sábado, 10 de dezembro de 2016

Clarice Lispector (Um encontro perfeito)

Quando Maria Bonomi esteve no Rio, almoçamos juntas num restaurante, e com um vinho tinto bem encorpado que me fez dormir horas de sono pesado, sem pesadelo. Enquanto eu dormia, ela tomava o avião para São Paulo, onde mora com Antunes, seu marido, um dos melhores diretores teatrais que temos, e Cássio, me afilhado. Cássio andou um tempo reclamando de mim: todos tinham madrinha à mão e ele era obrigado a se relacionar comigo através de retratos em jornais de São Paulo. Soube que já teve duas namoradas e que rompeu com a segunda porque esta bateu nele. Isso não: homem é quem bate em mulher. Resolvi, a conselho de uma amiga, dar-lhe de presente uma metralhadora, das que chispam fogo, e fazem muito barulho: para que ele liberte sua agressividade masculina, tão ofendida pela namorada E um dia desses irei a São Paulo, especialmente para me dar a meu afilhado. Não quero conversar com ninguém, só com ele. Bem, também porque receio que Antunes procure convencer-me a escrever para teatro, para ele dirigir, assim como no Rio, Martim Gonçalves faz. O mais impossível ainda é escrever roteiro para filme, como Khouri queria, como Maurício Ritner queria. Um dos argumentos é que o que escrevo é muito visual. Mas se é, é de de um modo inconsciente. Do momento em que eu conscientemente tivesse que ter como meta a visão, atrapalhar-me-ia toda.

Mas voltemos a Maria Bonomi Antunes, minha comadre e amiga. Conheci-a em Washington ou Nova Iorque? Era a mesma de hoje: mais do que bonita, com um ar livre, olhos risonhos que se tornam logo mais graves quando se fala em sua arte. Maria é um misto de lucidez e instinto, o que a torna um ser completo. Meu encontro com ela foi tão encontro mesmo que, na hora da despedida, Maria disse “até amanhã”. Eu me renovei em Maria, espero que ela se tenha renovado um pouco em mim, embora não precise.

De início pusemo-nos a par de nossas vidas cotidianas. Depois perguntei pelo seu trabalho. Mal dá conta de tanto trabalhar e vender, e o sucesso a está atrapalhando. Até secretário foi obrigada a ter. Entendi. O meu pequeno sucesso exterior às vezes me faz perder a intimidade com a máquina. Não tenho secretário porque meus negócios são pequenos: resumem-se em telefonar para editores, quando é o caso, e em adiar indefinidamente respostas a cartas de editores estrangeiros. Discutimos o sucesso. Maria acha que, em se chegando a esse impasse, a única solução é profissionalizar-se. Sempre fui uma amadora, amadora compulsiva, é verdade, mas amadora. E tenho receio de uma profissionalização. A Maria esta não perturbou: está em plena fase de pesquisa.

Quanto ao meu trabalho, pensa que meu último livro é prematuro no sentido de adiantado, inclusive em relação a mim mesma; que eu o escrevi cedo demais, tentando finalmente dar a volta completa do círculo. 

Falamos também no nosso mútuo astigmatismo, que nos obriga a ler com óculos, ao passo que cada vez vemos melhor o que está longe. O que não deixa também de ser simbólico. Estou pensando agora em me profissionalizar. Não é mau. Chegou a hora séria de pôr os pontos nos is: será um modo de me assumir, e com dificuldade.

Desconfio que Maria perdeu o avião, de tanta conversa que tivemos: deveria estar no aeroporto às três horas da tarde, e foi às três que me deixou à porta de casa. Antunes  ia ficar furioso: esperava-a com a urgência da saudade. E mais: Antônio Cal ado estava hospedado em casa deles, e Antunes queria que Maria voltasse para ser dona-de-casa e recebê-lo. Falamos então no problema de ser dona-de-casa, exatamente no momento em que se está em pesquisa em matéria de arte. Como conciliar? Mas mulher termina conciliando, é o jeito.

Falamos de como é importante comer e dormir. Talvez por isso eu tenha dormido tanto depois. O que atrapalhou o meu telefonema para Otto Lara Resende: era sábado, eu telefonava e ele estava dormindo, ele me telefonava de volta e era eu quem estava dormindo. A pergunta que eu precisava fazer terminei fazendo-a a Helena, mulher de Otto. Só o consegui ao telefone às dez e meia da noite, e ainda por cima atrapalhando sua visita à casa de Hélio Pelegrino.

