quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

H. G. Wells (A Loja Mágica)

Eu já tinha visto várias vezes a Loja Mágica, a distância; já tinha passado diante da sua vitrine cheia de objetos curiosos, bolas mágicas, galinhas mágicas, cones coloridos, bonecos de ventríloquo, material para mágicas usando cestos, baralhos que pareciam comuns, todo tipo de coisa; mas nunca me ocorrera entrar ali até que um dia, quase sem aviso, Gip me puxou pelo dedo até aquela vitrine, e se comportou de tal forma que não tive escolha senão entrar ali com ele. Eu não lembrava que a loja ficava justamente ali, para falar a verdade — uma fachada de tamanho modesto em Regent Street, entre uma loja de fotografias e uma loja cheia de pintos recém-saídos das incubadoras. Mas lá estava ela. Eu tinha imaginado que ela ficava mais perto de Piccadilly Circus, ou depois da esquina, em Oxford Street, ou mesmo em Holborn; sempre a vira do outro lado da rua e um pouco inacessível, com algo em sua posição que lembrava uma miragem; mas aqui estava ela, agora, sem nenhuma dúvida, e a ponta do dedinho gordo de Gip batia com ruído na vitrine.

— Se eu fosse rico — disse Gip, apontando para o Ovo Que Desaparece — eu compraria aquele ali para mim. E aquele. — Era o Bebê Que Chora, Muito Humano. 

— E aquele também. — Este último era uma coisa misteriosa, e se chamava, de acordo com um cartãozinho pregado sobre a caixa, “Compre Um e Deixe Seus Amigos Espantados”.

— Qualquer coisa — explicou Gip — desaparece embaixo de um desses cones. Li isso num livro. E ali, pai, está a Moeda Que Desaparece... só que eles a colocaram com o outro lado para cima, para ninguém perceber como é feito.

Gip, bom menino, herdou as boas maneiras de sua mãe, e não pediu para entrar na loja nem me aborreceu em qualquer sentido; mas, sabem como é, de maneira inconsciente ele puxava meu dedo na direção da porta e suas intenções eram muito claras.

— Olhe aquilo — disse, apontando a Garrafa Mágica.

— E se você tivesse uma dessas? — perguntei, e ele me olhou radiante, ao ouvir uma pergunta tão promissora.

— Eu ia mostrá-la a Jessie — respondeu ele, como sempre pensando nos outros.

— Faltam menos de cem dias para seu aniversário, Gibbles — falei, pousando minha mão na maçaneta.

Gip não respondeu, mas agarrou meu dedo com mais força, e assim entramos na loja. Não era uma loja como as outras; era um bazar mágico, e toda a desenvoltura que Gip iria assumir se se tratasse de uma simples loja de brinquedos ia fazer-lhe falta agora.
Ele deixou a conversação por minha conta.

A loja era pequena, estreita, não muito bem-iluminada, e os sininhos presos à porta tintinaram novamente sua musiquinha plangente quando ela se fechou às nossas costas. Por alguns instantes ficamos ali sozinhos e pudemos olhar à nossa volta. Havia um tigre de papel machê sobre a tampa de vidro que cobria um balcão não muito alto: um tigre sério, com olhos bondosos, que agitava a cabeça metodicamente; havia uma porção de bolas de cristal, uma mão de porcelana segurando cartas de um baralho mágico, um bom estoque de aquários mágicos de variados tamanhos, e uma cartola que exibia suas molas internas com pouca modéstia. No chão estavam pousados espelhos mágicos: um que nos reproduzia longos e finos, um que inchava nossas cabeças e sumia com nossas pernas, e um que nos tornava atarracados e gordos como peças do jogo de damas; e enquanto ríamos diante deles o lojista, suponho, entrou no aposento.

De qualquer modo, em certo momento ali estava ele atrás do balcão: um homem moreno, de aspecto curioso, pele macilenta, com uma orelha maior que a outra e um queixo como o bico de uma bota.

— Em que posso ajudá-los? — disse ele, abrindo os seus dedos longos e mágicos sobre o tampo de vidro do balcão; e com um sobressalto percebemos sua presença ali.

— Gostaria de comprar alguns truques simples para o meu filho — respondi.

— De prestidigitação? — perguntou ele. — Mecânicos? Domésticos?

— Tem alguma coisa divertida? — perguntei.

