sábado, 10 de dezembro de 2016

Clarice Lispector (Um encontro perfeito)

Quando Maria Bonomi esteve no Rio, almoçamos juntas num restaurante, e com um vinho tinto bem encorpado que me fez dormir horas de sono pesado, sem pesadelo. Enquanto eu dormia, ela tomava o avião para São Paulo, onde mora com Antunes, seu marido, um dos melhores diretores teatrais que temos, e Cássio, me afilhado. Cássio andou um tempo reclamando de mim: todos tinham madrinha à mão e ele era obrigado a se relacionar comigo através de retratos em jornais de São Paulo. Soube que já teve duas namoradas e que rompeu com a segunda porque esta bateu nele. Isso não: homem é quem bate em mulher. Resolvi, a conselho de uma amiga, dar-lhe de presente uma metralhadora, das que chispam fogo, e fazem muito barulho: para que ele liberte sua agressividade masculina, tão ofendida pela namorada E um dia desses irei a São Paulo, especialmente para me dar a meu afilhado. Não quero conversar com ninguém, só com ele. Bem, também porque receio que Antunes procure convencer-me a escrever para teatro, para ele dirigir, assim como no Rio, Martim Gonçalves faz. O mais impossível ainda é escrever roteiro para filme, como Khouri queria, como Maurício Ritner queria. Um dos argumentos é que o que escrevo é muito visual. Mas se é, é de de um modo inconsciente. Do momento em que eu conscientemente tivesse que ter como meta a visão, atrapalhar-me-ia toda.

Mas voltemos a Maria Bonomi Antunes, minha comadre e amiga. Conheci-a em Washington ou Nova Iorque? Era a mesma de hoje: mais do que bonita, com um ar livre, olhos risonhos que se tornam logo mais graves quando se fala em sua arte. Maria é um misto de lucidez e instinto, o que a torna um ser completo. Meu encontro com ela foi tão encontro mesmo que, na hora da despedida, Maria disse “até amanhã”. Eu me renovei em Maria, espero que ela se tenha renovado um pouco em mim, embora não precise.

De início pusemo-nos a par de nossas vidas cotidianas. Depois perguntei pelo seu trabalho. Mal dá conta de tanto trabalhar e vender, e o sucesso a está atrapalhando. Até secretário foi obrigada a ter. Entendi. O meu pequeno sucesso exterior às vezes me faz perder a intimidade com a máquina. Não tenho secretário porque meus negócios são pequenos: resumem-se em telefonar para editores, quando é o caso, e em adiar indefinidamente respostas a cartas de editores estrangeiros. Discutimos o sucesso. Maria acha que, em se chegando a esse impasse, a única solução é profissionalizar-se. Sempre fui uma amadora, amadora compulsiva, é verdade, mas amadora. E tenho receio de uma profissionalização. A Maria esta não perturbou: está em plena fase de pesquisa.

Quanto ao meu trabalho, pensa que meu último livro é prematuro no sentido de adiantado, inclusive em relação a mim mesma; que eu o escrevi cedo demais, tentando finalmente dar a volta completa do círculo. 

Falamos também no nosso mútuo astigmatismo, que nos obriga a ler com óculos, ao passo que cada vez vemos melhor o que está longe. O que não deixa também de ser simbólico. Estou pensando agora em me profissionalizar. Não é mau. Chegou a hora séria de pôr os pontos nos is: será um modo de me assumir, e com dificuldade.

Desconfio que Maria perdeu o avião, de tanta conversa que tivemos: deveria estar no aeroporto às três horas da tarde, e foi às três que me deixou à porta de casa. Antunes  ia ficar furioso: esperava-a com a urgência da saudade. E mais: Antônio Cal ado estava hospedado em casa deles, e Antunes queria que Maria voltasse para ser dona-de-casa e recebê-lo. Falamos então no problema de ser dona-de-casa, exatamente no momento em que se está em pesquisa em matéria de arte. Como conciliar? Mas mulher termina conciliando, é o jeito.

Falamos de como é importante comer e dormir. Talvez por isso eu tenha dormido tanto depois. O que atrapalhou o meu telefonema para Otto Lara Resende: era sábado, eu telefonava e ele estava dormindo, ele me telefonava de volta e era eu quem estava dormindo. A pergunta que eu precisava fazer terminei fazendo-a a Helena, mulher de Otto. Só o consegui ao telefone às dez e meia da noite, e ainda por cima atrapalhando sua visita à casa de Hélio Pelegrino.

Queixamo-nos com o maior prazer de nosso sono. Mas às dez e meia da noite eu estava bem acordada: acabava de ter visto o filme de Khouri, Corpo ardente. Iria de qualquer modo porque se tratava de filme dele. Mas dessa vez acrescentava-se mais um motivo: Marly de Oliveira, minha afilhada de casamento, e Maria Bonomi haviam-me dito que Barbara Lange, a atriz do filme, parecia-se extraordinariamente comigo. Maria acrescentou: com você, mas parada, não móvel. A moça é mesmo parecida comigo, em bonito, é claro. Uma amiga disse que a parte da boca e do queixo não se parece, que em mim é bem mais suave. Deu-me um pouco de aflição ver-me na tela. Mas cobicei as roupas da atriz como se a isso eu tivesse direito, já que nos parecíamos.

Gostei mesmo foi do cavalo preto do filme. Tem uns movimentos de libertação do longo
pescoço e da cabeça manchada de branco que são uma beleza. O fato é que me identifiquei mais como o cavalo preto do que com Barbara Lange. Inclusive eu costumava ter um jeito de sacudir os cabelos para trás que significava exatamente isso: uma tentativa de libertação. Hoje felizmente não preciso mais do gesto. Não, às vezes preciso. Mas eu estava falando do bom encontro com Maria. Até comer bem comemos, embora sem prestar muita atenção: nosso encontro nos absorvia. 

Maria, você afinal perdeu ou não o avião das três e meia? E deu meu recado a Antônio Calado? Se ele não souber que foi de brincadeira, vai ficar zangado comigo. Bom, Maria, até breve. Irei a São Paulo ver Cássio. E, se puder, mando antes a metralhadora que lhe servirá de justa vingança.

Fonte
Clarice Lispector A Descoberta do Mundo

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