Queixamo-nos com o maior prazer de nosso sono. Mas às dez e meia da noite eu estava bem acordada: acabava de ter visto o filme de Khouri, Corpo ardente. Iria de qualquer modo porque se tratava de filme dele. Mas dessa vez acrescentava-se mais um motivo: Marly de Oliveira, minha afilhada de casamento, e Maria Bonomi haviam-me dito que Barbara Lange, a atriz do filme, parecia-se extraordinariamente comigo. Maria acrescentou: com você, mas parada, não móvel. A moça é mesmo parecida comigo, em bonito, é claro. Uma amiga disse que a parte da boca e do queixo não se parece, que em mim é bem mais suave. Deu-me um pouco de aflição ver-me na tela. Mas cobicei as roupas da atriz como se a isso eu tivesse direito, já que nos parecíamos.

Gostei mesmo foi do cavalo preto do filme. Tem uns movimentos de libertação do longo
pescoço e da cabeça manchada de branco que são uma beleza. O fato é que me identifiquei mais como o cavalo preto do que com Barbara Lange. Inclusive eu costumava ter um jeito de sacudir os cabelos para trás que significava exatamente isso: uma tentativa de libertação. Hoje felizmente não preciso mais do gesto. Não, às vezes preciso. Mas eu estava falando do bom encontro com Maria. Até comer bem comemos, embora sem prestar muita atenção: nosso encontro nos absorvia. 

Maria, você afinal perdeu ou não o avião das três e meia? E deu meu recado a Antônio Calado? Se ele não souber que foi de brincadeira, vai ficar zangado comigo. Bom, Maria, até breve. Irei a São Paulo ver Cássio. E, se puder, mando antes a metralhadora que lhe servirá de justa vingança.

Fonte
Clarice Lispector A Descoberta do Mundo

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Olivaldo Júnior (Natação)

Foi em junho de 2012 que, com toda a coragem do mundo, procurei uma academia de natação de minha cidade, para aprender a nadar. Como sou do signo de Peixes, já devia ter meio caminho andado em direção às profundezas de uma piscina, que, assim como lagos e rios, tem sempre um lado onde dá pé. Péssima ideia. Não a de procurar uma academia a fim de nadar, mas a de pensar que eu ficaria sossegado, só no lado onde meus pés pisavam firme. Alguém já disse que nadar é o mais próximo que o homem pode chegar da sensação de voar. Talvez seja verdade. Eu, quando nadava, me sentia leve, muito leve. A cor da piscina, quase sempre azul, já me encanta. Se eu pudesse, teria nascido peixe. Seria o Nemo! 

Para o bem da verdade, aquela não foi a primeira vez que me aventurei no mundo das águas. Já tinha me inscrito meses antes em outra academia, mas a professora logo saiu e desanimei de continuar. 

O professor que tive naquela nova academia era muito atencioso comigo. Chamava-se Renan. Fazia exercícios de dessensibilização na água, pedindo que, com os óculos próprios, ficasse de olhos abertos enquanto ele me afundava, para que eu perdesse o medo de submergir. Outro dia, vi muitos bebês submersos num vídeo que achei no Youtube, mostrando o exemplo de uma aula de natação para recém-nascidos. Legal é ver como eles já têm naturalmente o instinto para se sair bem na piscina, os danados! 

Não, ainda não foi daquela vez que aprendi a nadar. Ainda vai demorar um pouco para eu honrar o símbolo cristão por excelência e me tornar um peixe. Eu, que nunca vi o mar ao vivo, espero um dia poder nadar um pouquinho em suas ondas verdes, tão doces quanto as canções de Caymmi, praieiras e sãs. Sumir, como o Príncipe Escamado, com Narizinho mar abaixo e, no Reino das Águas Claras, encontrar Ariel, a Pequena Sereia, e contar para ela como é o mundo da terra, onde tantos nadam, nadam, nadam e morrem na praia. 

Gosto de assistir às competições de natação na tevê, quando fico torcendo para que, algum dia, eu consiga nadar um por cento do que eles nadam. 

No mar de uma piscina, numa academia da cidade em que moro, quero ainda sentir o céu líquido em contato com as invisíveis asas de quem cai na água e não se afoga, rio acima, peixe vivo, avante.