— Hmmm... — disse o lojista, e coçou a cabeça por um instante, pensativo. Então, com um gesto bem visível, retirou da cabeça uma bola de vidro. — Alguma coisa assim? — perguntou, estendendo a bola.

Aquilo foi inesperado. Eu já tinha visto esse truque em parques de diversões inúmeras vezes — faz parte do repertório de qualquer mágico — mas não estava esperando por ele ali.

— Muito bom — falei, com uma risada.

— Não é mesmo? — disse o lojista.

Gip estendeu a mão que estava livre para receber o objeto... e achou apenas uma mão aberta e vazia.

— Está no seu bolso — disse o lojista. E lá estava mesmo!

— Quanto custa? — perguntei.

— Não cobramos pelas bolas de vidro — disse o lojista, com cortesia. — Elas vêm para nós... — tirou mais uma, agora do cotovelo — ... de graça. — Tirou mais uma bola da nuca, e a colocou em cima do balcão, junto da outra. Gip examinou sua bola de vidro com olhar esperto, depois observou as duas sobre o balcão, e finalmente encarou o lojista, que estava sorrindo.

— Pode ficar com estas também — disse o lojista — e, se não se incomodar, fique com esta, da minha boca. Olhe aí!

Gip me olhou calado em busca de orientação, e com um silêncio profundo separou para si as quatro bolas, agarrou de novo meu dedo, e preparou-se para o prodígio seguinte.

— É assim que obtemos nosso material mais barato — observou o lojista.

Dei aquela risada de quem soube entender a piada.

— Em vez de ir ao armazém de atacado — falei. — Claro que fica bem mais em conta.

— De certa forma, sim — disse o lojista. — Embora sempre acabemos pagando. Mas não pagamos tão caro quanto as pessoas imaginam. Nossos equipamentos maiores, nossas provisões diárias e todas as outras coisas de que precisamos vêm todas de dentro dessa cartola. E, sabe, cavalheiro, se me permite dizê-lo, não existe uma grande loja de atacado, não para artigos de Mágica Genuína. Não sei se reparou no nosso letreiro: A GENUÍNA LOJA MÁGICA. — Ele puxou um cartão de visita da bochecha e o estendeu para mim. — Genuína — repetiu, apontando a palavra com o dedo. — Não há o menor engano, cavalheiro.

Pensei que ele estava mantendo a piada com bastante seriedade. Ele se virou para Gip com o mais afável dos sorrisos.

— E você, sabia? É o Tipo Certo de Garoto.

Fiquei surpreso com o fato de ele saber disso, porque, no interesse da disciplina, nós mantemos isto em segredo, em nossa casa; mas Gip recebeu a informação com um sólido silêncio, mantendo os olhos fitos no homem.

— Somente o Tipo Certo de Garoto consegue entrar por aquela porta. 

E então, como que para ilustrar o que ele dizia, ouviu-se um barulho na porta, e uma voz de criança quase guinchando se ouviu do lado de fora.

— Nãããão... Eu quero entrar lá dentro, papai, eu QUERO entrar lá! Nããão... 

E depois a voz cansada de um pai, cheia de consolos e promessas.

— Está fechada, Edward — dizia ele.

— Mas não está! — disse eu.

— Está, senhor — disse o lojista. — Sempre está, para esse tipo de criança.

Enquanto ele falava tive pela vitrine o vislumbre do rosto do menino, um rosto branco, miúdo, pálido de tanto comer doces e comidas açucaradas, distorcida por maus sentimentos; um pequeno e implacável egoísta, batendo no vidro mágico.

— Não adianta, senhor — disse o lojista quando eu, com meu impulso instintivo para ajudar, fui na direção da porta. Logo o garoto mimado foi levado para longe, aos berros.

— Como consegue fazer isto? — perguntei, já mais à vontade.

— Mágica! — disse o lojista, fazendo um gesto descuidado com a mão, e, presto! Faíscas de um fogo multicor brotaram dos seus dedos e sumiram por entre as sombras da loja.

— Você estava dizendo — falou ele, virando-se para Gip —, antes de entrar, que gostaria de ter uma caixinha dos nossos “Compre Um e Deixe Seus Amigos Espantados”?

Gip, com um valoroso esforço, respondeu:

— Sim.

— Está no seu bolso.

E inclinando-se sobre o balcão — ele tinha um corpo extraordinariamente longo — aquele sujeito incrível produziu o objeto no estilo habitual dos mágicos.

