tanto que gostava de fogo. Ele, no entanto, amava bananas.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.