Fonte:
O Autor

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Sophia Irene Canalles (Ramalhete de Trovas)




1
Ah, se eu pudesse voltar
aos tempos de antigamente!
Não teria, em meu olhar,
esta angústia tão presente!
2
Ama com amor profundo,
reúne o sonho disperso,
e verás que neste mundo,
és grande como o universo!
3
Às vezes, um passarinho,
numa cantiga, nos prova,
que o mundo é só de carinho
e nossa alma se renova!
4
Do meu passado risonho,
Hoje, só resta a saudade...
parece que foi um sonho
que tive na mocidade!
5
É no palco que o ator,
mostrando sabedoria,
às vezes, esconde a dor
e a todos mostra alegria!
6
Era um carinho profundo
que tu sentias por mim...
Quem dera que todo o mundo
pudesse viver assim!
7
Esta saudade dorida,
que sinto dentro do peito,
faz parte da minha vida...
Quero esquecer...não tem jeito!
8
Eu gosto da madrugada
     com seu encanto e magia,
     do canto da passarada,
     anunciando um novo dia!
9
Eu saí devagarzinho,
     me embrenhei naquela mata,
     para ouvir , em meu caminho,
     o murmúrio da cascata!
10
Fiz um castelo de areia
naquela duna branquinha,
veio o vento e a maré cheia,
levaram tudo que eu tinha!
11
Nada mais me prende ao mundo,
depois que, daqui, partiste,
meu pesar é tão profundo
que, pra mim, mais nada existe!
12
Não sei escrever bonito,
     pois me falta inspiração,
     mas o que, aqui, está escrito
     eu sinto em meu coração.
13
Nessa vida atribulada,
quem não sofreu por amor,
dizendo não sentir nada,
como se fosse um ator?
14
Nesta vida em que me empenho,
cheia de desilusão,
parece que já não tenho
nem alma, nem coração!
15
No grande palco da vida
     os artistas, somos nós,
que depois, de tanta lida,
sempre ficamos a sós!
16
O sorriso da criança,
como o perfume da flor,
nos enchendo de esperança,
dá-nos paz, ternura e amor!
17
Pensar que no meu passado
     tudo era alegre e risonho...
     Hoje, só tenho ao meu lado,
     os fragmentos desse sonho!
18
Quero fazer um pedido:
– Quando chegar o meu fim,
quando eu já tiver partido,
leiam trovas para mim!
19
Se alguém ler estes meus versos,
me desculpe por favor,
são sonhos, ora dispersos,
de quem perdeu seu amor!
20
Se quiseres ser perdoada,
     perdoa teu inimigo,
     e no fim de tua estrada
     estarás feliz contigo.
21
Ser bonita se contesta.
Não é tudo o que se quer.
Tem que ser bastante honesta
para ser uma mulher!
22
Sereno da madrugada,
na folha do jasmineiro,
é como gota pingada
dos olhos do seresteiro!
23
Toda trova é um lenitivo.
que alivia a nossa dor,
por isso, é que sempre vivo
compondo  trovas de amor!
24
Todo aquele que sorrindo,
disfarça a mágoa que tem,
torna seu viver mais lindo
e não aflige ninguém! 

Conto Africano (Os Pequenos Acrobatas do Rio)

Na aldeia de Sakata, os meninos brincam à volta da árvore. Mas isso não os impede de estarem atentos a qualquer pequeno ruído que venha do Congo, o grande rio que corre perto dali. Estão à espera de que o barco passe.

— Ei! Olha o barco! Já lá vem o barco-correio!

Para Kembo é um dia importante. Quando o barco que transporta tantas mercadorias maravilhosas abrandar a velocidade, ele vai aproximar-se e pôr as mãos no casco. Até há de subir a bordo. A manobra é arriscada, mas Kembo está decidido.

— Mido, Eloni, vamos! Temos de ser os primeiros a acostar!

Enquanto Mido e Eloni pegam nos remos do pangaio, Kembo grita:

— Cuidado! A piroga vai meter água! Vejam que tem um buraco à frente!

Kembo tapa o buraco com um pouco de barro.

— Agora podemos ir. A minha mãe quer que lhe traga sabão e uma camiseta.

As folhas dos nenúfares agitam-se à passagem deles. Escondido debaixo da umbela de um cogumelo, um sapo está quase a apanhar um inseto. Que sossego! Mas, de repente, o sapo esconde-se, e os pássaros levantam voo com grande alarido. O que terá causado toda aquela agitação, pregando um susto de morte às crianças? A serpente negra que assombra o rio. Ela acaba de escapulir-se por entre as ervas altas. Kembo começa então a entoar a canção de Sakata, a Nossa Aldeia, uma canção que dá coragem.