— Papel! — disse ele, e tirou uma folha de papel de embrulho da cartola que exibia suas molas. — Barbante! — e vejam só, sua boca tornou-se um estojo oco de onde ele começou a puxar um interminável fio de barbante, que cortou com os dentes depois de amarrar o pacote (e, ao que me pareceu, engoliu o rolo). Depois ele acendeu uma vela no nariz de um dos bonecos de ventríloquo, colocou um dos dedos (que tinha se transformado num bastão de cera de lacrar) na chama, e selou o pacote.

— E há também o Ovo Que Desaparece — lembrou ele, e, retirando um exemplar do bolso do meu casaco, fez outro pacote, e depois repetiu tudo com o Bebê Que Chora, Muito Humano. Quando todos os pacotes ficaram prontos, entreguei-os a Gip, que os apertou de encontro ao peito. Ele quase não disse nada, mas seu olhar era eloquente; o modo como apertava os pacotes nos braços era eloquente. Naquele instante ele era um playground de emoções indizíveis. Aquilo, sim, era Mágica verdadeira. Então, com um sobressalto, senti alguma coisa se movendo dentro do meu chapéu, alguma coisa macia e irrequieta. Ergui-o, e um pombo com as penas eriçadas — um cúmplice, sem dúvida — saltou sobre o balcão e correu a se esconder, pelo que pude ver, dentro de uma caixa de papelão por trás do tigre.

— Ora, ora! — exclamou o lojista, tomando meu chapéu com um gesto hábil. — Que pássaro descuidado, e ainda por cima chocando!

Ele balançou meu chapéu e derramou na mão estendida dois ou três ovos, uma bola de gude, um relógio, mais uma meia dúzia das inevitáveis bolinhas de vidro, e pedaços de papel amassado, cada vez mais e mais e mais, falando o tempo inteiro de como as pessoas esquecem de limpar os seus chapéus pelo lado de dentro do mesmo modo como o fazem por fora, falando com polidez, é claro, mas com certa determinação pessoal.

— Todo tipo de coisa se acumula, cavalheiro... Não no seu caso particular, é claro... Mas quase todo cliente... Incrível as coisas que conduzem consigo... 

O monte de papel amassado acumulava-se e erguia-se em cima do balcão até que ele ficou praticamente oculto, menos sua voz, que prosseguia.

— Nenhum de nós sabe na verdade o que se oculta por trás de nossa aparência de seres humanos, cavalheiro. Será que não somos mais do que fachadas limpas, sepulcros caiados por fora...

Sua voz parou, exatamente como quando a gente alveja o gramofone de um vizinho com um tijolo e boa pontaria; o mesmo silêncio instantâneo, e o roçar do papel se interrompeu, e tudo ficou muito calmo...

— Ainda precisa do meu chapéu? — perguntei, após um intervalo.

Não houve resposta.

Olhei para Gip, e Gip olhou para mim, e ali estavam nossas imagens distorcidas nos espelhos mágicos, com uma aparência muito esquisita, e grave, e quieta...

— Acho que vamos embora agora — falei. — Pode me dizer quanto foi?

— E depois de uma pausa, num tom mais alto: — Quero a conta, por favor, e também
o meu chapéu.

Pensei ter ouvido um fungado por trás da pilha de papel amassado.

— Vamos olhar atrás do balcão, Gip — falei. — Ele está brincando conosco.

Conduzi Gip e demos uma volta em torno do tigre, que ainda agitava a cabeça, e quem acha que estava atrás do balcão? Ninguém! Somente meu chapéu caído no chão, e um coelho de longas orelhas, o típico coelhinho dos mágicos, perdido em meditação, e com uma aparência tão amarfanhada e boba como só os coelhos de mágico têm. Recuperei meu chapéu, e o coelho se afastou dando pulinhos.

— Pai! — disse Gip, com um sussurro culpado.

— O que é, Gip?

— Eu gosto desta loja, pai.

“Eu também deveria estar gostando”, pensei comigo mesmo, “se este balcão não tivesse se alongado até barrar o nosso acesso à porta de saída”. Mas não chamei a atenção de Gip para esse detalhe.

— Coelhinho! — disse ele, estendendo a mão para o coelho, que passou por nós pulando. — Coelhinho, faça uma mágica para Gip!