No rio agitado, eh! eh!
É preciso remar com força eh!
No rio agitado
É preciso remar com força.

Ao longe, outras crianças pescadoras retomam o refrão. Kembo e os amigos voltam a subir a corrente com mais vigor. Em breve, a piroga sai das águas calmas da floresta e entra nas do rio. No sítio em que os dois braços de água se encontram, as ondas fervilham, formam um turbilhão. Mido e Eloni gritam:

— Temos medo! Kembo, voltemos para trás!

— Nem pensar — diz Kembo. — Não vamos desistir!

Um vento forte arrasta a piroga. O pânico apodera-se dos amigos de Kembo. Mas Kembo sabe desviar-se dos perigos, ultrapassar as armadilhas da água, e diz:

— Quietos! Nada de fazer força. Temos de nos deixar levar pela corrente.

A piroga é sacudida por todos os lados. E depois, de repente, ei-la que sai do turbilhão.

Kembo e os amigos esperam com impaciência a aproximação do barco, que abranda mas não para.

Os passageiros olham para as crianças, admirados. Alguns gritam:

— Afastai-vos! Os redemoinhos são perigosos

À primeira onda, a piroga sobe até à crista. Os passageiros do barco ficam embasbacados perante a destreza de Kembo e dos amigos, que, certos do sucesso da sua proeza, cantam com toda a força.

Da margem, os pais seguem o espetáculo.

— Oh! Que habilidade! Que acrobatas corajosos! Será que vão conseguir encostar o barco? Eu nem me atrevo a olhar!

Alguns pais gritam, manifestando o seu medo.

— Os nossos filhos trazem os amuletos, consigo ver daqui as fitas vermelhas!

Os rapazes não conseguiram a acostagem. O choque contra o flanco do barco foi duro e a emoção forte quando as crianças ouviram rebentar o pedaço de barro que tapava o buraco da piroga. Mas Kembo e os amigos mantiveram o sangue-frio.

— Depressa, a outra piroga — grita Kembo.

A outra piroga pertence, seguramente, a um pescador que já entrou no barco-correio.

Kembo salta para dentro, pega numa amarra e atira-a para as mãos que se agitam acima dele. De repente, a corda estica.

— Consegui! – grita Kembo, que já está a bordo.

Mas Eloni e Mido têm menos sorte, a piroga volta-se e ei-los na água. Falharam.

A bordo do barco-correio era um autêntico mercado. Vendia-se lá de tudo. Vê-se uma coisa amarela e preta a brilhar na penumbra. Será um brinquedo? Kembo aproxima-se. O produto à venda é uma jibóia.

— Nioka! Nioka! (Serpente!Serpente!) — grita Kembo, cheio de medo. E foge a correr.

Cheira muito bem debaixo da claraboia de madeira. Os passageiros saboreiam mandioca que as mulheres acabam de fritar em óleo de palma.

Fazem-se trocas e conversa-se.

Os habitantes ribeirinhos acabam de acostar, trazem peixe e banana para fritar. Mas Kembo não pode atrasar-se, tem compras a fazer.

Kembo escapa por entre as mercadorias. Chega diante da exposição de conservas, de vestidos e de tangas, onde, finalmente encontra o que procurava. Enquanto espera que o sabão e a camiseta sejam embrulhados, Kembo vê, ao fundo do barco, um carro carregado de caixotes.

- São medicamentos para um hospital da Cruz-Vermelha, explica o comerciante.

— Pega! Aqui estão as compras para a tua mãe!

A sirene apitou. Rápido, rápido! Temos de sair depressa, que o barco vai ganhar velocidade! Kembo esconde o embrulhinho com segurança dentro do calção e, splash!, mergulha. Nada como um peixe até chegar junto de Eloni e Mido, que estão na água.

O barco afasta-se. Balançados pelo turbilhão dos redemoinhos, as crianças disputam entre si a agilidade para saltarem para a piroga virada. Mido e Eloni estão desiludidos. Mas não passa de uma oportunidade perdida. Da próxima vez que o barco-mercado passar, subirão a bordo com o Kembo. Dessa vez, é certo que vão conseguir.

Fonte:
Dominique Mwankumi. Les petits acrobates du fleuve. Paris, l’école des loisirs, 2000. Disponível em Contos de Encantar 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

José A. Jacob (Poemas Escolhidos)


ALMAS PRIMAVERAIS

A tarde brinca em meu quintal sem cores
E sem saber da dor que existe em mim,
Pendura um sol no céu, colore flores
E o meu quintal então vira um jardim.

Tardes primaverais chegam assim...
Desvanecendo nossos dissabores
E nos dão esperanças e favores
A nos sorrir e a nos dizer que sim.

Como essas tardes claras de esplendor,
Que um dia esquecemo-nos de notar,
Existem almas que só dão amor.

São essas almas as criaturas boas
Que só vieram ao mundo para amar
A vida sem amor de outras pessoas.

A MÃE E A ROSEIRA

Essa roseira, sempre silenciosa,
Não teve em sua vida outros caminhos
E desde que perdeu a última rosa
Dobrou-se sob o peso dos espinhos.

E essa mãe, que ora passa esperançosa,
Amparando os seus filhos com carinhos,
Faz-me crer de uma forma tão piedosa
Que vi Nossa Senhora e os seus anjinhos.

A roseira, a chorar as suas dores,
Fica no meu canteiro, ao sol e à lua,
Descrente do milagre de outras flores.

E a mãe que passa em frente, continua...
Esquecida dos próprios dissabores
Vai beijando os seus filhos pela rua...

CASINHA DE BONECA

Um dia ela guardou os seus segredos,
Pois que sentiu que o amor ao longe vinha,
Trancou no quarto todos seus brinquedos
E o sonho da boneca e da casinha.

E foi buscar aquilo que não tinha
No alegre faz de conta dos seus dedos,
Contou tristezas e chorou sozinha,
Depois sorriu das mágoas e dos medos.

Passou o tempo e ela seguiu a sina,
E assim, com a decência que ilumina,
Também andou por aonde o mal caminha...

Quanta ternura tem essa velhinha,
Que fica no seu quarto de menina,
Brincando de boneca e de casinha!

CRENÇA

Quando firmava o azul e o sol abria
Ao dia a sua bem-aventurança,
O homem bom repartia à vizinhança
Toda espécie de estima que sentia.

E amanhecia cheio de esperança
De vir o dia, após um novo dia,
Para lhe dar apreço e cortesia
Conforme a sua ingênua confiança.

Depois curvava a fé que lhe convinha
À soleira da porta, e de tardinha
Fiava as horas, crédulo a sorrir.

E a noite o recolhia nesse afã
De estar sempre esperando esse Amanhã
E sempre esse Amanhã tardando a vir...

DESESPERANÇA

Eu conservo comigo, desde criança,
E trago no meu rosto sorridente,
A crença conformada da confiança
Que carrego na vida para frente.

Meu pai deu-me um sorriso por herança,
E eu fui, como o bom filho obediente,
Seguindo ruas, conhecendo gente,
Cheio de ingenuidade e de esperança!

Deixei abraços, saudações e avisos,
E em vez de deparar rostos serenos
Só encontrei olhares indecisos.

Não recebi de volta os meus sorrisos,
E nem os meus abraços: nem ao menos
Alguém retribuiu os meus acenos...

DESPERCEBIMENTO

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante;
E foi além da conta: andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

Esse homem, descontente e itinerante,
Não deu adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir;
E entrando em sua casa, ó Sorte inglória!

Nenhum sorriso amado viu sorrir:
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir...

HISTÓRIA SEM FINAL

Abro o caderno onde escrevi outrora
As minhas ilusões de amor e rima
E o que esses versos me dirão agora
Se já não tenho crença e nem estima?

Procuro uma palavra que me exprima
Um pensamento bom, que não se aflora,
E quando a luz da idéia se aproxima
A sombra da esperança vai embora.

Meus frágeis versos, vítimas de mim,
Leguei-lhes toda herança do meu mal
Em pobres frases vãs e inacabadas.

Serão eternos por não terem fim
E viverão nas páginas fechadas
Do meu livro de história sem final.

O VENDEDOR DE BONEQUINHOS

De manhãzinha à beira da calçada
Todo dia uma corda eu estendia
E pendurava nela uma braçada
De bonequinhos feios que eu vendia.

Eram polichinelos que eu fazia
De trança de algodão, à mão desfiada…
No pano das feições não conseguia
Puxar-lhes traços de melhor fachada.