Seus olhos acompanharam o bichinho enquanto este se esgueirava através de uma porta cuja existência eu, com toda certeza, não tinha percebido até então. Essa porta abriu-se, e através dela avistei o homem que tinha uma orelha maior que a outra. Continuava sorrindo; seu olhar, ao cruzar com o meu, tinha uma expressão divertida, mas com um quê de desafio.

— Acho que gostaria de ver a nossa sala de demonstrações, cavalheiro — disse ele, com inocente suavidade. Gip puxou meu dedo, querendo avançar. Olhei para o balcão e olhei de novo o lojista. Eu estava começando a achar aquela mágica genuína demais.

— Acho que não temos muito tempo — falei. Mas antes que concluísse a frase já estávamos na tal sala de demonstrações.

— Todo o material é da mesma qualidade — disse o homem, esfregando suas mãos muito flexíveis. — Ou seja, a melhor. Não existe nada aqui que não seja de Mágica genuína, com todas as garantias. Se me der licença...

Ele estendeu a mão e puxou alguma coisa agarrada à manga do meu casaco, e vi que era um pequeno diabinho vermelho, que se contorcia, pendurado pela cauda. A criaturinha mexia-se sem parar, tentando morder sua mão, mas ele logo o atirou para trás de um balcão afastado. Claro que aquilo não passava de um bonequinho de borracha, mas, por um instante...! E o gesto dele foi exatamente o de quem pega a contragosto algum bichinho repulsivo e que morde. Olhei para Gip, mas Gip estava com o olhar pregado num cavalinho mágico. Alegrei-me por ele não ter visto aquela coisa.

— Veja só — falei em voz baixa, indicando Gip e depois o diabinho vermelho com o olhar —, vocês não têm muitas dessas coisas por aqui, não?

— Não, não é nosso! Provavelmente entrou aqui com o senhor — disse o lojista, também em voz baixa, e com um sorriso mais desconcertante do que nunca. — É espantosa a quantidade de coisas que conduzimos conosco sem perceber! — E virandose para Gip: — E então? Algo lhe interessou? 

Muitas coisas ali tinham interessado Gip.

Ele virou-se para o comerciante com uma mistura de confidencialidade e respeito.

— Aquela é uma Espada Mágica? — perguntou.

— Uma Espada Mágica de Brinquedo. Ela não curva, não quebra, nem corta os dedos. Ela pode tornar invisível durante uma batalha qualquer pessoa com menos de dezoito anos. O preço vai de meia-coroa até sete coroas e seis pence, de acordo com o tamanho. Aquelas panóplias são artigos para cavaleiros andantes muito jovens, e são muito úteis: escudo de segurança, sandálias de velocidade, elmo de invisibilidade.

— Oh, pai! — exclamou Gip.

Tentei me informar sobre o preço, mas ele não me deu atenção. Tinha se voltado totalmente para Gip, o qual já havia largado meu dedo, e agora estava lhe mostrando todo o seu estoque como se nada pudesse impedi-lo. Daí a pouco percebi, com alguma desconfiança e uma ponta de ciúme, que Gip estava segurando o dedo daquele sujeito do modo como geralmente segura o meu. Sem dúvida era um indivíduo interessante, pensei, e tinha um estoque interessante de truques falsos, truques falsos muito bem-feitos, mas mesmo assim... 

Fui acompanhando os dois, falando pouco, mas mantendo sempre um olho nas prestidigitações do sujeito. Afinal, Gip estava se divertindo. E sem dúvida quando quiséssemos ir embora poderíamos fazê-lo sem dificuldade. Era um lugar enorme, desordenado, uma espécie de galeria cujo espaço era dividido por barracas, estandes, pilastras, e arcadas que conduziam a outras divisões, onde era possível ver ajudantes de aparência esquisita vagabundeando e olhando para nós; aqui e ali viam-se cortinas e espelhos de aparência estranha. Tudo era tão fora do comum que acabei me vendo incapaz de apontar a porta por onde tínhamos entrado. 

O lojista mostrou a Gip trens mágicos que se moviam sem usar vapor ou mecanismos de relojoaria, bastando ligar o sinal; e algumas caixas muito valiosas de soldadinhos que começavam a se movimentar assim que se erguia a tampa da caixa e alguém dizia... bem, não tenho um ouvido muito bom, e era um som que parecia um travalínguas, mas Gip, que tem o ouvido da mãe, aprendeu bem rápido. “Bravo!”, exclamou o lojista, jogando os soldados de volta à caixa sem a menor cerimônia, e entregando-a a Gip. “Agora!”, disse e Gip fez com que voltassem a se mover.

— Vai levar esta caixa? — perguntou o homem.

— Sim, vamos levar, a menos que você cobre o preço total. Nesse caso vou precisar da ajuda de algum magnata.

— Deus meu! Não! — exclamou o lojista, voltando a guardar os soldadinhos e fechando a tampa. Ele agitou a caixa no ar — e ali estava ela, envolta em papel pardo, amarrada, e com o nome e o endereço completos de Gip!

O homem riu ao ver o meu espanto.

— Esta é a mágica genuína — disse. — A coisa de verdade.

— É genuína demais para meu gosto — falei novamente.

Depois ele se dedicou a mostrar outros truques a Gip, truques bizarros, e feitos de um modo mais bizarro ainda. Ele explicava o método, revirava os objetos, e lá estava o meu garoto, abanando com firmeza a cabecinha, com ar de entendedor.

Eu não lhe dei a atenção que deveria dar. O Lojista Mágico dizia: “Hey, presto!”, e eu escutava sua voz de menino ecoando: “Hey, presto!” Mas minha atenção estava voltada para outras coisas. Eu começava a ter uma percepção mais clara do quanto aquele lugar era bizarro; ele era, para falar a verdade, impregnado por uma impressão tremenda de bizarrice. Havia algo de bizarro em sua própria aparência, no teto, no piso, nas cadeiras distribuídas ao acaso. Eu tinha a sensação esquisita de que quando não estava olhando diretamente para aquelas coisas elas mudavam, moviam-se, ficavam silenciosamente brincando de esconder às minhas costas. E a cornija era adornada por uma guirlanda de máscaras, que eram muito mais expressivas do que era possível a uma máscara de gesso.

De súbito, meu olhar foi atraído por um daqueles estranhos assistentes. Estava um pouco afastado, e sem se dar conta da minha presença — eu o avistava em diagonal, junto a uma pilha de brinquedos e através de uma arcada; ele estava encostado a um pilar numa atitude ociosa, e fazendo as coisas mais horríveis com o rosto! A mais horrível de todas era algo que ele fazia com o nariz. Fazia aquilo na atitude de quem não tem nenhuma tarefa para cumprir e está apenas se divertindo à toa. No começo o nariz era pequeno, bulboso, mas de repente ele se projetava para diante como um telescópio, e ia se alongando e se afinando até tornar-se uma espécie de chicote vermelho e flexível.

Parecia uma coisa de pesadelo! Ele ficava fazendo floreios e atirando aquilo para diante, como um pescador que atira a linha de sua vara. Pensei de imediato que Gip não deveria ver aquilo. Virei-me, e vi que ele estava completamente entretido pelo lojista, sem imaginar nada desagradável. Os dois conferenciavam em voz baixa e olhavam na minha direção. Gip estava de pé sobre um banquinho, e o lojista segurava na mão uma espécie de barril grande.

— Vamos brincar de esconder, pai! — gritou Gip. — Você me procura!

E, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa para evitá-lo, o lojista o cobriu com o barril enorme. Percebi de imediato o que aconteceria.

— Tire isso daí! — ordenei. — Agora! Vai assustar o menino. Tire-o daí! 

O homem das orelhas desiguais me obedeceu sem dizer nada, e virou o barril na minha direção, mostrando que não havia nada dentro. E o banquinho também estava vazio! Bastara um segundo para meu filho desaparecer?...

Vocês conhecem, talvez, aquela sensação sinistra quando alguma coisa como uma mão enorme brota de um lugar desconhecido e aperta nosso coração. Sabem, portanto, que aquilo afasta de cena o Eu normal de um indivíduo e o deixa tenso, decidido, nem lento nem apressado, nem enfurecido nem com medo. Foi o que aconteceu comigo.

Fui na direção do lojista e dei um chute no banquinho, jogando-o para longe.

— Pare com essa palhaçada — disse. — Onde está meu filho?

— Está vendo? — disse ele, ainda mostrando o interior do barril. — Não há ilusão alguma...

Estendi a mão para agarrá-lo pela lapela, mas ele se esquivou, com um movimento ágil. Tentei de novo, e ele voltou a me evitar, e abriu uma porta para fugir.