Ao desbotar o azul no fim do dia,
Quando eu os desatava dos alinhos,
Desse varal de cordeação brilhante,

Esses desengonçados bonequinhos
Desciam-me nas mãos com alegria
E me davam abraços de barbante!

PORTA-RETRATOS

Vivemos em distâncias sem medida,
Depois do agora existe o além do após,
As horas estão sempre de partida
E nada volta inteiro para nós.

O Amanhã é uma crença indefinida,
(Não há ninguém que escute a mesma voz?)
O Tempo passa os dias com a Vida
A nos fazer de filhos, pais e avós...

Por isto flerto os seus olhos abstratos,
Que me espreitam da estampa do papel
Pelos vitrais do seu porta-retratos...

Preciso ir ao infinito lhe encontrar!
Vou entrar nestes olhos para o céu
E nunca mais voltar do seu olhar!

SONETO PARA O POETA TRISTE

Nessas horas de folga e de doçura,
Que passo o tempo a ler meu poeta triste,
Eu sinto o quanto a sua idéia apura
E o espírito de luz que nela existe.

O meu poeta que é doloroso insiste
Compor num poema de elegância pura
As dores que a minha alma não resiste
E eu sinto pena dele com ternura.

Fecho o livro e me ponho a caminhar
Pelo parque sem cor, e as horas morrem,
E outros soluços sobem-me no olhar.

E quando passo sobre o açude, as águas,
Que dos meus olhos lentamente escorrem
Entornam lá no lago as minhas mágoas.

VELHO ÓRFÃO

Desde cedo esperei o que não vinha
E a minha vida foi perdendo o prazo:
Fui vendo a minha sombra mais sozinha
E o meu destino cada vez mais raso.

Enquanto andei do quarto até a cozinha,
Pesou-me o passo e me causou atraso,
Desfolharam-se os dias na folhinha
E o tempo foi morrendo em meu ocaso.

Súbitos longos anos tão estreitos,
Sinto vê-los perdidos sem proveitos,
E sem proveitos não me presto mais...

Eu sou aquele velho desolado,
Que vive a andar atrás do seu passado,

Como a criança órfã que procura os pais.

José A. Jacob (1950)

José Antonio de Souza Jacob, filho do comerciante Antônio José Jacob e Heloisa Gonçalves de Souza Jacob, nasceu em Juiz de Fora (MG), em 11 de fevereiro de 1950, onde realizou seus primeiros estudos, ingressando no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais "Vianna Júnior”.
         No final dos anos 70 foi redator da Gazeta Comercial, tendo nessa época se aprofundado no estudo de Filosofia e Letras e logo em seguida foi admitido, por concurso, na área de Recursos Humanos da Companhia Telefônica de Minas Gerais, tendo se aposentado do serviço público em 2005.
         Desde as primeiras letras, o menino foi estimulado a ler poetas, levado pela mão de seu pai, que apreciava poesia, especialmente a dos brasileiros e dos portugueses. Entre as leituras de sua adolescência estão poesias de Raul de Leoni, Mário Quintana, Augusto dos Anjos, António Nobre, Cesário Verde, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira, Charles Baudelaire, entre outros.
         Da mãe Heloísa herdou a doçura das palavras e a maneira singela de contemplar a vida sem ser alienado. Seu estilo simples e requintado de escrever poesia conquistou grandes poetas e escritores, de sua cidade, de quem passou a desfrutar de convivência contínua, mesmo ainda muito jovem.
         Por sua perfeição na metrificação e na qualidade poética é considerado por muitos que conhecem sua obra como “um dos mais importantes sonetistas da língua portuguesa na atualidade”. Recusa-se a escolher seu verso do coração e a participar de escolas e grupos literários, preferindo o sossego da vida bucólica nos arredores de Juiz de Fora.
         No final de 2006 foi indicado pelo poeta, escritor, editor e crítico literário, de Portugal,. Eugénio de Sá, o mais importante poeta sonetista do Brasil de 2006, juntamente com o poeta português Eugénio de Andrade, o melhor poeta de Portugal do mesmo ano.    
         A 27 de abril de 2007 foi indicado pelo vereador Bruno Siqueira para receber a insigne Medalha do Mérito Legislativo, Mérito Excepcional em Poesia, e foi condecorado na Câmara Municipal de Juiz de Fora.
         A 06 de julho de 2007 foi sancionado pelo prefeito de Juiz de Fora o "Título Honorífico de Cidadão Benemérito de Juiz de Fora".
         Atualmente o poeta reside em  Muriaé/MG.