— Pare! — gritei, e ele recuou, rindo. Saltei para agarrá-lo, e mergulhei na escuridão. 

Thud!

— Meu Deus! Desculpe, senhor, não vi que estava aí!

Eu estava em Regent Street, e tinha acabado de esbarrar num operário, um homem de aparência decente; e a um metro de distância, talvez, e também numa atitude perplexa, estava Gip. Houve um rápido pedido de desculpas, e Gip virou-se para mim com um sorriso radiante, como se por alguns instantes tivesse me perdido de vista. E carregava quatro pacotes embaixo do braço!

Imediatamente apossou-se do meu dedo.

Por um segundo fiquei completamente perdido. Olhei em redor à procura da porta da lojinha, e vejam só, não havia porta nenhuma ali! Nenhuma loja, nada, apenas uma pilastra comum separando a loja de fotografias e a loja com os pintos e as incubadoras!...

Fiz a única coisa que me foi possível no meio daquele tumulto mental. Fui direto até a beira da calçada e ergui meu guarda-chuva, chamando um cabriolé.

— Vamos de carro! — exclamou Gip, no auge da exultação.

Ajudei-o a subir; com algum esforço lembrei-me do meu endereço para informar o cocheiro, e acomodei-me. Alguma coisa inesperada proclamava sua presença no bolso do meu casaco; extraí dele uma bola de vidro. Com um trejeito petulante, joguei-a pela janela do carro.

Gip não disse nada.

Durante algum tempo nenhum de nós falou.

— Pai! — disse ele daí a pouco. — Aquela, sim, é que era uma loja!

Aquilo me serviu de deixa para começar a examinar de que maneira ele tinha visto todo o episódio. Ele me parecia ileso, e até aí, tudo bem; não estava assustado nem desorientado, estava, sim, tremendamente satisfeito com as aventuras daquela tarde, e trazia quatro pacotes apertados de encontro ao peito.

Que diabos! O que poderia haver dentro deles?

— Hmmm... — falei. — Garotos não podem ir todos os dias a uma loja como aquela.

Ele recebeu isto com seu estoicismo habitual, e por um momento lamentei ser seu pai e não sua mãe, e não poder naquele mesmo instante, na rua, dentro do carro, dar-lhe um beijo. Afinal, pensei, a coisa não tinha sido tão grave. Mas foi somente quando começamos a abrir os pacotes que me senti mais seguro. Três deles continham caixas de soldados, soldadinhos de chumbo bem comuns, mas de tão boa qualidade que Gip logo esqueceu terem sido eles, originalmente, parte de um truque mágico do tipo mais genuíno; e o quarto pacote continha um gatinho, um pequeno gatinho branco, vivo, com excelente saúde, excelente temperamento e um notável apetite.

Acompanhei a abertura dos pacotes com um alívio provisório, e fiquei por ali, pelo quarto do garoto, durante um tempo maior que o normal.

Isto aconteceu há seis meses. E agora estou começando a acreditar que tudo está bem. O gatinho tinha apenas a mágica natural de todos os gatos, e os soldados formam uma companhia tão confiável quanto a que qualquer coronel poderia desejar. E Gip?

Os pais mais inteligentes devem compreender que com Gip tenho que usar bastante cuidado. O máximo que consegui, certo dia, foi isto. Falei:

— Não gostaria que seus soldados ficassem vivos, Gip, e pudessem marchar sozinhos?

— Os meus fazem isso — disse ele. — Basta que eu diga uma palavra que sei, antes de abrir a caixa.

— E então eles marcham sozinhos por aí?

— Oh, claro, pai. Eu não ia gostar se não fosse assim.

Não externei nenhuma surpresa inadequada, e desde então já por uma ou duas vezes me aproximei dele, sem avisar, enquanto brincava com os soldadinhos, mas não os vi se comportar magicamente. É tão difícil perceber. Há também a questão financeira. Tenho o hábito incurável de pagar minhas contas. Tenho percorrido Regent Street de cima a baixo, várias vezes, procurando a loja.

Estou inclinado a considerar que, da minha parte, minha obrigação está cumprida, e, já
que o nome e o endereço de Gip são conhecidos, posso deixar que essas pessoas, sejam elas quem forem, nos enviem a conta de acordo com a sua conveniência.

Fonte:
H. G. Wells. O País dos Cegos e outras histórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

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